Constituição

Aide-mémoire para 5 de outubro

Neste dia, celebra-se a empreitada primária realizada pela Constituição da República Federativa de 1988 no Brasil

processo constitucional dia da democracia
Sessão do Congresso de 1988 que estabeleceu a atual Constituição do Brasil / Crédito: Wikimedia commons

Em memória de José Rodrigues Vieira Netto, José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra, Francisco José Ferreira Muniz e René Ariel Dotti

Nota prévia

Esquecer-se dela hoje especialmente não se pode. Neste 05 de outubro de 2021 celebra-se a empreitada primária realizada pela Constituição da República Federativa de 1988 no Brasil: fornecer os rumos e os caminhamentos da legalidade constitucional para levar a vida, em tais marcos, a avançar, devotada ao ritual democrático que refuta o expediente da força.

Se se compreender por Constituição o equivalente a um processo histórico, jurídico e político, nela ver-se-ão palavras viajantes, na expressão de Canotilho, porquanto busca razões no passado, regula o contemporâneo e abaliza caminhos para o futuro.

Dentro de uma estrita finalidade acadêmica, apresentamos este texto que reconhece ter sido a Constituição de 1988 a linha divisória que assinalou a transição democrática no Brasil, bem como a institucionalização dos direitos humanos (como se sustenta, com todo acerto, em: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 3ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 55), introduzindo uma nova dogmática constitucional.

O texto constitucional tem por baliza inicial os fundamentos da República nucleados na cidadania e na dignidade de pessoa humana, e como objetivos a erradicação da pobreza e da marginalização, afastando qualquer forma de discriminação, o que corresponde ao pluralismo democrático.

Nesse processo de direito material, com os erros e acertos de uma coletividade aberta em evolução, emerge a responsabilidade própria da magistratura constitucional que inclui a governança de um segmento nesse lócus da prestação jurisdicional. É de um intenso dever de produção de fidúcia que ali se trata. Esse lastro de confiança necessita ser fruto institucional do transcurso de afazeres que se equilibram entre a inovação desafiadora e a conservação da memória, dentro da legalidade constitucional, da justiça e da segurança jurídica.

Situa-se, pois, a República de 1988 nessa forma de ‘tapeçaria da história’ (na expressão de Asa Briggs) que é feita mesmo de experiências e ideias.

Aos nossos afazeres de Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral pareceu relevante nesta data agregar, com objetivo tão somente acadêmico, algumas traduções colhidas desde 1988, e que se alavancam em duas premissas: de uma parte, a cultura material de uma dada comunidade não produz compreensões constitucionais alheias à própria história; e de outra parte, tomando por empréstimo uma frase do historiador Peter Burke, “o lugar de onde se fala é tão importante quanto o que se fala”, razão pela qual é muito importante, sem embargo de todas as vicissitudes, que o Supremo Tribunal Federal tenha deixado de ser uma singular espécie de estrangeiro.

A história dessa atípica transfiguração do Tribunal após 1988 se traduz em verdades plúrimas (às vezes dolorosas) e também como realidades experimentadas (não raro desagradáveis). São mesmo muitas “as faces da história” (título do extraordinário livro com entrevistas de grandes historiadores realizadas por Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke). Contribuir com o respectivo levantar dos véus simbólicos ou imaginários é um passo que, mesmo fisicamente de perto, permite distanciar-se o suficiente para auxiliar na compreensão do Brasil contemporâneo, especialmente de quanto não-contemporâneo vem se tornando o País do presente. Disse Carlo Ginzburg (um dos entrevistados no livro antes mencionado) que “a vida é como um jogo de xadrez em que as jogadas cruciais já ocorreram bem antes do xeque-mate”.

