Opinião e Análise

Caio Vieira Machado

Thaís Aguiar

Não é de hoje que a ciência é discutida em espaços de tomada de decisão: de juízes a formuladores de políticas públicas, há muitos atores além dos cientistas preocupados em determinar o que é a verdade e decidir de acordo com ela (ou não). Pode parecer estranho, pois o imaginário popular reforça que a ciência ocorre no laboratório, com um cientista de jaleco manipulando químicos coloridos e efervescentes para atingir alguma verdade ou invenção.
Contudo, a realidade é mais complexa. Quando surge um desafio para a sociedade — como uma pandemia — o trabalho de cientistas de toda sorte, de biólogos de jaleco a cientistas sociais de camisa de manga curta, é complementado por governantes no esforço de se produzir uma política pública, considerando uma variedade de evidências. Hoje, vemos políticas públicas baseadas em "fake news", informações falsas e distorcidas, que vão parar no colo de um juiz que tem de decidir quais evidências são "ciência". Esse artigo explora o trabalho desses cientistas de toga, que participam do processo de "coprodução" da ciência, uma nova frente de pesquisa inaugurada pelo Instituto Vero, apoiada pelo Instituto Serrapilheira. 
O vínculo umbilical entre ciência e governo vem desde o surgimento do Estado moderno, que passou a se organizar em torno de informações. Dentro do processo de  racionalização do papel do Estado, foi necessário que os gestores se apoiassem no conhecimento especializado e desenvolvessem epistemologias próprias, como a estatística, para desenvolver suas políticas públicas. Daí a importância de órgãos como o IBGE e de medições como o censo demográfico: o gestor do país só sabe quantas são e onde estão as áreas que precisam desenvolver emprego, renda, saúde, escolaridade, entre outros, através dessas abordagens científicas. Inclusive, a própria eficiência do Estado é dependente desses dados.
<h3>Lições da saúde pública</h3>
Precisamos interrogar quem e em quais espaços a ciência é discutida dentro do poder público, pois é nesse âmbito que a ciência e os valores de uma sociedade são balanceados e materializados. Há inúmeros espaços de poder onde a ciência é apreciada e trazida para o âmbito de políticas, mas um foro merece especial atenção. O Judiciário é a instância que dá a palavra final sobre o que deve ser feito em diversas situações, incluindo políticas públicas. Evidentemente, o juiz não se aventura em um laboratório com béqueres e poções, nem ousa produzir conhecimento diretamente — mas muitas vezes recai sobre ele a avaliação sobre se um conjunto de evidências é suficiente ou não para justificar uma ação do Estado. Vimos esse debate judicial em inúmeros casos: sobre a distribuição de cloroquina, exigência do uso de máscaras, fechamento ou abertura de leitos. 
Ao contrário da Ciência, o Direito não precisa se preocupar com a explicação da realidade, mas sim torná-la justa (ou no mínimo conformá-la à lei). O perigo mora quando tomadores de decisão distorcem ou desconsideram indevidamente o conhecimento científico, levando a resultados que não são nem verdadeiros, e consequentemente nem justos.
Precisamos explorar como o judiciário entende ciência em meio a um debate científico altamente polarizado e permeado de desinformação, em particular no contexto da pandemia de Covid-19. Essa discussão é há muito conhecida por gestores de políticas públicas de saúde, no exemplo mencionado sobre disputa de medicamentos.
Vemos dois dilemas jurídicos que foram agravados durante a pandemia. Como a Constituição brasileira garante o direito universal à saúde, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/SUS">SUS</a> deve, em tese, fornecer tudo o que seja possível para qualquer brasileiro que dele necessite. Primeiro, surge uma limitação logística de recursos, pois não há como garantir essa prestação universal a todos os cidadãos. Segundo, surge a dúvida também, se o SUS deveria oferecer medicamentos que não têm eficácia comprovada, mas podem representar uma esperança para pacientes à beira da morte. Frequentemente, essas questões são apresentadas para decisão do Judiciário, que tem de olhar para a ciência e para o direito.
<h3>Fosfoetanolamina, a pílula do câncer</h3>
Um caso famoso dessas disputas é a decisão sobre a fosfoetanolamina sintética, ou “pílula do câncer”. Essa é uma substância experimental desenvolvida por laboratórios da USP para o tratamento da doença. A substância não tinha liberação da Anvisa e sua distribuição foi descontinuada, o que fez com que muitos pacientes buscassem obtê-la pela Justiça. 
