Opinião e Análise

Thiago Gontijo Vieira

Com o advento da pandemia da Covid-19, a Justiça brasileira passou a enfrentar o seu maior desafio: como manter o acesso dos cidadãos à justiça e aos serviços por ela prestados, apesar das restrições que atingiram a todos?
Em fevereiro de 2020, a partir de emergência de saúde pública de importância nacional, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes da federação passaram a adotar uma série de medidas, impostas tanto ao setor público quanto à iniciativa privada, tais como quarentena, isolamento, limitação de acesso a rodovias, portos e aeroportos e uso obrigatório de máscaras de proteção<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O objetivo maior era a proteção da coletividade, evitando-se a disseminação do vírus e o agravamento de seus efeitos para a vida e a saúde de toda a sociedade. Nesse cenário, somente atividades consideradas essenciais puderam seguir em funcionamento, a exemplo daquelas relacionadas ao atendimento de vítimas de crimes, em especial mulheres em situação de violência doméstica e familiar, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.
Antes da pandemia, mesmo com os avanços tecnológicos do processo eletrônico, a maior parte dos serviços judiciários era disponibilizada ainda fisicamente. Advogados e cidadãos precisavam se deslocar até os espaços físicos dos fóruns e tribunais para apresentar suas manifestações e participar de audiências e julgamentos, e o regime de trabalho de juízes e servidores era presencial, como regra.
Com a caracterização da Covid-19 como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OMS">OMS</a>), o Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CNJ">CNJ</a>) determinou, em todo o país e temporariamente, a suspensão do expediente forense e dos prazos processuais. Foram suspensos também os atendimentos presenciais às partes, advogados e interessados, bem como o trabalho nos espaços físicos dos tribunais (Resolução 313/2020). Contudo, diante desse cenário de paralisia e considerando o caráter ininterrupto da justiça, como seria possível assegurar a continuidade da atividade jurisdicional?
Para se garantir o acesso à justiça nesse período emergencial, o CNJ estabeleceu – em âmbito nacional – o regime de plantão extraordinário, com manutenção dos serviços em situações consideradas essenciais. Foi garantida, por exemplo, a apreciação de questões penais urgentes relacionadas a crimes, prisões, medidas cautelares, pedidos de busca e apreensão e postulações de liberdade.
Ademais, o atendimento aos usuários passou a ser realizado virtualmente, e o regime de trabalho de juízes e servidores deixou de ser presencial, migrando para ambientes remotos, prioritariamente. É dizer, tanto atores externos (advogados, procuradores, interessados e cidadãos em geral) quanto internos (magistrados, servidores, estagiários e colaboradores) passaram a atuar de maneira online<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
No Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>), o principal avanço diz respeito ao ambiente virtual de julgamento colegiado, que representou uma relevante solução de eficiência jurisdicional e de ampliação do acesso à justiça<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Conforme dados do Corte Aberta<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, de 2020 a 2023, 98,7% das quase 32 mil decisões colegiadas foram proferidas no plenário virtual, que viabiliza a participação assíncrona das partes processuais e o acompanhamento das deliberações por toda a sociedade, na página da Corte.
Essas inovações estão sendo consolidadas no Justiça 4.0<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, programa que aproxima o Poder Judiciário da sociedade, ao disponibilizar novas tecnologias e impulsionar a transformação digital, garantindo serviços mais rápidos, eficazes e acessíveis. Trata-se de iniciativa do CNJ em cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Quanto à acessibilidade digital, duas políticas públicas do programa são especialmente relevantes. A primeira é o Juízo 100% Digital (Resolução 345/2020 do CNJ), por meio do qual todos os atos processuais são praticados exclusivamente por meio eletrônico e remoto, pela internet, inclusive audiências e sessões de julgamento, que ocorrem exclusivamente por videoconferência. Cada tribunal e unidade judiciária adere ao Juízo 100% Digital e, após isso, as partes de cada processo dizem se aceitam ou a tramitação processual nessa modalidade 100% digital. Atualmente, das 23.205 serventias judiciárias, quase 70% (16.230) disponibilizam o serviço de tramitação exclusivamente digital.
