Tecnologia & Cultura Digital

Educação midiática como pilar da regulação de plataformas

Um panorama da conferência internacional 'Internet for Trust', realizada pela Unesco em Paris

regulação de plataformas
Crédito: Unsplash

Em fevereiro de 2023, a Unesco promoveu a conferência internacional “Internet for Trust”, evento voltado para debater a regulamentação de plataformas digitais, com o objetivo de salvaguardar a liberdade de expressão e o acesso à informação para todos os cidadãos de todos os países.

Mais de 50 países tiveram representantes na conferência, a fim de coletar boas práticas e entender modelos de regulação e sua eficácia em variados contextos. A Unesco liberou um documento com diretrizes que tiveram duas versões (1.0 e 2.0) e que apresentaram a incorporação das consultas públicas realizadas pela instituição, bem como opiniões de especialistas na área de direitos digitais.

Um ponto importante do evento foi a ênfase em possíveis soluções para o presente problema de regulação de plataformas digitais. A importância da Educação Midiática e Literacias de Mídia, Informação, Digital e de Dados foi ressaltada em várias mesas de discussão. Neste artigo, apresentamos um balanço das diretrizes regulatórias liberadas pela Unesco e as possíveis formas em que a Educação Midiática pode ser uma resposta a este desafio que tomará grande parte da nossa atenção nos próximos anos.

Diretrizes da Unesco para regulação de plataformas

A Unesco liberou duas versões do documento de Diretrizes para a regulação de plataformas. A versão 2.0 sumariza processos de consulta pública multissetoriais, que se deram a partir de setembro de 2022, e serão descritas a seguir.

O objetivo das Diretrizes é apoiar o desenvolvimento e a implementação de processos regulatórios que garantam a liberdade de expressão e o acesso à informação ao lidar com conteúdo que apresente risco à democracia e aos direitos humanos. O escopo dessas Diretrizes inclui plataformas digitais que permitem aos usuários divulgar conteúdo para o público em geral, incluindo redes de mídia social, aplicativos de mensagens, mecanismos de pesquisa, lojas de aplicativos e plataformas de compartilhamento de conteúdo. Contudo, cabe aos órgãos do sistema regulatório (como governos e agências bilaterais) definirem quais serviços de plataforma digital estão no escopo, bem como identificar as plataformas por seu tamanho, alcance e os serviços que prestam, se têm ou não fins lucrativos, e se a gestão é central, federada ou distribuída.

Já no começo do documento, fica claro que a centralidade da ação se dá sobre serviços oferecidos por cada uma dessas plataformas, o que levantou um importante debate sobre o modelo de negócios das Big Techs. Especificamente, sobre o sistema de recomendação de conteúdo. As diretrizes expressam que, no âmbito da regulação, espera-se que as plataformas digitais sejam transparentes sobre os sistemas e processos usados para moderar e recomendar conteúdo.

Ao longo do texto, ademais, as literacias de mídia e informação ganham centralidade, como um esforço paralelo dos órgãos reguladores e das plataformas para promover habilidades junto a cidadãos (em especial crianças, adolescentes e idosos) para que aprendam a julgar criticamente conteúdo e riscos online. Isso permitiria que usuários se envolvessem criticamente com conteúdo e tecnologias, navegassem em um cenário de mídia e informação em rápida evolução, marcado pela transformação digital, e criassem resiliência diante dos desafios relacionados. Não obstante, durante o evento na Unesco, grande parte da discussão se centrou sobre uma abordagem híbrida top-down + bottom-up, de modo que ambos os níveis – macro e micro – interajam e se responsabilizem por criarem um ambiente informacional e comunicacional mais saudável.

A abordagem atual adotada por estas diretrizes é de co-regulação. O Estado, por um lado, deve fornecer um quadro jurídico que permita a criação, operacionalização e aplicação de regras, enquanto os órgãos autónomos, por outro lado, devem criar regras e as administrar, por vezes através de estruturas ou mecanismos conjuntos. Para atingir o objetivo da regulação, todas as partes interessadas envolvidas têm um papel na manutenção de um ambiente favorável à liberdade de expressão e ao acesso à informação. A Unesco propõe que as plataformas digitais não devem ser responsabilizadas quando agem de boa fé e com a devida diligência, realizam investigações voluntárias ou adotam outras medidas destinadas a detectar, identificar e remover ou desativar o acesso a conteúdos ilegais e/ou nocivos.

