Opinião e Análise

Anthony Novaes

Nos dias 27, 28 e 29 de setembro, a Conferência PLAIN 2023<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> foi realizada em Buenos Aires, na Argentina. Esse evento organizado pela Plain Language Association International (PLAIN) foi realizado pela primeira vez na América Latina, na Universidad de Buenos Aires (UBA), em parceria com o Observatório de Linguagem Simples da Faculdade de Direito da UBA (OLC/UBA). O tema da conferência foi: “Conectar culturas: comunicação clara para construir pontes”. E por que isso é um fato portador de futuro?
A linguagem simples permite que a comunicação seja clara, pois o texto, a estrutura e o design são tão claros que a pessoa que lê consegue encontrar facilmente o que busca, compreender o que encontra e utilizar essa informação. Assim, é possível superar um formato incompreensível e impenetrável, sem perder a precisão técnica necessária.
Isso interessa muitíssimo ao direito, cuja informação é tradicionalmente eivada de prolixidade, obscuridade e falta de clareza. O direito constitui uma realidade excludente por design, um sistema complexo e não-navegável, seja em relação ao sistema judicial em si, a serviços públicos, resolução extrajudicial de conflitos...
Isso porque requer conhecimentos técnicos que não são facilmente acessíveis e se caracteriza por uma linguagem hermética, truncada e sofisticada – em português chamada de “juridiquês”, em espanhol de abogadezco e em inglês de legalese. Nesse cenário, técnicas como o legal design e a linguagem simples – duas faces de uma mesma moeda<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> – têm muito a contribuir.
Além disso, vários países latino-americanos vêm desenvolvendo iniciativas de Linguagem Simples a partir de órgãos públicos, para tornar a comunicação entre Estado e cidadãos mais clara, eficiente e acessível. Não sem alguma resistência, essa técnica que também se constitui em movimento social (a Linguagem Simples) está mudando paradigmas e derrubando barreiras.
De acordo com dados da PLAIN<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a Argentina realizou uma pesquisa sobre iniciativas de Linguagem Simples no Judiciário nos países da região, e o relatório emitido pela International Open Justice Network apontou que, dos 20 países pesquisados, 10 já possuíam alguma iniciativa nesse sentido, sendo 92 ações em agosto de 2022. Os países com o maior número de iniciativas são Argentina (34), Brasil (13), México (12) e Chile (4), sendo programas de conscientização, regulamentação, políticas públicas, publicações como guias e manuais e ações de networking.
Na Argentina, foi fundado o Observatório de Linguagem Simples da Faculdade de Direito da UBA (OLC/UBA), presidido pela juíza María Lorena Tula del Moral (carinhosamente chamada de Juíza Lola). Ela desenvolveu um trabalho sem precedentes a partir da circunscrição judiciária em que atua, que inspirou e impulsionou a transformação que se vê hoje.
Em 2015, quando ainda não havia lei ou marco regulatório na Argentina, foi criado um manual de Justiça Aberta<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, focado na construção de um Judiciário mais transparente, acessível e próximo dos cidadãos. Após conhecer a Linguagem Simples, a Juíza Lola e sua equipe trabalharam no redesenho dos modelos de documentos do 13º Juzgado Penal, Contravencional y de Faltas del Poder Judicial de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Esse projeto recebeu uma menção honrosa no World Justice Challenge 2021<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Nesse longo processo de mudança de paradigma, foi norte a busca de um Judiciário mais moderno, para os cidadãos e pelos cidadãos. Assim, foi possível modificar modelos, alterar a forma de comunicação, escrever e falar<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> de maneira mais clara, trabalhando para que acusados, vítimas, familiares e demais interessados pudessem entender de fato o que estava se passando no processo judicial.
Inicialmente, foram criadas diretrizes de redação geral e em linguagem simples. Após isso, foi realizada uma pesquisa para identificar a resposta dos cidadãos aos documentos e decisões orais remodelados – uma pesquisa de opinião ao final de uma audiência, para aferir se puderam entender bem, se precisaram de ajuda adicional.
Um caso que merece destaque, ocorrido antes da pandemia, foi uma ocasião em que foram impostas medidas cautelares diversas da prisão a um réu, que deixou de cumpri-las. O réu foi notificado três vezes para que comparecesse a audiência a fim de prestar esclarecimentos.
E por que ele não comparecia ao tribunal? A pessoa responsável por notificá-lo não entendia o conteúdo da notificação, e por isso disse ao réu que ele não precisava fazer nada nem comparecer ao tribunal... Ele quase terminou preso! Por isso é importante pensar na compreensibilidade da informação jurídica não apenas para os cidadãos, mas também para os próprios auxiliares da justiça.