A segunda é o Balcão Virtual (Resolução 372/2021), canal permanente, direto e imediato, de acesso remoto dos usuários às secretarias de todas as varas judiciárias do país. O novo balcão fica disponível durante todo o horário de atendimento ao público, de forma similar ao balcão de atendimento presencial
É preciso ponderar, no entanto, que esse rápido processo de virtualização da justiça acabou gerando o efeito de isolamento de milhões de pessoas, profissionais e cidadãos sem acesso à internet, ou sem a necessária educação tecnológica para interagir com plataformas eletrônicas – o analfabetismo digital.
Recente estudo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> demonstra que a exclusão digital vivenciada em nosso país afeta “milhões de pessoas e milhares de localidades [que] ainda não têm conexão à internet ou acesso de qualidade”. Essa situação atinge principalmente cidadãos vulneráveis, que deixam de “usufruir daquela que talvez seja a principal ferramenta de inclusão social” do mundo moderno. Essa realidade é agravada na população analfabeta do Brasil, que representava mais de 1,5 milhão de pessoas que ainda não sabem ler e escrever, de acordo com o último Censo do IBGE.
E qual seria o modelo ideal para se promover a democratização da justiça? A adoção de um regime híbrido, que preserve os avanços dos serviços digitais e viabilize atendimentos presenciais, inclusivos e humanizados. Esse regime passou a ser adotado pelos tribunais brasileiros a partir de 2021, com o arrefecimento da pandemia, em posição de vanguarda em relação aos Judiciários de outros países do mundo, que permaneceram fechados por longos períodos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Todos esses avanços representam um marco disruptivo no processo de democratização do acesso à justiça, conciliando as inovações digitais com a necessária inclusão social por meio de atendimentos presenciais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme a Lei Federal nº 13.979/2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SUSSKIND, Richard. The Future of Courts. Harvard Law School. Center of the Legal Profession, Vol. 6, Issue 5, July/August 2020. Disponível em: <a href="https://clp.law.harvard.edu/knowledge-hub/magazine/issues/remote-courts/the-future-of-courts">https://clp.law.harvard.edu/knowledge-hub/magazine/issues/remote-courts/the-future-of-courts</a>. Acesso em: 26 abr. 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> FREIRE, Alexandre; VIEIRA, Thiago. (2021) Supremo Tribunal Federal no período da pandemia Covid-19: ambiente virtual como uma solução de eficiência jurisdicional e ampliação do direito de acesso à justiça. In: Revista de Política Judiciária, Gestão e Administração da Justiça, Encontro Virtual, v. 7, n. 1, p. 102–121, Jan/Jul.2021. Disponível em: <a href="https://indexlaw.org/index.php/revistapoliticiajudiciaria/article/view/7866/pdf">https://indexlaw.org/index.php/revistapoliticiajudiciaria/article/view/7866/pdf</a>. Acesso em: 26 abr. 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> STF. Corte Aberta. Painéis estatísticos: Decisões. Disponível em: <a href="https://transparencia.stf.jus.br/extensions/corte_aberta/corte_aberta.html">https://transparencia.stf.jus.br/extensions/corte_aberta/corte_aberta.html</a>. Acesso em: 21 abr. 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CNJ. Tecnologia da Informação e Comunicação. Programa Justiça 4.0. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0. Acesso em: 26 abr. 2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> TOFFOLI, José Antonio Dias; FREIRE, Alexandre. Políticas públicas coordenadas de inclusão digital para a conectividade significativa. Portal JOTA. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politicas-publicas-coordenadas-de-inclusao-digital-para-a-conectividade-significativa-18042023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politicas-publicas-coordenadas-de-inclusao-digital-para-a-conectividade-significativa-18042023</a>. Acesso em: 26 abr. 2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> CNJ. Pesquisas Judiciárias. Justiça em Números 2021: ano base 2020. Disponível em: <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf</a>. Acesso em: 26 abr. 2023, pgs. 12-15.

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JOTA

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