Se assim for, dentro de um contexto exclusivamente acadêmico, a oficina permanente que instalamos em nossos gabinetes do STF e do TSE, mediante metodologia de trabalhos e de eventos como “Hora de Atualização” (com mais três dezenas de juristas, intelectuais e pensadores, como Roberto Gargarella, Laurentino Gomes, Avelãs Nunes, Ricardo Lorenzetti, José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Facury Scaff, Roberta Maia Gresta, Judith Martins-Costa e Jan Peter Schmidt), intenta, na mesma linha do exercício que a tessitura a seguir expõe, suplantar a cultura das aparências ou dos meros argumentos de autoridade pelos traços genuínos do que deve ser direto e impessoal.

A premissa do quadro unicamente acadêmico dentro do qual estas linhas são vertidas se projeta da dedicatória aos saudosos professores da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, nossa alma mater. Sabem o porquê aqueles que foram (e ainda são) seus alunos e também admiradores de sua vida e obra.

Memorabilia

Há 33 anos, o País, recém-saído de uma ditadura militar, que perdurou entre os anos de 1964 a 1985, depositava sua alento e esperança em nova ordem constitucional. Sob os ares democráticos, a Constituição da República viabilizou, por meio de voto direto, secreto e universal, a eleição de cinco Presidentes da República, dos mais variados espectros político-ideológicos, dentre eles a primeira e, até o momento, única mulher eleita. Mas não só. A nova ordem constitucional atravessou o impedimento de dois Presidentes da República.

Ao ensejo da sessão destinada à promulgação do texto constitucional, o saudoso Deputado Ulysses Guimarães, na qualidade de Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, assinalou a coragem como uma das marcas da “Constituição Cidadã”.

Animados por esse desígnio compromissório, entre o final de setembro e o começo deste outubro, magistrados e assessoria de nossos gabinetes do STF e do TSE, se empenharam em atividade que alternou afazeres individuais e coletivos sobre o advento de 05 de outubro de 2021. Desta redação e forma dadas pelo Ministro estão isentos os integrantes de seus gabinetes por quaisquer falhas ou eventuais omissões. Nem a eles se poderá imputar todas as ideias que aqui exponho. Magistrados e assessoria dos nossos gabinetes são sujeitos de uma prestação de serviço público cujo princípio e fim recai sobre a gravitas do Ministro.

A circulação e divulgação desse texto que redigi a partir do intercâmbio de ideias entre juízes (auxiliares e instrutores) e a assessoria, foram autorizadas pelas pessoas que integraram o circuito de afazeres. Eis a lista de participações nessa construção conjunta de integrantes de ambos os gabinetes:

Carlos Eduardo Lacerda Baptista; Christine Oliveira Peter da Silva; Desdêmona Tenório de Brito Toledo Arruda; Fábio Francisco Esteves; Fernanda Bernardo Gonçalves; Gabriel Rezende de Souza Pinto; Ilka Moreira Lins; Lucas Bevilacqua Cabianca Vieira; Lucas Nogueira Israel; Paula Rey Boeng; Roberta Zumblick Martins da Silva; Roberto Buch; Roberto Dalledone Machado Filho; Sandra Soares Viana; Suzana Massako Hirama Loreto de Oliveira; Thais Sampaio da Silva Machado, do STF; Andreza Maris Gomes Silva Santos; Francisco Gonçalves Simões; Frederico Franco Alvim; Larissa Almeida Nascimento; Nicolau Konkel Junior; Polianna Pereira dos Santos e Raquel Safe de Matos Coutinho, do TSE.

Esse exercício inicialmente indoor, proposto e coordenado pelo Ministro com o apoio de seus auxiliares diretos, emergiu como forma plural de celebrar o aniversário de nascimento da Constituição.

Além disso, contribui ao estudo do funcionamento endógeno dos gabinetes nas Cortes Superiores, porquanto a melhor compreensão das funções de assessoria e da magistratura auxiliar e instrutora é matéria de interesses fuori le mura. Não é novidade, aliás, na experiência de law clerks da Suprema Corte dos Estados Unidos. Há, por certo, entre a nossa empiria e aquela norte-americana aproximações e dessemelhanças, especialmente na composição e operação. Soa equívoco, contudo, reduzir o papel dos assessores daquela Suprema Corte a aprendizes, até mesmo porque aprendizado e atividade burocrática compõem uma falsa dicotomia.