Porém, é importante criar mecanismos que possam avaliar a suposta “boa-fé”, a fim de não deixar esse princípio abstrato ou subjetivo. Um exemplo seria por escrutínio legislativo, com requisitos para transparência e consulta de várias partes interessadas e a produção de relatórios anuais e auditorias regulares. Adiante este argumento, se explicita que as plataformas digitais devem cumprir cinco princípios fundamentais: respeito incondicional aos direitos humanos, transparência, educação midiática, responsabilidade sobre conteúdo, e diligência na avaliação de riscos.

“Parágrafo 28. As plataformas digitais devem cumprir cinco princípios fundamentais:

  1. As plataformas respeitam os direitos humanos na moderação e curadoria de conteúdo. Eles têm políticas e práticas de moderação e curadoria de conteúdo consistentes com os padrões de direitos humanos, implementadas algoritmicamente e por meios humanos, com proteção e suporte adequados para moderadores humanos.

  2. As plataformas são transparentes, sendo abertas sobre como operam, com políticas compreensíveis e auditáveis. Isso inclui transparência sobre as ferramentas, sistemas e processos usados para moderar e selecionar conteúdo em suas plataformas, inclusive em relação a processos automatizados.

  3. As plataformas capacitam os usuários a entender e tomar decisões informadas sobre os serviços digitais que usam, inclusive ajudando-os a avaliar as informações e conteúdo.

  4. As plataformas são responsáveis perante as partes interessadas relevantes, os usuários, o público e o sistema regulatório na implementação de seus termos de serviço e políticas de conteúdo, incluindo dar aos usuários direitos de reparação contra decisões relacionadas ao conteúdo.

  5. As plataformas conduzem a devida diligência de direitos humanos, avaliando os riscos e impactos sobre os direitos humanos de suas políticas e práticas (Unesco, p.9, 2023).

Diante desses cinco princípios, este artigo busca destacar e aprofundar o terceiro item, em respeito à "capacitação de usuários a entender e tomar decisões informadas sobre os serviços digitais que usam, inclusive ajudando-os a avaliar as informações e conteúdo”.

Princípios para a regulação de plataformas

O grande desafio do tópico de regulação de plataformas se dá no âmbito de que cada país tem suas próprias necessidades e requisitos. Durante o evento da Unesco, foi possível ouvir e entender as demandas de países como Indonésia, Bósnia e Herzegovina, Colômbia, Filipinas, Jordânia, Quênia, África do Sul, Nigéria, Suécia, Alemanha, Brasil, entre outros. Em todos os contextos observados, o apoio às políticas para educação midiática se apresentou como o fio condutor para que países possam trabalhar esse tema com populações (à nível micro) ao mesmo tempo em que estabelecem diálogos governamentais ou com as Big Techs (a nível macro).

A própria Unesco incorpora a importância desta pauta, ao dedicar uma sessão do documento de Diretrizes somente para educação midiática. A organização sugere que, ao se reportar ao sistema regulatório, as plataformas devem demonstrar sua estratégia geral relacionada à alfabetização midiática e informacional e às ações que tomaram para avançar nela. Deve haver um foco específico dentro da plataforma digital sobre como melhorar a alfabetização digital de seus usuários, inclusive das equipes de desenvolvimento de produto. Segundo essa ideia, empresas ou corporações devem considerar como qualquer produto ou serviço impacta o comportamento do usuário, além do objetivo de aquisição ou engajamento.

Nesse âmbito, o foco deve se dar sobre a capacitação de equipes internas para desenvolvimento de produtos em literacias midiática e informacional na perspectiva do poder do usuário, com base em padrões internacionais, e implementar mecanismos de monitoramento e avaliação internos, externos e independentes. Esses processos devem ser devidamente reportados aos organismos internacionais e às agências regulatórias nacionais.

De acordo com as Diretrizes, as plataformas devem esboçar possíveis soluções para os problemas diagnosticados a nível interno e implementar tais medidas em estreita colaboração com organizações e especialistas independentes das próprias corporações, como autoridades públicas responsáveis pela alfabetização midiática e informacional, academia, organizações da sociedade civil, pesquisadores, professores, educadores especializados, organizações juvenis e organizações de direitos da criança.

