Leonardo Aguirra de Andrade

Gabriela Cavalcanti

O cashback está na pauta do Congresso, no contexto da reforma tributária<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Trata-se de um mecanismo de devolução do tributo sobre o consumo para a população de baixa renda. Esse mecanismo não é uma novidade na experiência internacional, como se verifica no exame dos modelos praticados por Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Colômbia e Canadá acerca da devolução ou desoneração do tributo sobre o consumo para determinados contribuintes.
No Uruguai, não se trata propriamente de um modelo de restituição do IVA, e sim de um regime de desoneração no ato de consumo. Em 2012, o art. 9º da Lei uruguaia 18.910/2012 facultou ao Poder Executivo desonerar integralmente do IVA a população de baixa renda no momento da compra ou da tomada de serviços quando estiver utilizando um cartão de débito disponibilizado pelo Banco da Presidência Social do Uruguai (BPS Prestaciones)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. O Decreto 288/2012 criou efetivamente o regime e limitou a isenção para aquisições mensais de até 2.000 pesos uruguaios<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. O sistema utilizado pelos estabelecimentos comerciais cadastrados já retira o IVA integralmente da fatura comercial no ato de consumo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Esse programa não se aplica para produtos como bebidas alcoólicas, cigarros, jogos de azar, pornografia e produtos sujeitos a fraudes, segundo regulamentação das autoridades<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Em 2022, o regime uruguaio foi modificado passando-se a se chamar “IVA personalizado”, no qual os beneficiários de programas assistenciais podem receber seus benefícios em um aplicativo do governo federal e obter a desoneração do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/iva">IVA</a><a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Foi mantido o limite de 2.000 pesos uruguaios<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Na Argentina, desde 2020, é possível restituir 15% das compras de alimentos e medicamentos pagas em cartão de crédito por aposentados, pensionistas e titulares do subsídio universal por filho ou de gravidez cadastrados perante as autoridades competentes. O valor é devolvido automaticamente em 48 horas úteis na conta bancária do consumidor, respeitado o limite de $ 2.028 pesos argentinos por mês por beneficiário, o que pode chegar até $ 4.057 pesos argentinos, se o beneficiário estiver registrado em um programa social específico (Asignación Universal por Hijo – AUH) e tiver 2 ou mais filhos. Originalmente pensado apenas para o período da pandemia, o programa foi prorrogado até junho de 2023, sob o argumento de que ele é um instrumento eficaz de apoio aos setores vulneráveis e de incentivo à utilização de meios eletrônicos de pagamento. Nota-se que a restituição se refere a uma parte do valor da operação, e não propriamente do IVA<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
A Bolívia implementou, em 2020, o Régimen de Reintegro en Efectivo del Impuesto al Valor Agregado (Re-IVA) para devolução de até 5% do valor do IVA incidente sobre operações com bens e serviços, aplicável para pessoas físicas com renda mensal de até 9.000 bolivianos, desde que as compras tenham sido objeto de emissão de nota fiscal eletrônica<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Os beneficiários do regime boliviano recebem, mensalmente, em sua conta bancária uma parte do IVA destacados em todas as faturas emitidas seus nomes. O programa não alcança operações com gasolina e diesel, eletricidade, água potável e gás doméstico, jogos de azar, entre outros. A necessidade de exigir notas fiscais eletrônica em cada compra, para que haja devolução do IVA, tem sido vista como um incentivo para a maior formalização do comércio na Bolívia<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
De forma semelhante, desde 2020, a Colômbia implementou devolução do IVA para famílias em situação de pobreza e pobreza extrema, previamente cadastradas no banco nacional de dados<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. A devolução do IVA independe do cadastro em programas assistenciais. Segundo informações do governo<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>, em 2021 foram 2 milhões de pessoas beneficiadas com reembolso de até 80 mil pesos colombianos bimestralmente.
No Equador<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>, os maiores de 65 anos de idade e as pessoas com deficiência têm direito à devolução do IVA pago por suas compras de bens e serviços de primeira necessidade adquiridos para uso e consumo pessoal, como saúde, educação, alimentação, cultura, entre outros. O valor máximo da devolução mensal depositado em conta é US$ 102 e os beneficiários devem realizar o pedido no sistema do governo, com entrega de documentos comprobatórios da operação.
