Opinião e Análise

Rony Coelho

Maria Letícia Machado

Izaide Ribeiro dos Santos

A completude dos dados raciais nos sistemas de informação do SUS fornece um mecanismo necessário para orientar políticas de saúde que visem reduzir desigualdades raciais no acesso, prevenir riscos e promover a saúde de populações específicas.
No Brasil, onde mais de 55% da população se autodeclara preta ou parda, o preenchimento adequado do quesito raça/cor pelos profissionais de saúde, com base na autodeclaração dos usuários, pode evidenciar desigualdades raciais na incidência de diferentes desfechos de saúde.
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Melhorar a qualidade dos dados de saúde, com ênfase na coleta e registro do quesito raça/cor, foi um dos principais objetivos da publicação da <a href="https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/sobre/a-secretaria/subsecretaria-de-articulacao-institucional-e-acoes-tematicas/coordenacao-geral-de-programas-e-acoes-de-saude/acoes-de-saude/politica-nacional-saude-integral-populacao-negra1.pdf">Política Nacional de Saúde Integral da População Negra</a> (PNSIPN), criada há 15 anos pelo Ministério da Saúde que estabelece que a coleta dessa informação deve ser padronizada e obrigatória em todos os serviços de saúde, garantindo que a autodeclaração dos pacientes seja respeitada.
Uma <a href="https://link.springer.com/article/10.1186/s12939-024-02214-3">pesquisa</a> publicada recentemente demonstra que com o aumento da completude dos dados no quesito raça/cor no Sistema de Informações Hospitalares (SIH), as desigualdades raciais nas taxas de internação ficaram mais evidentes em diversas causas —, como agressões, tuberculose, doenças hipertensivas, internações de risco na gravidez e acidentes de motocicleta.
O estudo analisou longitudinalmente dados de internações hospitalares no Brasil entre 2010 e 2022, examinando a relação das tendências na completude dos registros de raça/cor e desigualdades raciais nas taxas de internação de diversas causas.
A <a href="https://ieps.org.br/nota-tecnica-30/">Nota Técnica 30</a> do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) analisou a evolução da completude do quesito raça/cor entre 1996 e 2022, considerando os determinantes da sua completude e focando nos quatro sistemas principais da saúde: o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA). 
O estudo identificou que a evolução do registro raça/cor tem sido desigual no país e entre os sistemas de saúde. SINASC e SIM apresentaram altos níveis de completude (cerca de 97%) na média do último quinquênio do período analisado, enquanto SIH e SIA tiveram resultados inferiores (76% e 52%, respectivamente). A análise mostra que a evolução na completude dos dados não é uniforme entre as regiões do Brasil, com algumas áreas apresentando progresso mais lento e que também a completude varia conforme a complexidade da internação e o nível de atendimento (municipal, estadual, federal), dentre outros fatores associados.
Evolução da completude do quesito raça/cor
<img class="aligncenter wp-image-512487 size-full" src="https://portal.jota.info/wp-content/uploads/2024/09/grafico-ecq.png" alt="" width="1384" height="1771" />
Fonte: Coelho, R., Remédios, J., Nobre, V. e Mrejen, M., (2023). O quesito raça/cor no DataSUS: evolução e determinantes da completude. Nota Técnica n. 30. IEPS: São Paulo. Disponível <a href="https://ieps.org.br/nota-tecnica-30/">aqui</a>.
<h3>Portaria 344/2017 e o código “99”</h3>
Em virtude da completude insatisfatória dos dados, a <a href="https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&amp;pagina=62&amp;data=02/02/2017">Portaria 344/2017</a> do Ministério da Saúde, buscou regulamentar seu preenchimento nos formulários dos sistemas de informação em saúde. O artigo primeiro da Portaria estabelece a obrigatoriedade do preenchimento do quesito raça/cor pelos profissionais de saúde e estipula que, em casos onde o usuário de saúde não possa se autodeclarar, a responsabilidade recairia sobre familiares, responsáveis ou profissionais de saúde.
Além disso, a normativa determina que o Ministério da Saúde apresente anualmente  um relatório sobre a situação de saúde da população negra no Brasil. No entanto, o instrumento também não teve a eficácia esperada, pois entre as codificações possíveis, além das 5 categorias raciais oficiais (branco, preto, pardo, amarelo e indígena), o chamado código “99” (sem informação), que deixa margem para o preenchimento formal do formulário, mas sem garantia  da coleta precisa e efetiva de informações raciais.