Entre nós, a demanda de trabalho no Supremo Tribunal Federal brasileiro fez emergir atuações da magistratura como auxiliar e também como instrutora de processos, nomeadamente em ações penais. Juízes e assessoria formam um sistema de apoio que transcende o mero desenho técnico-burocrático.

Por isso, tornar público o resultado desse empreendimento que levamos a efeito em homenagem aos trinta e três anos da Constituição é um surplus de uma fotografia possível desse incessante ir-se constituinte, próprio da noção do tempo como síntese de múltiplas determinações. Equivale a um diálogo acadêmico que une transparência ao intercâmbio de ideias, e que simultaneamente me permite prestar elogio público a quem, nas funções auxiliares dos gabinetes, se põe com discrição à altura de reptos, de provocações intelectuais e da dialética problematizante que deve nortear o exercício da magistratura constitucional.

É nossa obrigação ofertar um ambiente de confiança, próprio do processo democrático, coerente com os princípios dirigidos à magistratura e ao Poder Judiciário independente e imparcial para a concretização dos direitos humanos, espelhado nos Princípios de Bangalore sobre a Conduta Judicial, mediante administração eficiente e accountability.

Independência, imparcialidade, integridade, idoneidade, igualdade de tratamento, competência e diligência, enfim, fomentam a confiança no sistema judicial, na autoridade moral do Judiciário, o que é essencial a uma democracia que reclama a salvaguarda dos direitos fundamentais.

Trinta e três anos faz

Debaixo de trinta e três anos de camadas de expressões simbólicas ou signos do imaginário, continua a viver a República de 1988. Deformações, enganos e desconfianças não nos privam de um conhecimento genuíno desvelado pela vida da Constituição que se fez legível, como princípio e fim. Integrou-se à vida nacional o modo como funciona a Constituição, uma exata medida dos limites e das possibilidades que vincula a todos.

Nesses anos de vigência são incontáveis os avanços alcançados no âmbito social e político. Dessa coisa nova e viva irromperam potencialidades vitais aptas a serem descobertas e desenvolvidas como ferramentas dinâmicas de um percurso de constantes mudanças e desafios. Visões, ideias e inspirações de 88 aos dias atuais resistem como símbolo maior do tempo constitucional brasileiro.

A promulgação exprimiu o ápice de um movimento que se iniciara alguns anos antes com o pleito das “diretas já”. Floresceu uma arquitetura de sociedade aberta e na qual todos poderiam se integrar e, assim, prosperar.

Três décadas se passaram e se observa que se caminhou na concretização dos direitos, responsabilidades e liberdades, notadamente no que toca aos direitos das minorias, e no fortalecimento das instituições democráticas.

5 de outubro de 1988

Quiçá tenha sido o mais notório entre todos os processos constituintes brasileiros. A República Federativa do Brasil, que, em 5 de outubro de 1988, institui-se em Estado Direito democrático, é a autoprodução de legitimidade de uma Constituinte que tomou as casas das pessoas pela televisão e pelo rádio, que multiplicou os mecanismos de participação popular, que tornou o anteprojeto da comissão de notáveis apenas um entre outros, e que começou a mostrar a face dos novos movimentos populares que povoariam a esfera pública nos anos que se seguiriam. A Constituição foi e é a surpresa da democracia onde se queria vê-la controlada.

Iniciou-se uma era de luzes para distintas realidades.  Estava ali, a Constituição, a preencher e esperança e estabelecer desígnios. Construída com intensa participação, objetivava a materialização da vontade política em direção aos novos tempos. Nesse contexto, sobressaem as garantias de individuais e coletivas – os quais foram, em muitos momentos, suprimidos pelo autoritário regime civil-militar, pelas cassações, pela tortura e pelo desaparecimento de presos políticos –, a criação de mecanismos para evitar ou coibir eventuais abusos, e o fortalecimento das instituições democráticas de Estado.