Especial atenção deve ser dedicada a usuários em situação de vulnerabilidade social ou cultural e/ou com necessidades específicas. As corporações devem garantir que os usuários entendam seus direitos online e offline, incluindo o papel da alfabetização midiática e informacional no gozo dos direitos à liberdade de expressão e acesso à informação. O ponto expresso neste argumento é de que, além de diagnósticos sobre os potenciais problemas apresentados pelas plataformas, as corporações também devem se comprometer a encontrar soluções para os problemas detectados juntamente com mecanismos e agentes externos e independentes das plataformas. Não obstante, devem assegurar prioridade, tempo e orçamento para um esforço dirigido na:

  1. Formulação de narrativas de construção coletiva da paz;
  2. Melhora e aumento das capacidades críticas dos cidadãos e usuários (independentemente da geografia);
  3. Promoção da transparência das plataformas;
  4. Integração da sociedade civil em processos decisórios das plataformas; e
  5. Garantia de que essas medidas estejam disponíveis em variados idiomas, inclusive dialetos locais.

Em continuidade a este último ponto, as Diretrizes oferecem orientações específicas sobre o tema da diversidade linguística, salientando que plataformas devem ter seus termos de serviço completos disponíveis nos idiomas principais de todos os países onde operam, e devem garantir que usuários possam responder em seu próprio idioma, além de processar suas reclamações igualmente, ter a capacidade de moderar e curadoria de conteúdo no seu próprio idioma.

Tradutores de idiomas automatizados, embora tenham suas limitações, podem ser implantados para fornecer maior acessibilidade ao idioma – porém, com a ressalva de que em casos de maior complexidade, a plataforma se comprometa a encontrar tradutores e intermediadores humanos. Plataformas também devem garantir que o conteúdo que representa um risco significativo para a democracia e direitos humanos não seja amplificado por curadoria automatizada ou mecanismos de recomendação simplesmente devido à falta de capacidade linguística desses mecanismos.

Outro ponto que vale aqui ser exposto é sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, já que este grupo tem um status especial devido ao estágio único de desenvolvimento, e pelo fato de que experiências negativas na infância podem resultar em consequências ao longo da vida ou transgeracionais. Os termos de serviço e os padrões da comunidade devem ser disponibilizados em linguagem apropriada para a idade das crianças e, conforme apropriado, ser co-criados em parceria com um grupo diverso de crianças. Com isso, vem à superfície a importância da educação midiática como um dos faróis no caminho para a regulação de plataformas.

Educação midiática na regulação de plataformas

A educação midiática se torna essencial para capacitar os indivíduos a compreenderem e participarem criticamente do ambiente midiático no qual estão inseridos, potencializando pessoas a desenvolverem habilidades como a análise crítica, a verificação de fontes e a compreensão sobre como as informações são produzidas, distribuídas e consumidas nas diferentes mídias. No contexto das plataformas digitais, a educação midiática torna-se ainda mais crucial, já que através dela os usuários podem aprender a avaliar a confiabilidade das informações que encontram nas plataformas, bem como a identificar e lidar com a desinformação ou conteúdo de ódio.

Não obstante, as regulações podem também focar na área educativa como uma medida sustentável para garantir que soluções programadas a níveis governamentais e privados sejam cumpridas e tenham penetrabilidade no nível da sociedade civil. Com isso, a educação midiática e a regulação das plataformas digitais são complementares e trabalham juntas para garantir que as informações sejam apresentadas de maneira responsável e confiável, além de promover o engajamento crítico da população.

No nível privado, pode-se exigir das plataformas digitais que forneçam aos usuários ferramentas e recursos para desenvolver suas habilidades em Literacias Digitais e Informacionais e em Educação Midiática. Por exemplo, uma plataforma de mídia social pode ser obrigada a oferecer aos usuários treinamento sobre como identificar conteúdo manipulado, como avaliar fontes de informação e como identificar e denunciar conteúdo nocivo. As empresas também podem ser obrigadas a adotar medidas de transparência padronizadas sobre como coletam e usam os dados do usuário, além de permitir que os usuários controlem o tratamento de informações sensíveis.

