Pandemia

Barroso: atos públicos de enfrentamento à pandemia devem ser baseados na ciência

STF começou a julgar ações que questionam a MP 966/2020, cujo texto relaxa a responsabilização de agentes públicos

Ministro Luis Roberto Barroso, do STF. Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início, nesta quarta-feira (20/5), ao julgamento das seis ações que questionam a Medida Provisória 966/2020, que isenta agentes públicos por erros ou omissões na tomada de decisões para o combate à pandemia da Covid-19. Apenas o relator, ministro Luis Roberto Barroso, votou. Ele não identificou inconstitucionalidade da norma, mas limitou a abrangência dela ao definir que os atos devem se basear em normas e critérios científicos.

Dentro desses critérios, ele estabeleceu que o agente público deve observar o que estabelecem as organizações e entidades médicas e sanitárias reconhecidas nacional e internacionalmente. Por mais de uma vez, no voto, ele afirmou que a única possibilidade, neste momento, por exemplo, é o distanciamento social. Leia a íntegra do voto.

A MP 966/2020, editada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e publicada no Diário Oficial da União na última quinta-feira (14/5), prevê que os agentes públicos somente serão responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro nas medidas de combate à pandemia. 

Antes da sessão plenária, Barroso não chegou a dar uma decisão liminar monocrática no caso. Não houve, também, manifestação anterior da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o tema — e nem no plenário. Depois das sustentações orais dos advogados das partes que ingressaram com as ações, o ministro se posicionou sobre a matéria pela primeira vez durante o voto de aproximadamente uma hora.

O relator afirmou que o debate público acerca dos atos relacionados ao combate à pandemia tem sido marcado por dois temas centrais. O primeiro deles seria sobre o isolamento social. E o segundo sobre a cloroquina, medicamento ainda sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19, mas que tem no presidente Bolsonaro um ferrenho defensor — a despeito do que diz a ciência até o momento.

“Como é de conhecimento geral, o distanciamento social e outras medidas de redução de mobilidade, fechamento do comércio, universidades e escolas geram substancial redução da atividade econômica. Há, de fato, previsão de que o Brasil sofrerá uma redução substancial de seu produto interno bruto da ordem de 5% em decorrência da crise sanitária”, disse o ministro.

“Em virtude de tal situação, registra-se uma importante resistência no comando do governo federal quanto à adoção das medidas de distanciamento. A resistência tem levado inclusive os governos locais a estabelecer medidas de distanciamento social mais severas. O segundo tema central no debate público relacionado à pandemia refere-se à utilização de determinados medicamentos, de eficácia ou segurança ainda controvertidas na comunidade científica, para o combate à enfermidade, como é o caso da hidroxicloroquina”, afirmou.

Barros afirma que “a única medida que as autoridades têm recomendado em todas parte do mundo é o isolamento social. E os países que não aderiram, voltaram atrás e foram mais afetados.” Além disso, ele aponta que o Supremo tem precedentes no sentido de se pautar pelo consenso científico quando o tema é de saúde ou meio ambiente.  

Para ele, na MP não há um problema no texto, em si, que exigisse uma intervenção que invalidasse a norma ou suprimisse alguns trechos do ordenamento jurídico. “Não há, a meu ver, em juízo cautelar, nada de intrinsecamente errado a restringir-se a erro grosseiro como quis o legislador. O problema está na qualificação do que se seja erro grosseiro. E portanto penso que seria aí a intervenção que devemos fazer”, disse.

A MP, em seu art. 2º, define o “erro grosseiro” como o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.

Também como resposta aos questionamentos e críticas que foram direcionadas à MP, o relator afirmou propinas, superfaturamentos são condutas ilegítimas com ou sem pandemia e que não estariam incluídas na MP. “Crime não está protegido por esta MP e acho que atos ilícitos de maneira geral tampouco. Qualquer interpretação que dê imunidade por atos ilícitos ou de improbidade administrativa não estão acolhidos.”

Ao especificar, então, o conceito de “erro grosseiro” que poderá ser alcançado pela responsabilização, ele definiu a interpretação conforme a Constituição de forma que “configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: “(i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias reconhecidas nacional e internacionalmente; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.

De acordo com o ministro, o propósito da MP foi o de dar segurança aos agentes públicos que têm que tomar medidas neste momento, minimizando as suas responsabilidades no tratamento da doença e dos efeitos econômicos. Objetivo, no entanto, que não foi alcançado. “A dura verdade a meu ver, é que a MP não eleva a segurança dos agentes públicos e ainda passou a impressão, possivelmente errada de que se estava querendo proteger coisas erradas. Essa foi a percepção do sentido e alcance desta lei.”