A Constituição, sob esse prisma, inaugura uma era democrática que reanima esperança, embora traga, em seu bojo, marcas de um regime não finado de todo, persistente em dimensão espectral, como produto de uma transição negociada com o borralho autoritário.

Depois daquela longa noite

Estas linhas trazem as reflexões que a data de 05 de outubro desperta. Resposta ao extenso ocaso que principiou em 1964, a Constituição vem cumprindo a missão para a qual foi promulgada, na inexorável defesa dos direitos fundamentais. O fio condutor perpassa os complexos e diversificados anseios do povo brasileiro, que inclui as pessoas encarceradas, as mulheres, os povos indígenas, as comunidades quilombolas.

O que a Constituição constituiu

A construção dessa República representa esse liame entre passado, presente e porvir de uma sociedade, a consistir, como defende Vera Karam de Chueiri, em instrumento que nos constitui como comunidade política (CHUEIRI, Vera Karam de. Constituição radical: uma ideia e uma prática. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, n. 58, p. 25-36, 2013). É Carta que em 05 de outubro de 1988 demarca a divisão entre um passado autoritário, de restrição e mesmo ablação de direitos, e um presente inclusivo, plural e democrático.

Nela expressamente se prevê como objetivo da República a gênese de uma “sociedade livre, justa e solidária”. Nos seus primeiros anos, era natural e esperado que o direito constitucional ainda ecoasse as limitações interpretativas arraigadas no pensamento jurídico e o adjetivo solidário não encontrasse a devida normatividade. O tempo e a maturação da jurisdição constitucional permitiram aos poucos a judicialização de demandas referente aos direitos sociais, destacando-se o direito à previdência social, cujo volume de demandas denota a sua relevância, o direito à saúde, à moradia, à segurança e à educação, informados todas por pretensões de igualdade material e solidariedade social. Gerou, por certo, desafios para a segurança jurídica, para os juízos de autocontenção e na relação entre os Poderes.

Na ordem econômica, exaltou-se a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, a fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da soberania nacional; propriedade privada;  função social da propriedade;  livre concorrência;  defesa do consumidor; defesa do meio ambiente; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; e tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.

Ela, a República de 1988, também constituiu um Brasil de (e) para mulheres. De mulheres constituintes que se fizeram multiplicar em dezenas de normas constitucionais, que chegam até nossos dias como normas fundamentais, e deixam uma marca de poder e igualdade como projetos constitucionais republicanos. Para mulheres cidadãs que, mesmo encontrando nos limites da realidade cultural patriarcal brasileira, não desistem e constroem, todos os dias e de todas as formas, janelas e pontes para seguir o rumo indicado pelas mães fundadoras.

Na construção de uma coletividade plural, justa e solidária, capaz de se apropriar das garantias fundamentais reconhecidas pela ordem constitucional, assume especial relevo, ainda, a salvaguarda do direito das minorias. E na dimensão das garantias asseguradas às pessoas encarceradas, sobressai, dentre todos, a vedação à tortura e ao tratamento desumano, o respeito à integridade moral e física, além do direito à saúde e à assistência social e judiciária como mecanismos de contenção dos excessos estatais (art. 5º, III, XLVII, alínea e, XLVIII, XLIX, LXXIV e art. 6º da CF/88).

No campo do Direito Penal, garantiu-se a concretização de direitos fundamentais a toda pessoa submetida à investigação e a processos criminais em geral, tais como o direito e a garantia: a) a não autoincriminação e ao silêncio; b) ao contraditório e ao devido processo legal; c) de  somente ser preso em flagrante delito ou por ordem judicial escrita e fundamentada; d) à presunção de inocência; e) ao juiz natural; f) de não ser condenado por provas ilícitas; g) de ser assistido por um advogado; h) de ser julgado em prazo razoável; i) de irretroatividade da lei penal mais grave, entre outros.

O texto constitucional legitimou as respostas sancionadoras do Estado de Direito democrático, inclusive para combater a impunidade e a corrupção, o cupim da República, denunciava o Presidente da Assembleia Nacional Constituinte.