Apenas em março de 2023, na <a href="https://www.conass.org.br/wp-content/uploads/2023/03/4.-c-Demanda-rac%CC%A7a-cor.pdf">3ª Reunião Ordinária</a> da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), determinou-se que os sistemas Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde (CadSUS), SIA e SIH devem ser ajustados de forma a não mais permitir o cadastro de novos usuários utilizando o código ”99” (sem informação).
Embora ainda seja passível de uma avaliação mais acurada, esse pode ser considerado um avanço concreto para a melhoria do preenchimento das informações de raça/cor dos usuários do SUS, que se soma a outros esforços recentes capitaneados pela atual gestão do Ministério da Saúde, como a <a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-07/aplicativo-do-sus-passa-aceitar-dados-sobre-raca-e-nome-social">atualização do aplicativo Meu SUS Digital</a> (antigo Conecte SUS) que permite aos usuários preencher de forma autônoma ou corrigir sua autodeclaração racial.
Restam ainda alguns desafios técnicos e também políticos-sociais  para o avanço da PNSIPN e para a redução de desigualdades no planejamento e implementação de políticas de saúde voltadas para a população negra.
<h3>Desafios técnicos</h3>
Quanto aos desafios técnicos, podemos destacar o contínuo aprimoramento da completude e do monitoramento dos registros de informações de saúde dessa população. Nesse sentido, é fundamental estabelecer indicadores claros e objetivos para medir o progresso, como a taxa de preenchimento dos campos de raça/cor nos diferentes sistemas de informação em saúde.
Além disso, a realização de auditorias periódicas e a análise de dados desagregados por raça/cor, podem permitir a identificação das áreas com maior necessidade de intervenção, direcionar os esforços para a melhoria da qualidade dos dados e adequação do planejamento das ações de saúde. A própria Portaria 344/2017 determina a necessidade de relatórios anuais sobre a situação de saúde da população negra, o que é crucial para monitorar o progresso e identificar áreas que necessitam de intervenção.
Outro desafio é a integração de dados entre diferentes sistemas de saúde, que impacta a análise e a utilização das informações raciais. A falta de interoperabilidade entre os sistemas, como o SIH, SIA, SINASC e SIM, dificulta a consolidação de dados e a geração de relatórios que possam informar políticas públicas de forma mais eficaz.
Avançar com modelos de informação e computação para promover a interoperabilidade desses sistemas via Rede Nacional de Dados em Saúde, não apenas facilitaria a identificação de desigualdades raciais, mas também promoveria uma visão holística da saúde da população, permitindo intervenções mais direcionadas e eficazes.
Também nesse sentido, a qualificação dos cadastros antigos que ainda utilizam o código “99” como indicador de dados faltantes é essencial para melhorar a precisão e a utilidade dos registros de saúde. A requalificação desses cadastros envolve a revisão e a correção dos registros, substituindo o código genérico por informações mais específicas e precisas. 
sse processo requer uma abordagem meticulosa, combinando esforços de recadastro com campanhas de conscientização para garantir que os usuários possam atualizar suas informações de forma correta. A requalificação dos cadastros antigos não só fortalece a base de dados atual, mas também corrige erros históricos que podem ter perpetuado análises imprecisas sobre a saúde da população negra e de outros grupos raciais no Brasil.
Por fim, ainda no campo dos desafios técnicos, podemos apontar a inexistência de dados raciais públicos no Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB), que representa um obstáculo significativo para a compreensão das desigualdades raciais na saúde no Brasil.
Embora o SISAB concentre uma vasta gama de informações sobre a produção de resultados das equipes de saúde, a falta de dados desagregados por raça/cor limita a capacidade de análise e planejamento de políticas públicas que atendam às necessidades específicas de diferentes grupos raciais.
A ausência de informações raciais acessíveis impede que gestores e pesquisadores identifiquem padrões de desigualdade, estabeleçam prioridades e desenvolvam intervenções direcionadas, mantendo a invisibilidade das disparidades raciais no sistema de saúde. Portanto, é crucial que haja um esforço para integrar e disponibilizar dados raciais no SISAB, garantindo que as políticas de saúde sejam fundamentadas em informações completas e representativas, ou seja, confiáveis.