Já no Canadá o tributo sobre o consumo (goods and services tax/harmonized sales tax - GST/HST) é devolvido em um valor fixo, por categoria de consumidor, como um crédito para aqueles que entregam declaração de imposto de renda, independentemente da qualificação do beneficiário como de baixa renda<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>. Mesmo que os contribuintes que não tenham recebido renda alguma durante o ano podem entregar a sua declaração de imposto de renda com o objetivo de receber a restituição do crédito do GST, o que acaba contemplando, ainda que indiretamente, a população de baixa renda. Para o período base de 2021 (e pagamento entre julho de 2022 e junho de 2023), a devolução do GST corresponde a US$ 467 para solteiros, US$ 612 para pessoas casados ou em união estável e de US$ 161 para cada criança com menos de 19 anos<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>.
No Brasil, merece destaque o programa Nota Fiscal Gaúcha, que restitui parte ICMS pago para famílias com renda de até três salários-mínimos, inscritas no Cadastro Único, por meio de um cartão que pode ser utilizado em diversos estabelecimentos<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>. O valor devolvido é de até R$ 400 por ano, pago em quatro parcelas, desde que o cidadão consumidor peça a inclusão de seu CPF na nota fiscal<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>.
Os modelos analisados têm em comum um limite máximo para o crédito a ser restituído, o que parece contrariar a ideia de combater a regressividade em sua plenitude. Um modelo que busca dar efetividade à capacidade contributiva de cada indivíduo não deveria ter limites de restituição, nem valores fixos.
No Brasil, a implementação de um sistema de cashback para o IBS poderia estar baseado no cruzamento de dados entre (i) a nota fiscal eletrônica, (ii) o cadastro de pessoas em situação de vulnerabilidade social, e (iii) a base de dados da Receita Federal, considerando tanto as informações das declarações de imposto de renda, como as retenções na fonte dos assalariados com baixa remuneração.
Os potenciais problemas a serem endereçados seriam o elevado número de pessoas de baixa renda sem registros fiscais, o pequeno percentual da população brasileira que entrega declarações de imposto de renda, além da informalidade do comércio acessado por tal parcela da população<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>. Entretanto, a existência de um programa de devolução do IBS tende a incentivar a busca pelo cadastro fiscal e a formalização da economia, como tem ocorrido na Bolívia. Nesse ponto, parece útil a ideia do modelo canadense de permitir a entregar da declaração de imposto de renda mesmo por aqueles que não têm renda, somente para fins da recuperação do tributo sobre o consumo. Além disso, seria possível criar uma espécie de cadastro de baixa renda específico para a restituição do IBS, independente dos programas de assistência social, como ocorre na Colômbia.
Ademais, a implementação do cashback de IBS no Brasil poderia se inspirar no modelo equatoriano, que, embora voltado a idosos e pessoas com deficiência física, chama atenção na medida em que cruza dois fatores: (i) o grau de "discapacidad"; e (ii) os tipos de produtos de primeira necessidade que dão direito à devolução. Por analogia, seria possível transportar essa diferenciação entre pessoas com diferentes graus de deficiência física para a diferenciação entre pessoas com condições financeiras distintas dentro do grupo da população de baixa renda.
Esse cruzamento poderia ser pertinente para o modelo brasileiro de cashback, no sentido de correlacionar (i) os diferentes grupos com baixa capacidade contributiva, e, de maneira inversamente proporcional, (ii) o percentual do tributo a recuperar, da seguinte maneira:
<table style="height: 147px;" width="447">
<tbody>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Faixa de Renda</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">% de devolução do IBS</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Até 1 salário mínimo</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">100%</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Entre 1 e 2 salários mínimos</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">80%</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Entre 2 e 3 salários mínimos</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">60%</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Entre 3 e 4 salários mínimos</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">40%</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Entre 4 e 5 salários mínimos</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">20%</td>
</tr>
<tr style="height: 21px;">
<td style="height: 21px; width: 327.672px;">Acima de 5 salários mínimos</td>
<td style="height: 21px; width: 293.547px;">0</td>
</tr>
</tbody>
</table>
A aplicação de uma tabela progressiva poderia estar em consonância com as faixas de renda para determinação de alíquotas do imposto de renda, sem prejuízo de excluir determinados itens considerados supérfluos, como ocorre no Uruguai, na Bolívia e no Equador. Ou seja, seria possível instituir programa orientado pelos princípios da capacidade contributiva e da seletividade, a fim de restituir o IBS de acordo com a renda do consumidor e afastar o direito à restituição em relação a determinados produtos e serviços, em linha com a referida experiência estrangeira.
Como se vê, o exame comparado da experiência estrangeira a respeito da devolução do tributo sobre o consumo para a população de baixa renda nos instiga reflexões pertinentes à sua adaptação para o contexto brasileiro.