Importantes avanços foram dados a fim de corporificar o clássico princípio da ofensividade, previsto no art. 5º, XLI, CF, de maneira a, de um lado, refrear tanto a atividade legislativa quanto a atividade judicial que eventualmente amplifiquem a desnecessária intervenção penal e o uso de estratégia puramente punitivista, como, de outro, dar abrigo, com mínima eficácia que seja, a direitos e liberdades fundamentais ainda carentes de concreta proteção.

Tornar compreensível a todos a teoria constitucionalista do delito não vem se mostrando tarefa fácil. Nada obstante, conquanto possa ser vasto e hercúleo o percurso sobejante nesse campo, os pequenos, mas perenes, passos até aqui conferidos não nos impedem de sonhar com a maturação de nossa cultura social e jurídica em nível suficiente para que, no cotejo da tutela penal de determinado bem jurídico com o perfil constitucional, num genuíno exercício de política criminal, haja espaço para se ponderar os custos da criminalização e do apenamento de determinadas condutas em desprestígio de outras de inegável maior valia.

Mais perto da sociedade

A admirável criação do Superior Tribunal de Justiça na estrutura do Poder Judiciário importou na divisão de competências outrora delegadas exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, distribuindo entre as Cortes as missões de uniformização da interpretação da legislação federal e da Constituição da República, respectivamente, viabilizando a otimização na busca pela segurança jurídica essencial à pacificação das relações sociais e ao desenvolvimento da nação.

Com ela, deu-se a abertura das portas do Judiciário a inúmeros cidadãos: além do maior acesso à informação e a previsão de nova gama de Direitos, a democratização promoveu o fortalecimento dos órgãos jurisdicionais e do Ministério Público e alçou a Defensoria Pública como instituição de matriz constitucional. Como consequência deste movimento, exponencial vem sendo a busca de soluções para conflitos perante o Estado-Juiz. A liberação do que Kazuo Watanabe denomina de litigiosidade contida, ao mesmo tempo que gerou benefícios à sociedade, arrostou a prestação jurisdicional.

A sensibilidade e urgência dessas questões demandam meios de efetivação. Instrumentos voltados à resolução de controvérsias recorrentes foram idealizados e implementados no ordenamento jurídico, a exemplo do procedimento para o julgamento de recursos especiais e extraordinários repetitivos, previsto nos arts. 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil. O pleno alcance da missão conferida aos Tribunais pátrios de “uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926, caput, do CPC), como forma de materialização da segurança jurídica e estabilidade que se espera da jurisdição, pressupõe atuação futura em fiel observância aos institutos processuais voltados à formação e alteração de precedentes.

As questões jurídicas da contemporaneidade brasileira reclamam, enfim, soluções estruturais e dialogais das quais são exemplos as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 709 e n. 742, motivadas pelas deficiências protetivas aos povos indígenas e comunidades quilombolas, respectivamente, exacerbadas pela emergência pandêmica.

A Constituição também se projeta para o futuro.

Resiliência constitucional é o alicerce de sua persistência e a garantia de sua eterna juventude. O desafio é preservar a liberdade garantida ao pensamento divergente, e mesmo aos comportamentos sociais julgados ‘indesejados’, porquanto não deve servir para o controle por quem ocupa o lugar de fala.

Aperfeiçoamentos são sempre bem-vindos, em vista inclusive do ritmo frenético de câmbios que temos experimentado ao longo dessas três décadas. Mas a tentativa de fragilização do valor do nosso texto constitucional não pode ser tolerada.

Há caminhos a percorrer

Por exemplo, o título “Da tributação e do Orçamento” foi objeto de quatro emendas constitucionais (EC 03/1993, EC 33/2001, EC 39/2002 e 42/2003) nenhuma delas representando, no entanto, alterações dignas de uma Reforma Tributária a promover justiça fiscal e segurança jurídica na tributação. Além do considerável número de emendas constitucionais promulgadas, o título “Da Tributação e do Orçamento” tem sido objeto de contínua modificação decorrente do exercício da jurisdição constitucional pelo STF com atuação cada vez mais frequente na interpretação do Sistema Tributário Nacional.

