Opinião e Análise

Beatrice Bonami

Rodger Richer

Isabela Inês Bernardino

Recentemente, foi <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/07/constituicao-nheengatu-web.pdf">anunciada</a> a tradução da Constituição Federal de 1988 da sua língua original (português) para a língua nativa Nheengatu. Esse trabalho foi feito por um grupo de 15 indígenas bilíngues da região do Alto Rio Negro e Alto Tapajós, financiado pelo Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>).
O processo de tradução contou tanto com a tradução linguística quanto cultural de termos e conceitos relevantes para o contexto das terras falantes Nheengatu – um território de vasta proporção na fronteira entre Brasil, Colômbia, Peru e Bolívia. 
O lançamento da Constituição traduzida é um marco importante no nosso país, trazendo à reflexão a importância da diversidade linguística e pluriversalidade cultural do território brasileiro. A iniciativa também traz a oportunidade para falarmos sobre como as tecnologias digitais impactam na preservação de dialetos e idiomas não dominantes no Brasil e como projetos podem combater o colonialismo digital na contemporaneidade.
<h3>Pluralidade linguística e resistência</h3>
O último levantamento do <a href="https://educa.ibge.gov.br/criancas/brasil/nosso-povo/20507-indigenas.html#:~:text=Existem%20hoje%20305%20etnias%20e,%25">Censo Demográfico de 2010</a> registrou que 305 etnias indígenas brasileiras perpetuam 274 idiomas no país, como Bororo, Nheengatu, Tikuna, Sataré-Mawé, entre outros. A <a href="https://en.unesco.org/news/upcoming-decade-indigenous-languages-2022-2032-focus-indigenous-language-users-human-rights">Unesco</a> calcula que há no mundo 7.000 idiomas, incluindo os dominantes, sendo, infelizmente, 40% deles em algum nível de perigo de extinção, como  a maioria das línguas indígenas do Brasil. Nesse sentido, iniciativas como a tradução de documentos oficiais e a criação de recursos digitais constituem passos importantes na preservação cultural e linguística brasileira. 
Em linha deste debate, ao promulgar a Constituição traduzida, a ministra Rosa Weber justificou a escolha pela língua Nheengatu por este idioma ter relevância histórica nas tratativas regionais na fronteira entre Brasil, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia. De fato, as línguas nativas têm o potencial de fortalecer o intercâmbio internacional, principalmente entre grupos minoritários. A língua Nheengatu é tão vasta em sua quantidade de falantes que é conhecida como língua geral amazônica, do tronco tupi-guarani, um dos únicos idiomas que ainda reflete o tupi antigo, com a prevalência de vogais, sendo difundida, sobretudo,  através da oralidade.
Em geral, pode-se dizer que as línguas nativas sul-americanas sobreviveram à modernidade através da sua união com as línguas africanas, que geraram diversos sotaques e expressões regionais que se mesclaram com a língua portuguesa e espanhola. Durante a colonização portuguesa do território brasileiro, quaisquer idiomas que não o português foram proibidos, ampliando ainda mais a lacuna comunicativa entre regiões e populações. Por isso, a teoria decolonial ou pós-colonial se torna indispensável para o resgate das práticas e hábitos não-ocidentais, tal como o fortalecimento das línguas nativas. 
A teoria pós-colonial ainda traz um ramo ligado às tecnologias digitais, argumentando que apropriações e desenvolvimento digitais devem, também, ser repensados para desconstruir práticas coloniais que hoje as grandes corporações exercem sobre populações minoritárias. Contudo, compreender teorias e práticas pós-coloniais nem sempre é um exercício simples, uma vez que a primeira grande tarefa é definir o que é o colonialismo. 
<h3>Colonialismo digital e tecnodiversidade</h3>
O objetivo do colonialismo é estender o autopoder para dominar outros corpos ou entidades. Ele teve como maior marco histórico o início das navegações do continente europeu, com o propósito de colonizar o “Novo Mundo”, conhecido como territórios nativos americanos e outras geografias “além-mar”. Assim, seguindo o trabalho de Anibal Quijano, é possível apreender que a colonialidade é uma estrutura de poder, o que sugere que a pós-colonialidade ou a descolonização também é uma estrutura de poder, porém, em ordem inversa, também conhecida como emancipação e independência.