Em um dos processos, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/TRF1">TRF1</a>) deixou de acolher os argumentos da Associação Médica Brasileira de que a substância não tinha registro na Anvisa, nem eficácia comprovada e que não caberia ao Poder Judiciário interferir no poder discricionário da administração pública. Ao invés disso, sob relatoria do então desembargador federal Kassio Marques, beneficiou a paciente e autora do processo por entender que “a toda evidência, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana devem prevalecer sobre os aspectos formais de liberação da substância”. 
Quando esse mesmo debate chegou ao Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>) pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5501, a mais alta corte do país julgou inconstitucional a lei que autorizava a distribuição da "pílula do câncer". Dessa vez, os argumentos foram de que “a esperança que a sociedade deposita nos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência”. A decisão foi mais cautelosa e insistiu na segurança e eficácia dos fármacos, na observância do “rigoroso crivo científico” e na atuação da Anvisa enquanto órgão competente para avaliar a liberação da substância. A decisão do STF foi elogiada pela comunidade científica.
Se a decisão final sobre a polêmica em torno da “pílula do câncer” pode ser considerada justa, é um julgamento subjetivo que certamente será visto de formas distintas por profissionais de saúde e pacientes terminais. Menos controversa é a constatação de que, na decisão do TRF, o discurso jurídico minimizou a importância das evidências diante do valor da vida; na decisão do STF, considerou-se que seguir os parâmetros da comunidade científica seria o melhor caminho para trazer segurança às políticas públicas de saúde. Ou seja: uma decisão considerou justo dar menor importância aos fatos, outra considerou que a justiça só seria possível através deles.
<h3>O debate antes e depois da pandemia</h3>
O raciocínio para dosar o peso da ciência nas decisões pode ficar ainda mais complexo nos casos em que há mais riscos envolvidos. Durante a pandemia, muitos gestores públicos tiveram que tomar decisões rápidas para conter o avanço da Covid-19, num cenário de urgência em que pouco se sabia sobre a realidade. As poucas informações disponíveis tiveram seu alcance prejudicado por uma onda de desinformação e rejeição da ciência em andamento.
Nesse segundo caso, o judiciário foi levado a apreciar a eficácia e segurança das vacinas. Ao mesmo tempo em que pesquisadores de saúde afirmavam que as vacinas eram seguras e podiam salvar vidas, políticos de Uberlândia aprovaram lei contrária à vacinação compulsória, argumentando pela liberdade individual dos que não queriam se vacinar, mas continuar circulando normalmente.
No caso, coube ao Judiciário decidir sobre a constitucionalidade da lei de Uberlândia na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 946. A decisão entendeu que o argumento de proteção à liberdade dos que não queriam se vacinar representava um risco à saúde coletiva, em meio a uma emergência sanitária sem precedentes. Ainda no julgamento da ADPF 946, o STF chamou atenção para sua jurisprudência firme no sentido de avaliar matérias de saúde desde princípios de precaução e prevenção, que privilegiam a adoção de medidas menos danosas em cenários de incerteza.
Para a corte, a lei municipal feriu esses parâmetros do STF, pois contrariou o consenso médico-científico sobre a importância da vacina para reduzir o risco de contágio e para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que pudessem ser infectadas. Ou seja: o Supremo partiu do que a ciência afirmou ser verdadeiro para tomar a decisão que considerou ser justa.
Esses exemplos permitem refletir que as tentativas de explicar a realidade não são únicas nem neutras, e que o discurso que prevalece impõe seus valores sobre os demais. E isso continuará sendo uma realidade com extensos impactos na sociedade brasileira — seja na judicialização da saúde, no enfrentamento à pandemia ou em questões que se apresentem no futuro.
Por isso, quando se fala em conhecimento científico e seu valor para a sociedade, não basta considerar meramente a procedência das informações. Tão ou mais importante quanto atentar para o conhecimento produzido é atentar para quem o discute, quem o aplica e como o aplica. Ao reconhecermos que direito e ciência são institutos mais próximos do que aparentam ser, abrimos espaço para tornar essa relação cada vez mais potente e harmônica: e assim, a sociedade tem melhores chances de perceber os benefícios de políticas públicas baseadas em evidências e decisões cada vez mais justas e alinhadas aos fatos.

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JOTA

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