Esse trabalho pioneiro se desdobrou na fundação do Observatório (OLC/UBA) e em outras medidas de capacitação a organismos públicos (associações de juízes e Ministério Público, por exemplo). Se no começo os juízes estranhavam o uso de redes sociais para contatar as partes e se aproximar de maneira transparente, depois entenderam que se os cidadãos não entendem a mensagem, não há confiança.
Alguns advogados enxergaram uma potencial ameaça a seu ganha-pão, mas enfim viram que o advogado é sempre necessário e que é possível agregar valor aos clientes por meio do aumento da compreensão da informação que lhes é comunicada. A quantidade de audiências e notificações diminuiu (um efeito prático positivo que demonstra o ROI<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> dessa abordagem) e hoje já há lei sobre Linguagem Simples na província de Buenos Aires<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
A Conferência PLAIN 2023 também é fruto direto destes esforços. Nela, houve painéis sobre variados temas concernentes à Linguagem Simples, a maioria traçando uma conexão com o Direito. Um exemplo foi o painel sobre Legal Design, moderado pela advogada e legal designer argentina Cecilia Ferrari, com a participação de Helena Haapio (pioneira finlandesa em Legal Design), Tessa Manuello (pioneira francesa em Legal Design) e Sofía Escobar Vallejo (Legal Design Leader na Háptica, na Colômbia), trazendo cases da vida real que mostram Legal Design e Linguagem Simples em estreita colaboração.
A Conferência também trouxe uma aula magna de Heloísa Fischer, especialista brasileira em Linguagem Simples; o trabalho do IRIS – Laboratório de Inovação e Dados do Governo do Ceará, em Linguagem Simples, obteve reconhecimento internacional, sendo laureado com o Cheryl Stephens Awards; e pude ministrar a comunicação “Legal Design e Linguagem Simples: duas faces da mesma moeda”, explorando a conexão entre ambos na teoria e prática.
No Brasil, a Recomendação 144 do Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CNJ">CNJ</a>), que recomenda o uso de Linguagem Simples e elementos visuais (Legal Design) que facilitem a compreensão da informação, indica um futuro em que a falta de clareza ficará para trás, reforçado pelo discurso de posse do ministro Luís Roberto Barroso como presidente do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>)<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Nele, Barroso apontou a comunicação - melhorar a interlocução com a sociedade e explicar didaticamente as decisões [judiciais] – como um eixo de sua gestão: “expondo em linguagem simples o nosso papel, explicando didaticamente as decisões, desfazendo incompreensões e mal-entendidos”. A Linguagem Simples para o Direito e para a sociedade veio para ficar, e a América Latina é um celeiro para isso!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Mais informações em: <a href="https://www.plain-language-2023.com/">https://www.plain-language-2023.com/</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Vide o artigo disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulando-a-inovacao/a-evolucao-da-comunicacao-juridica-legal-design-linguagem-simples-e-linguagem-computacional-05092023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulando-a-inovacao/a-evolucao-da-comunicacao-juridica-legal-design-linguagem-simples-e-linguagem-computacional-05092023</a> .
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Conforme informações disponíveis no site da Conferência PLAIN 2023, em <a href="https://www.plain-language-2023.com/en">https://www.plain-language-2023.com/en</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível para acesso em: <a href="https://juzgado13pcyf.webnode.page/nuestro-libro/">https://juzgado13pcyf.webnode.page/nuestro-libro/</a>.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Equivalente a uma Vara Criminal no Brasil.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Mais informações em: <a href="https://worldjusticeproject.org/world-justice-challenge-2021/honorable-mentions">https://worldjusticeproject.org/world-justice-challenge-2021/honorable-mentions</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Em prestígio ao princípio da oralidade no processo penal.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> ROI é um acrônimo para Retorno sobre o Investimento.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Acesse em: <a href="https://lenguajeclaro.jusbaires.gob.ar/app/uploads/2022/09/LEY-15184-LC-PROV-BS-AS.pdf">https://lenguajeclaro.jusbaires.gob.ar/app/uploads/2022/09/LEY-15184-LC-PROV-BS-AS.pdf</a>.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em: https://static.poder360.com.br/2023/09/Discurso-de-posse-28set2023.pdf

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