<h3>Racismo como determinação social da saúde e os desafios políticos-sociais</h3>
O reconhecimento social do impacto do racismo na saúde é um problema fundamental que precisa ser enfrentado para promover a equidade no acesso e na qualidade dos serviços de saúde. E aqui, não estamos mais no campo dos desafios técnicos, mas dos políticos-sociais. Muitas vezes, as desigualdades raciais são minimizadas ou ignoradas, o que dificulta a mobilização da sociedade e dos gestores públicos para a adoção de políticas que visem mitigar essas disparidades.
É essencial que haja uma conscientização ampla sobre como o racismo estrutural e institucional impactam a saúde da população negra, levando a resultados desfavoráveis em diversas áreas e condições de saúde. Campanhas educativas e iniciativas de sensibilização são necessárias para informar a população e os profissionais de saúde sobre a importância de coletar e utilizar os dados racializados na análise do perfil epidemiológico, além de fomentar um debate público que reconheça o racismo como um determinante social da saúde. Somente com esse reconhecimento será possível implementar ações efetivas que promovam a justiça social e a equidade na saúde.
O treinamento de estudantes e profissionais de saúde é crucial para garantir que a questão racial seja abordada de maneira adequada e sensível para o acolhimento e tratamento da população de forma equânime. A formação acadêmica deve incluir conteúdos que abordem a história do racismo, suas manifestações no sistema de saúde e as implicações das desigualdades raciais nos resultados de saúde.
Além disso, é fundamental que os profissionais sejam capacitados para realizar a coleta de dados raciais de forma respeitosa e informada, reconhecendo a importância dessa informação para a formulação de políticas públicas. Programas de treinamento contínuo e workshops que promovam a reflexão crítica sobre preconceitos e estigmas criados pelo racismo, podem contribuir para a formação de uma nova geração de profissionais comprometidos com a promoção da equidade na saúde.
Ao investir na educação e na sensibilização dos futuros e atuais profissionais, cria-se um ambiente mais inclusivo e justo, capaz de atender às necessidades de todos os grupos raciais. Lembrando Angela Davis, "numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista".
O entendimento de que o conceito de raça é uma construção social, e não uma realidade biológica, é um desafio que deve ser enfrentado no contexto das políticas de saúde. Essa perspectiva reconhece que as categorias raciais são produtos de contextos históricos e sociais, refletindo relações de poder e desigualdade que se perpetuam ao longo do tempo.
Portanto, as disparidades raciais na saúde não são meramente questões individuais, mas sim fenômenos sociais que exigem uma análise crítica e contextualizada. É fundamental que os profissionais de saúde, gestores e a sociedade em geral compreendam que a raça, como construção social, está sujeita às transformações e vicissitudes dos momentos históricos, influenciando as experiências de saúde e acesso a serviços.
Essa compreensão deve ser incorporada nas políticas de saúde, promovendo uma abordagem que leve em consideração as especificidades culturais e sociais de cada grupo racial, contribuindo para a construção de um sistema de saúde mais equitativo e inclusivo.
Concluindo, a completação dos dados raciais nos sistemas de saúde brasileiros é um desafio que envolve dimensões técnicas, políticas e sociais. Apesar de avanços recentes, como a proibição do código "99" e a atualização do aplicativo Meu SUS, ainda há lacunas significativas. A falta de dados precisos sobre raça/cor impede uma análise aprofundada das desigualdades e dificulta a implementação de políticas públicas eficazes para a população negra.
Para superar esse desafio, é fundamental investir na qualificação dos profissionais, aprimorar a integração de sistemas de informação, promover a conscientização sobre o racismo estrutural e institucional, bem como garantir a coleta de dados de forma padronizada e respeitosa. A completude dos dados raciais é um caminho crucial para reduzir as desigualdades em saúde e construir um sistema de saúde mais justo e equitativo para todos.

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JOTA

Desafios não são somente técnicos e/ou tecnológicos, mas também político-sociais

Completude de dados raciais: um caminho para reduzir desigualdades em saúde

Desafios não são somente técnicos e/ou tecnológicos, mas também político-sociais