*
O presente artigo decorre dos debates realizados no Núcleo de Pesquisas do Mestrado (Nupem) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). A opinião dos autores não necessariamente reflete a posição institucional do IBDT, nem dos professores e pesquisadores do Nupem.
<hr />
<a style="font-weight: 300;" href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Valor Econômico. “Cashback está indefinido e pode beneficiar também não vulneráveis, diz Appy”. Disponível em: &lt;<a style="font-size: 0.875em;" href="https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/17/cashback-est-indefinido-e-pode-beneficiar-tambm-no-vulnerveis-diz-appy.ghtml">https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/03/17/cashback-est-indefinido-e-pode-beneficiar-tambm-no-vulnerveis-diz-appy.ghtml</a>&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> URUGUAI, Programa da Inclusion Financeira. Disponível em: &lt;https://www.bps.gub.uy/bps/file/5076/1/nota-mef-bps.pdf&gt; Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> URUGUAI. Decreto do Presidente da República n° 288/2012, Artículo 1-BIS.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> URUGUAI. Tarjeta BPS Prestaciones beneficia a usuarios de Asignaciones y Tarjeta Uruguay Social. Disponível: &lt;https://www.gub.uy/presidencia/comunicacion/noticias/tarjeta-bps-prestaciones-beneficia-usuarios-asignaciones-tarjeta-uruguay&gt;. Acesso em 31 mar. 2023. URUGUAI. Inclusión financiera. Disponível em: &lt;https://www.bps.gub.uy/3541/inclusion-financiera.html&gt; . Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> URUGUAI. Respuestas a preguntas frecuentes. Comercios - IVA personalizado. Disponível em: &lt;http://faqs.mides.gub.uy/174381/&gt;. Acesso em 02 abr. 2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>URUGUAI. IVA Personalizado, janeiro de 2023. Disponível em: &lt;https://www.gub.uy/ministerio-desarrollo-social/comunicacion/publicaciones/iva-personalizado&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> URUGUAI. Lanzamiento del IVA personalizado para beneficiarios de Asignaciones Familiares – Plan de Equidad, julho de 2022. Disponível: &lt;https://www.gub.uy/ministerio-desarrollo-social/comunicacion/noticias/lanzamiento-del-iva-personalizado-para-beneficiarios-asignaciones-familiares&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ARGENTINA. Art. 77, Ley 27.467/2018, e Resolución General 4676/2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> ARGENTINA. AFIP extiende 6 meses el reintegro del 15 % para compras con débito para sectores vulnerables. Disponível em: &lt;https://www.argentina.gob.ar/noticias/afip-extiende-6-meses-el-reintegro-del-15-para-compras-con-debito-para-sectores-vulnerables&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BOLÍVIA. Ley 1355/2020 e Decreto Supremo 4435/2020.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> BOLÍVIA, Con el Régimen de Reintegro em Efetivo del IVA (Re-IVA). Disponível em: https://www.fps.gob.bo/wp-content/uploads/2022/02/REGIMEN-DE-REINTEGRO-EN-EFECTIVO-DEL-IVA-RE-IVA.pdf Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> COLÔMBIA. Art. 21, Ley 2010/ 2019, Decreto 419/2020.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> COLÔMBIA. El Gobierno devuelve del gasto en IVA $80.000 a los hogares más pobres. Disponível em &lt;<a href="https://devolucioniva.prosperidadsocial.gov.co/">https://devolucioniva.prosperidadsocial.gov.co/</a>&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> EQUADOR, Ley del Anciano, art. 74 Ley de Régimen Tributario Interno, art. 4, Reglamento para la Aplicación de los Beneficios Tributarios, Resolución NAC-DGERCGC20-00000059.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> CANADÁ. GST/HST credit. Informações disponíveis em: &lt;<a href="https://www.canada.ca/en/revenue-agency/services/child-family-benefits/gsthstc-amount.html">https://www.canada.ca/en/revenue-agency/services/child-family-benefits/gsthstc-amount.html</a>&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> CANADÁ. GST/HST Credit and Climate Action Incentive Payment. Disponível em: &lt;https://www.canada.ca/content/dam/cra-arc/formspubs/pub/rc4210/rc4210-22e.pdf&gt;. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> BRASIL, Estado do Rio Grande do Sul. Art. 12-A, Lei Estadual/RS nº 14.020, de 25 de junho de 2012.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> BRASIL, Estado do Rio Grande do Sul. Programa Nota Fiscal Gaúcha alcança a marca de 2,9 milhões de usuários. Disponível em <a href="https://estado.rs.gov.br/programa-nota-fiscal-gaucha-alcanca-a-marca-de-2-9-milhoes-de-usuarios">https://estado.rs.gov.br/programa-nota-fiscal-gaucha-alcanca-a-marca-de-2-9-milhoes-de-usuarios</a>. Acesso em 31 mar. 2023.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> BARREIX, Alberto et al. Revisiting Personalized VAT: A Tool for Fiscal Consolidation with Equity. IDB Discussion Paper 939, 2022. p. 14.

cashback

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Devolução de tributos sobre o consumo entrou na pauta do Congresso Nacional

Cashback na reforma tributária e as experiências estrangeiras

Devolução de tributos sobre o consumo na forma de cashback entrou na pauta do Congresso Nacional com a reforma tributária