Flávia Maia

A discussão sobre o futuro do artigo 19 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/marco-civil-internet" target="_blank" rel="noopener">Marco Civil da Internet</a> no Supremo Tribunal Federal (STF) está fortemente influenciada pelos <a href="https://www.jota.info/justica/golpistas-invadem-congresso-planalto-e-stf-08012023" target="_blank" rel="noopener">atos antidemocráticos do 8 de janeiro de 2023</a>. Durante a abertura da audiência pública na Corte que discute o tema nesta terça-feira (28/3), a data foi lembrada por ministros do Supremo e por representantes do governo federal e serviu como argumento das autoridades para entender que a legislação atual não está conseguindo responder aos desafios da contemporaneidade e precisa ser revista.
Nas falas, as autoridades repetiram que a organização dos ataques se deu por redes sociais e que há responsabilidade das empresas. Assim, a primeira mensagem que fica sobre a audiência pública é a de que a discussão não estará restrita apenas ao conceito jurídico – como querem as plataformas – mas será também analisada por fatores sociológicos e políticos.
Na audiência, as autoridades federais repetiram que a liberdade de expressão deve ser exercida com responsabilidade, por isso, a importância da regulação. Os discursos das autoridades do Executivo federal estavam alinhados nesse sentido – mesmo ainda não havendo consenso no governo sobre a regulação da internet no Brasil.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, destacou que é preciso fixar fronteiras entre o uso e abuso das redes sociais e que não há nada de exótico em discutir a regulação. Inclusive, para ele, “liberdade de expressão sem responsabilidade não é liberdade, é crime”. Dino também ressaltou que é preciso transparência sobre os algoritmos e que a discussão precisa estar além do modelo de negócios das plataformas, uma vez que a regulação da internet trata-se do que ele chamou de “controle das subjetividades da sociedade”, pois as redes sociais são um importante espaço público.
O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, também citou que a discussão deve ser feita levando em conta o contexto atual. Ele lembrou de movimentos que pregam o fechamento do Congresso Nacional, violência aberta contra ministros do STF e a reedição de um Ato Institucional Nº 5. “Vivemos um momento no qual disseminar mentiras, inclusive aquelas que atentam contra a saúde pública, tornou-se para alguns expressão da ‘liberdade’”. E destacou: “Mais grave ainda são as naturalizações de discursos misóginos, racistas e homotransfóbicos que possuem consequências das mais severas, inclusive para a proteção do direito à vida dos segmentos atacados”.
João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, disse que o “modelo atual autoriza a omissão das plataformas”. Marcelo Eugenio Feitosa Almeida, procurador-geral da União, que atualmente responde pela Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia na AGU, ressaltou a importância da parceria entre as plataformas e o governo no combate à desinformação, no modelo que foi feito com as instituições financeiras para conter a lavagem de dinheiro.
Na visão de Jorge Messias, advogado-geral da União, é “inegável a necessidade de se impor maior responsabilidade e se exigir proatividade das plataformas digitais na inibição de ilícitos – a partir de parâmetros claros, como a manifesta prática de crimes”, afirmou durante a sua fala. “Estas empresas que, enquanto verdadeiras instâncias de poder de fato, vale sempre lembrar, auferem lucros expressivos a partir de um modelo de negócios baseado na coleta e na exploração comercial de dados pessoais e comportamentais de sua massa de usuários”, acrescentou.
<h3>Responsabilização</h3>
Ministros do STF que estão mais engajados com a regulação, como Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, participaram da abertura junto com os relatores das ações – Dias Toffoli e Luiz Fux. Moraes reiterou o seu discurso de que as plataformas instrumentalizaram os atos de 8 de janeiro e afirmou que o modelo de regulamentação como está é um modelo falido, não só no Brasil, mas no mundo todo. “Não é possível continuar achando que as redes sociais são terras de ninguém, sem responsabilidade alguma”, disse.
Para Moraes, a plataforma não querer se responsabilizar pelo conteúdo é como um dono de um aluguel de depósito que continua alugando o espaço mesmo sabendo que ele está sendo usado para práticas criminosas. Relator de um dos recursos, Toffoli salientou que os desafios da internet foram mudando ao longo dos anos, por isso, a importância da discussão no Supremo e da audiência pública.
“Antes do diploma legal, as discussões estavam voltadas para a elaboração de uma regulação legal mínima e eficiente, capaz de assegurar a proteção aos direitos da personalidade, aos direitos fundamentais à liberdade de expressão e de informação, mas sem estabelecer limites à livre circulação de ideias e aos novos modelos de negócios, todos eles centrados na denominada 'economia da atenção', hoje plenamente estruturada e monetizada”, explicou.
“Após editada, a regulamentação deu margem a inúmeras novas discussões, não só pela inviabilidade de a legislação contemplar todas as situações possíveis e prever os rumos da acelerada evolução tecnológica, como também pela necessidade de analisar os seus termos, agora, à luz da Constituição”, complementou.
<h3>Contraditório</h3>