A nível governamental, as regras voltadas para plataformas digitais podem exigir que as empresas tomem medidas para promover a Educação Midiática entre seus usuários. Por exemplo, um governo pode exigir que as plataformas de mídia social desenvolvam materiais educacionais e os disponibilizem para seus usuários. Os governos também podem estabelecer programas em escolas e bibliotecas públicas para ajudar os indivíduos a desenvolver essas habilidades. Ao exigir que as empresas promovam a Educação Midiática entre seus usuários e forneçam programas de treinamento e raciocínio crítico, os governos podem ajudar a garantir que os indivíduos estejam preparados para navegar no complexo cenário digital e tomar decisões informadas sobre as informações que encontrarem.

Por ser um contexto complexo e multifacetado, vale explorar dez pontos de ação como possíveis caminhos para programas de educação midiática no contexto da regulação de plataformas:

  1. Transparência e responsabilidade: os reguladores podem exigir que as plataformas digitais sejam transparentes sobre seus algoritmos de recomendação de conteúdo e práticas de coleta de dados. Isso pode ajudar os usuários a entender como seus dados estão sendo usados e dar a eles mais controle sobre sua experiência online.
  2. Proteção de dados: os governos podem criar regras que protejam os dados do usuário contra uso indevido por plataformas digitais. Isso pode incluir requisitos para que as plataformas obtenham o consentimento do usuário antes de coletar e compartilhar dados, bem como restrições sobre como os dados podem ser usados e compartilhados.
  3. Moderação de conteúdo: os reguladores podem exigir que as plataformas digitais tenham políticas claras e consistentes para moderar conteúdo e remover conteúdo prejudicial, como discurso de ódio, notícias falsas e desinformação.
  4. Proteção do consumidor: os governos podem criar regras que protejam os consumidores de práticas prejudiciais por plataformas digitais, como publicidade enganosa, preços injustos ou uso não autorizado de informações pessoais.
  5. Autorregulamentação do setor: as plataformas digitais também podem tomar medidas para se regular por meio de códigos de conduta, práticas recomendadas e padrões voluntários do setor.
  6. Capacitação de usuários: literacias de mídia e informação e a educação midiática podem ajudar os usuários a entender como as plataformas digitais funcionam, como seus dados estão sendo usados e como funcionam os algoritmos de recomendação de conteúdo. Isso pode dar aos usuários mais controle sobre sua experiência online e ajudá-los a tomar decisões informadas sobre o conteúdo que consomem e compartilham.
  7. Desenvolvimento de habilidades de pensamento crítico: os atores do campo podem ajudar a população a desenvolver as habilidades de pensamento crítico necessárias para avaliar o conteúdo da mídia, identificar preconceitos e informações incorretas e fazer julgamentos informados sobre a confiabilidade e a precisão das informações.
  8. Promover o comportamento ético: incorporar ações para que indivíduos entendam as implicações éticas de seu comportamento online e adotem práticas responsáveis para consumir e compartilhar conteúdo de mídia.
  9. Promoção da cidadania digital: incorporar ações para promover um senso de cidadania digital, em que os indivíduos são responsáveis por seu próprio comportamento online, bem como pela saúde e bem-estar da comunidade mais ampla.
  10. Políticas públicas: incorporar ações para enfatizar a importância da educação midiática e a relevância dessa prática para as plataformas. Podem ser criados mecanismos que assegurem que junto às medidas cabíveis a nível jurídico e governamental, também se dediquem recursos para programas educacionais em colaboração e parceria com as empresas proprietárias de plataformas digitais.

O objetivo das Diretrizes lançadas pela Unesco é apoiar o desenvolvimento e a implementação de processos regulatórios que garantam a liberdade de expressão e o acesso à informação, ao mesmo tempo em que lidam com conteúdo ilegal e nocivo. As consultas continuarão nos próximos meses para buscar uma ampla diversidade de vozes e posições a serem ouvidas em torno deste complexo tema que requer ação imediata para proteger a liberdade de expressão, o acesso à informação e todos os demais direitos humanos no ambiente digital.

Embora educação midiática e literacias informacionais e digitais não sejam uma panaceia para os desafios complexos impostos pela regulamentação das plataformas digitais, elas certamente podem ser uma parte importante de uma resposta de longo prazo. Ao promover um comportamento de mídia mais informado, crítico e responsável é possível criar um ecossistema de mídia digital mais saudável e sustentável.logo-jota

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