Deivison Faustino e Walter Lippold, no livro Colonialismo digital, apontam que a colonialidade virtual bloqueia a tecnodiversidade e as possibilidades dos povos de criarem e recriarem seus aparatos tecnológicos. É em virtude dela que a tecnologia gera uma dominação política, econômica e social de outra nação ou território.
O professor Ivo Queiroz, em sua análise sobre Frantz Fanon, afirma que a luta pela emancipação, em Fanon, seria a morte do colonizador e do colonizado per si e o reconhecimento de si, enquanto partícipe da generalidade humana. Não é um esforço de adorar ou refutar as tecnologias, mas de usá-las de forma a estarem a serviço da própria emancipação. 
Assim, sistemas digitais podem se concentrar na pluralização a fim de aprimorar o diálogo entre as culturas. Dan Breznitz argumenta que a inovação pode assumir várias formas, uma vez que as comunidades ao longo da história têm inovado para se adaptar ao tempo e aos ambientes. No entanto, Breznitz aponta que há um desequilíbrio na forma como descrevemos a inovação: nos referimos às práticas inovadoras como a imagem de novos dispositivos tecnológicos do Vale do Silício, mas não à tecnologia desenvolvida por comunidades de reservas extrativistas na Amazônia.
O objetivo de trazer à tona a decolonialidade ou pós-colonialidade aqui é entender como as práticas de descolonização podem ajudar grupos e nações a descobrirem suas formas e apropriações tecnológicas. A tradução da Constituição Brasileira em Nheengatu traz a oportunidade para pensarmos a apropriação e criação digital por parte de idiomas com poucos recursos ou dialetos de raiz indígena. 
Um outro exemplo interessante foi o trabalho realizado por <a href="https://teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27152/tde-12062019-102532/publico/ThiagoCardosoFrancoVC.pdf">Thiago Franco</a> ao observar a prática digital da etnia Krahô no Tocantins. O autor pontua que em uma era onde dispositivos e aplicativos têm uma conotação pessoal e individual, é interessante que os integrantes da etnia Krahô performam um uso coletivo de construção de narrativas, uso de dispositivos móveis e produção audiovisual. Pelo fato de o território não ter estrutura para energia elétrica, os habitantes ali se deslocavam ao final da tarde para perto de um gerador, onde podiam conectar seus telefones à energia e acessar aplicativos, de forma coletiva e compartilhada. Isso também se evidenciou na produção audiovisual, quando as publicações eram feitas em modo plural, destacando perfis que, ao invés de serem pessoais, figuravam duas, três ou até um núcleo familiar completo. 
O mesmo pôde ser observado durante a <a href="https://www.researchgate.net/publication/343862541_Quarentenas_Amazonicas_Vol_5">pandemia</a>, quando as comunicações compartilhadas sobre informações sobre a Covid-19 se deram de forma "clusterizada", em que evidências eram agrupadas por coletivos indígenas e compartilhadas entre grupos e núcleos familiares, ao invés uma única pessoa que busca informações de forma individual.
Com isso, vale afirmar aqui que a publicação da tradução da Constituição em Nheengatu é a materialização e celebração de um movimento necessário de preservação da diversidade linguística, principalmente em um tempo em que recursos digitais formam opinião pública e política, e que jovens se adaptam a línguas dominantes para completarem o ensino, integrarem o mercado de trabalho e participarem ativamente da cultura digital. 
Este artigo objetivou apontar essa tendência e evidenciar este campo de pesquisa em desenvolvimento, tendo consciência de que o movimento de preservação deve andar em paralelo ao de repensar práticas imperialistas e coloniais digitais exercidas pelas grandes corporações. É nosso dever como sociedade civil, estar consciente deste movimento e dar suporte às iniciativas que repensem os extrativismo de dados, o design unilateral digital que vem das sociedades ocidentais do norte global para comunidades minoritárias; e preservar heranças culturais e linguísticas que foram negligenciadas pela nossa história brasileira, que é muito maior que somente a nossa história colonialista.

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JOTA

Iniciativa é oportunidade para discutir como tecnologias digitais impactam na preservação de dialetos e idiomas não dominantes

A tradução da Constituição para Nheengatu e as práticas decoloniais digitais

Tradução da Constituição em Nheengatu é a materialização e celebração de um movimento necessário de preservação da diversidade linguística