Advogados das plataformas tentaram explicar que fazem moderação de conteúdo ilegal e de desinformação e que o artigo 19 do Marco Civil da Internet traz a segurança jurídica necessária. Reforçaram ainda que não é interesse para o modelo de negócios os conteúdos de ódio e de desinformação. “Nosso modelo de negócios não se sustenta no extremismo”, afirmou Guilherme Cardoso Sanchez, advogado da Google Brasil.
“Aumentar a responsabilidade civil das plataformas não é a chave para tornar a internet um lugar mais seguro. Responsabilizar plataformas digitais, como se elas próprias fossem as autoras do conteúdo que hospedam ou exibem, levaria a um dever genérico de monitoramento de todo o conteúdo produzido pelas pessoas. Isso iria desnaturar inteiramente o ambiente plural da internet e criar uma pressão para remover qualquer discurso minimamente controverso”, complementou o advogado
Rodrigo Ruf Martins, gerente jurídico do Facebook Brasil, defendeu que as plataformas estão aprimorando as técnicas de checagem de conteúdo. “Reconhecemos que mais pode ser feito pela integridade das plataformas. Diante da escala de nossos serviços, proibir determinados conteúdos não significa incidência zero, mas a Meta está comprometida em seguir aprimorando a aplicação das suas políticas. Hoje, obtemos resultados inúmeras vezes superiores em comparação àqueles da época em que ocorreram os fatos objeto dos recursos em análise pela corte”, disse.
Nesse primeiro momento do debate, ainda não ficou claro como será preenchido o vácuo de uma possível inconstitucionalidade do artigo 19. O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), relator do PL das fake news, limitou-se a dizer que a regulação da internet é um dos poucos temas de convergência entre Câmara e Senado – e brincou que, neste momento, é um dos raros entendimentos entre os presidentes das Casas. Orlando Silva repetiu que a discussão da regulamentação da internet não é apenas um tema econômico, mas civilizatório, sem apontar qualquer possível sucessão do vazio que a inconstitucionalidade do artigo 19 possa trazer.
<h3>Anatel: artigo 19 usado para proteção de comércio ilegal</h3>
O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Carlos Manuel Baigorri, defendeu a revisão do artigo 19 do Marco Civil da Internet durante audiência pública. Baigorri centrou a sua fala na dificuldade da agência em conter o comércio eletrônico de equipamentos irregulares de telecomunicações. Ele explicou que, se uma loja física vende produtos irregulares, a Anatel multa a loja, no caso das empresas de comércio eletrônico, não é possível a sanção porque elas se protegem dizendo que são meras intermediárias.
Baigorri afirmou que o alerta do comércio ilegal surgiu a partir de uma demanda do sistema penitenciário que procurou a Anatel para informar sobre a venda de pequenos celulares que estavam entrando nas cadeias brasileiras. A Anatel percebeu que os aparelhos não eram registrados na agência e eram vendidos em plataformas de vendas.
Segundo Baigorri, as plataformas não cooperam em fazer uma triagem para a venda de apenas produtos legalizados. O presidente da Anatel disse que a agência tem dificuldade que as plataformas exijam o selo de autenticidade ou mesmo que haja fiscalização se o número é o correto e não fraudado. “Depois de ações de fiscalização nas plataformas e identificamos uma miríade de produtos ilegalmente comercializados”, apontou.
O presidente da Anatel afirmou ainda que o comércio de produtos ilegais – como celulares e tv box – precisa acabar e que o artigo 19 não pode ser usado para afastar a responsabilidade das empresas do comércio eletrônico. Para ele, os produtos irregulares fazem mal para os consumidores e para a soberania nacional.
<h3>Entenda</h3>
Estão no STF duas ações que discutem a moderação de conteúdo e a responsabilidade dos provedores de internet, websites e gestores de redes sociais em relação ao conteúdo postado por terceiros. O recurso extraordinário <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5160549">1.037.396</a>  (<a href="https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5160549&amp;numeroProcesso=1037396&amp;classeProcesso=RE&amp;numeroTema=987">temas 987</a>) discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e o RE <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5217273">1.057.258</a> (<a href="https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=533">tema 533</a>), também trata de moderação de conteúdo, mas refere-se a fatos anteriores à edição do Marco Civil da Internet.
O artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece as circunstâncias em que um provedor de aplicações de internet (como as plataformas de redes sociais) pode ser responsabilizado civilmente por danos causados por conteúdo publicado por terceiros. De acordo com o texto legal, os provedores só poderão ser responsabilizados nos casos em que, após ordem judicial específica, não removerem em tempo hábil conteúdo apontado como ilícito – o modelo chamado “judicial notice and takedown”.
Dessa forma, o artigo 19 determinou que a palavra final sobre o que é ou não lícito nas plataformas é sempre do Judiciário e as empresas não podem ser responsabilizadas por conteúdo de terceiros se não descumprirem decisão judicial de remoção. Por esse raciocínio, as empresas são livres para adotarem suas regras e suas operações de moderação de conteúdo, mas não serão obrigadas a indenizar por não atenderem a demanda extrajudicial de um usuário.

Audiência pública no STF

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JOTA

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