Desafios do encarceramento

Dissociada do legítimo anseio do constituinte, a realidade carcerária brasileira, notabilizada pela superlotação, precariedade de instalações e insalubridade, denota a incapacidade do Estado em oferecer condições mínimas de custódia, condizentes com a dignidade da pessoa do preso. A problemática enfrentada pela população prisional é ainda potencializada pela impopularidade da pauta, dificilmente alcançada pelo debate parlamentar, e pela limitada mobilização dos agentes em torno de políticas públicas de interesse.

Esse cenário de sistemática violação culminou com o reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal do “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema penitenciário nacional, no julgamento da ADPF 347 (Rel. Min. Marco Aurélio) ocorrido no ano de 2015. Como consectário, determinou-se a implementação de audiências de custódia e a liberação do saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual fora criado, proibida a realização de novos contingenciamentos. Sem a legítima intervenção judicial, o quadro de debilidade dos cárceres brasileiros não teria maior visibilidade.

No processo de amadurecimento do Estado Democrático de Direito, foi preciso reconhecer a responsabilidade dos três Poderes da República pelas falhas estruturais causadoras da generalizada transgressão dos direitos fundamentais dos encarcerados. Em consonância com o paradigma, a Suprema Corte teve oportunidade de enfrentar temas complexos, dentre os quais assentou orientação de que é dever do Estado manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, sendo responsável por ressarcir os danos comprovadamente causados aos detentos em condições indignas (RE 580.252, Redator para o acórdão, Min. Gilmar Mendes).

Todes, todas e todos

É essencial que se reconheça que a presunção da homogeneidade de uma comunidade tem caráter excludente e marginalizante (como se colhe em: MOREIRA, Adilson José. Direitos fundamentais como estratégias anti-hegemônicas: um estudo sobre a multidimensionalidade de opressões. Revista Quaestio Iuris, v. 9, n. 3, p. 1559-1599, 2016). Impende promover transformação cultural que perpassa a escuta dos diversos grupos que compõem a nossa sociedade, protegendo-se e assegurando-se a participação e o efetivo exercício dos direitos fundamentais em todos os projetos de vida. É o que se espera para os próximos anos, na senda livre, justa e solidária.

No tempo pandêmico

Quando o mundo se viu obrigado a parar, o Poder Judiciário Brasileiro continuou funcionando em sua estrutura digital. No distanciamento físico, vimos servidores, magistrados e colaboradores se desdobrando em esforços, para se fazerem presentes nessa espacialidade intangível, de modo a dar as respostas esperadas por um coletivo vivendo a concretude do mundo real.

A celebração das conquistas resultantes do trabalho e esforço de tantos não nos furta da constatação que a justiça digital é tal como canteiro de obras inacabado. Não basta construirmos a jurisprudência da espacialidade intangível, há que haver portas, janelas, estradas e pontes, para que seja um destino e lugar acessível, visto que permeados pelas vicissitudes oclusas da tecnologia que carece de ser franqueada sem seletividade.

Inúmeros têm sido os esforços do sistema de justiça para enfrentá-los, mas olhando os últimos tempos – especialmente quanto aos desafios impostos pela pandemia nos últimos dois anos – imperioso reconhecer importante papel do investimento em tecnologia: da informatização do cadastro e andamentos processuais, a digitalização dos processos, as concepções de processos judiciais eletrônicos, avanços em automação, ao uso de videoconferência para a realização de audiências e os desenvolvimentos de Inteligência Artificial.

Olhar para um mundo ainda não nascido requer acolhimento, pedagogia da solidariedade, práticas democráticas, respeito aos direitos humanos, políticas inclusivas, pluralidade e tolerância. Vivemos na complexidade. Na coexistência aberta, difícil, mas, ao mesmo tempo, inspiradora.