O ministro Ricardo Lewandowski, ao final do voto, pediu a palavra e perguntou, ao relator se os requisitos definidos por ele abrangem também o inciso 2° do art. 1, que diz respeito ao combate aos efeitos econômicos da pandemia. “O ex-presidente Collor fez o confisco das poupanças e ontem mesmo ele pede escusas por esta atitude, entendendo que foi equivocado”, explicou, no que teve a confirmação de Barroso.

Sustentações orais

As ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 6421, 6422, 6424, 6425, 6427 e 6428 foram apresentadas pelos partidos Rede Sustentabilidade, Cidadania, PSL, PCdoB, PDT, e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que apontam que a medida do governo federal seria, para além de um relaxamento da responsabilização, um salvo conduto à administração pública. Os termos usados, inclusive nas sustentações orais, apontam para uma anistia, uma blindagem a toda e qualquer atuação estatal no âmbito das medidas contra o coronavírus.

Os autores sustentam que a Constituição Federal (artigo 37, parágrafo 6º), ao tratar da responsabilização por danos causados por agentes públicos, não faz qualquer diferenciação entre os tipos de culpa, grave ou simples, que ensejariam a possibilidade de ressarcimento ao Estado do prejuízo causado. Defendem, ainda, que a definição de “erro grosseiro” na MP é vaga e imprecisa e que, ao buscar inserir no ordenamento jurídico essa figura, a norma cria obstáculos para a fiscalização e o controle dos atos administrativos e proporciona um ambiente permissivo durante e após a pandemia.

O advogado da Rede, Bruno Lunardi, afirmou que a MP estimula uma “pandemia de más intenções”, já que “extermina a responsabilidade dos agentes públicos. É clara, continua, a violação do primado republicano. A lei não pode, segundo defende, excluir em princípio a culpabilidade, sem adjetivos, do agente público. “A MP praticamente inviabiliza a punição por culpa, sendo uma blindagem a priori. Ninguém quer fazer caça às bruxas, mas espera-se que o agente público preste sempre satisfações públicas. Estamos num momento de mais controle, e não de menos controle.”

Lucas de Castro Rivas, pelo PDT, destacou a violação do devido processo legal, pois a MP não atendeu os requisitos mínimos de “densidade suficiente de uma norma”. “A MP tem textura aberta. Mas não se pode permitir uma abertura que seja tão geral, criando um tal escudo em termos de responsabilidade civil ou administrativa”. Ele diz, ainda, que não se pode interpretar a Constituição segundo a lei. 

O advogado do PDT argumenta que a MP trata de isentar de responsabilidade o agente público que quer curar praticando “curandeirismo”, numa crítica indireta ao presidente Jair Bolsonaro e a insistência que ele mantém na cloroquina. “Não é só da União a competência de responsabilização administrativa. O que está em causa nesta ação é a quantidade de vidas que estão em perigo em face da MP.”

André Maimoni, que representa o PSOL, apontou que a MP faz confusão entre dois tipos de responsabilidade. “Traz uma inversão total do princípio da prova. Além disso, abarca as categorias dos policiais. Não podemos menosprezar o fato de que temos um país de alto nível de violência, com agentes policiais atuando às vezes de modo violento sobretudo nas localidades mais pobres. Dá total impunidade aos agentes públicos, estabelecendo um alto grau e exceção.”

Pelo PCdoB, Paulo Machado Guimarães classificou como abusiva a medida do governo federal. Para ele, a MP pode ser definida como “ato de desvio de finalidade normativa em face de uma pandemia”, extrapolando e agravando o cenário normativo. “Parece claro que a MP tem o objetivo explícito de resguardar aqueles que serão responsáveis pela tragédia que já se abate sobre o país”, enfatizou.

AGU

O advogado-geral da União, José Levi do Amaral, fez um balanço das medidas que foram editadas pelo governo desde o início da pandemia no Brasil. De acordo com ele, quase a metade — 18, de um total de 45 — foi sobre créditos extraordinários. Outras foram para aquisições de bens, insumos, para enfrentamento da pandemia. Ou também para setores da economia e para preservação de empregos. Além disso há várias medidas não tratadas em MPs.

Sobre a MP em questão, ele ressaltou que não cogita crimes, mas trata das responsabilizações nas esferas cível e administrativa. Ele defendeu que ‘erro grosseiro” seria imperícia, má fé, portanto, cada juiz que estivesse diante de um caso do tipo deveria decidir diante da situação concreta.

“Não se trata de proteger funcionário público. A MP não é para o mau gestor de políticas públicas. Ela é para assegurar o mínimo de tranquilidade para o gestor público. A MP vem de encontro com o bom gestor”, apontou Levi.