A casa comum

Proclama-se no artigo 225 que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Impende cuidar da casa comum. Em lugar de compartimentalizar o direito ambiental como um simples capítulo do texto constitucional, os próximos trinta e três anos testarão nossa capacidade de imantar todos os direitos e deveres debaixo do compromisso ambiental com o presente e o porvir.

Da Constituição de 1988, marco de nossa transição democrática, deveremos fazer o farol para uma transição para o desenvolvimento socioambiental e para um mundo sustentável.

Chamada às vezes de prolixa, longo é o repertório da Constituição de 1988, porque igualmente profundas são as águas a singrar, na edificação de um futuro igualitário, calcado na diversidade.

Se o constitucionalismo de 1988 nos reuniu, nas famosas palavras do Doutor Ulysses Guimarães, no ódio à ditadura, os desafios por vir estarão ligados à capacidade institucional de congregar democracia, direitos fundamentais e nossas condições materiais de existência.

Sempre se rememore que ela foi forjada por aqueles detentores de inabalável coragem. Desvencilhada das amarras da tirania e da obscuridade do passado, desbravou, pavimentou e iluminou caminhos.

Muito já se concretizou nessas mais de três décadas de vigência do texto constitucional. No entanto, a compreensão dele como algo vivo, um compromisso também com o futuro, que abarca a reconfiguração dos princípios da igualdade e da liberdade, bem como o reconhecimento de novos atores e novos conteúdos aos direitos ali assegurados, é o raciocínio que assegura o permanente relacionamento entre a Lei Maior e a comunidade que ela constitui, sem que se pretenda sua revisão ou até sua substituição.

É preciso fazer valer a Constituição e expurgar os cupins da corrupção que abalam a República e corroem a democracia. A retrospectiva mostra avanços e tropeços, e que três décadas insuficientes foram para aplacar recônditas infestações. Nada obstante, pontuais emissões de alertas, os desencorajados agem como os cegos de Saramago, da cegueira que encobre o que não querem ver.

A trajetória, reconheça-se, encontra-se pavimentada em muitos aspectos, não sem a existência de percalços, desvios ou alguns acidentes pela estrada. Mas, as regras da República continuam sendo flamas a iluminar quando a escuridão insiste em elevar-se por meio de retrocessos no combate à macrocriminalidade e à corrupção ou, ainda, quando riscos se colocam pela utilização de novas ferramentas e tecnologias para prática de inéditas condutas criminosas.

Nesses momentos, desafiadores e incertos, são requeridos dos condutores, os seus fiéis intérpretes do texto constitucional, a obediência estrita da legalidade constitucional e a habilidade necessária a fim de reconstruir a rota de “uma sociedade livre, justa e solidária”, promovendo-se o “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, I e IV).

Cumpre lembrar hoje. E sempre

Mil formas e muitos nomes pode ter uma Constituição que se expõe ao lume abrasador que incendeia visões de mundo e às intempéries políticas e institucionais que não lhe pouparam. Ela espelha inteiras expressões da sociedade. Será sempre, nada obstante, uma camada profunda, sólida e resistente, produto de uma jornada de trinta e três anos que fez o prodígio de não se afastar do que sustenta o Estado de Direito democrático, justo, livre e solidário.

Vida longa, pois, à Constituição da República de 1988! É ela que deve resistir às vivandeiras e sereias que querem desatar o Ulisses homérico da liberdade sonhada. É também ela que deve rechaçar os tóxicos sociopatas do momento (listados por Jonathan Rauch à página 157 da recentíssima obra “The Constitution of Knowledge; a defense of truth”). E é igualmente ela que aponta para os próximos 33 anos, em direção ao contínuo fortalecimento das instituições democráticas e dos poderes constituídos.

Desejam-se, como decorrência, periódicas e consecutivas eleições, com ampla a participação da esfera pública na deliberação político-eleitoral, sempre com respeito à soberania do voto popular e com salutar alternância de poder. E, quando dificuldades despontarem, que as instituições saibam responder à altura os reclamos da Nação. As respostas estão na Constituição. Podem não ser perfeitas, mas são úteis, desbravadoras, luz para que a longa noite não se instale novamente.