Opinião e Análise

Daniel Becker

Benedito Villela

Pedro Gueiros

O ano de 2020 finalmente se foi e, como em todo início de ano, o ser humano fica imbuído de esperanças e novas resoluções. Na atual conjuntura, as expectativas da tão esperada vacina contra a Covid-19 certamente fazem aflorar tais sentimentos. Mas, como nada muda da noite para o dia, o coração do extremismo ainda pulsa como nos anos 20 do século passado.
Na primeira semana do novo ano, o mundo assistiu boquiaberto ao ataque de eleitores derrotados nas últimas eleições estadunidenses à sede do Capitólio, no momento em que os congressistas se reuniam para validar o pleito. Local mais simbólico para acontecer essa revolta, impossível. Também porque isso ocorreu no país reconhecido como berço da democracia por Alexis de Tocqueville, enviado a este país para entender os fatores do bem-sucedido modelo democrático americano. A invasão, a propósito, nos lembra aquela contemporânea da Batalha de Washington<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato" rel="attachment wp-att-291327"><img class="size-medium wp-image-291327 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/11/jota-pro-poder-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Grupos ultraconservadores, extremistas e neonazistas vilipendiaram o prédio histórico, causando um misto de choque e náusea ao hastearem a bandeira dos Confederados e placas com dizeres como “Trump is my president” às vésperas da transição presidencial.
O recado era claro: impedir da forma mais bárbara possível a assinatura de transição do governo federal pelo vice-presidente Mike Pence. Pence estaria contrariando seu superior imediato que, até aquele momento, recusava-se a aceitar a perda das eleições. Como retaliação, Donald Trump bombardeou suas redes sociais com mensagens incitando a violência de seus apoiadores.
Nesse contexto, o futuro ex-presidente estadunidense se valeu das prerrogativas que suas redes sociais oferecem, contando com maior tolerância e verificação do conteúdo postado, como é o caso de sua conta @POTUS<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> no Twitter. No entanto, há muito tempo suas postagens são constantemente moderadas, por meio de sistemas fact checking, como avisos aos usuários quanto à veracidade das informações apresentadas e até mesmo censuradas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Mas o que aconteceu neste ano é tão inédito quanto o próprio evento. Suas contas, nas principais redes sociais, como Facebook e Instagram, foram bloqueadas temporariamente até que as postagens fossem apagadas. O Twitter foi além e suspendeu permanentemente a conta do presidente, devido à incessante incitação da violência e sob a justificativa de que nenhuma conta está acima de suas regras transparentes de uso da rede<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A propósito, os termos de uso do Twitter foram atualizados ao longo de 2020 de maneira a prever a moderação de contas que ameacem a integridade cívica<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> ou o interesse público<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. A suspensão, portanto, não configura qualquer espécie de censura, mas sim efetivo cumprimento contratual.
Ressalte-se, ainda, que a postura ativa das empresas sobre o controle aos conteúdos antidemocráticos propagados está sendo aplicada até às redes echo chambers<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Em efeito cascata, Apple, Amazon e Google anunciaram a suspensão da rede social Parler da extrema-direita ante a permissividade da propagação de conteúdos que incitam a violência<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. A rede, que é uma exceção à regra neste movimento, foi vista como essencial para a organização da invasão ao Capitólio<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa regulação dos provedores de aplicação faz parte de uma nova realidade ética empresarial, estando inserida no conceito de ESG (environmental, social and corporate governance).</blockquote>
Nos casos de bloqueio e suspensão aqui relatados, vemos saltar a governança social, isto é, o verdadeiro respeito não apenas aos usuários das plataformas, mas ao efetivo “dever de inclusão de políticas e regulamentos em matéria de Direitos Humanos na construção da responsabilidade corporativa”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, o que vai além do ecossistema da rede social.
As medidas de contenção ao movimento truculento ainda não acabaram e parece que apenas cessarão após o retorno da normalidade cívica. Na última segunda (11/01), o Facebook, a Microsoft e o Google já anunciaram cortes de suas doações políticas dirigidas aos Comitês de Ação Política nos EUA<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Observa-se que, desde o surgimento da internet e das redes sociais, é cada vez mais impositivo e relevante o papel do setor privado no controle das atividades do poder público. A inversão desses valores é diretamente proporcional ao gigantismo das empresas e à opressão de governantes eleitos.
Não se desconhece os debates envolvendo a autorregulação das plataformas e a potencial lesividade ao direito constitucional da liberdade de expressão<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Ocorre que, no atual cenário, exigir a neutralidade ou imparcialidade das redes sobre seus próprios espaços seria simplesmente apoiar a opressão destes que vilipendiam a democracia. Em tempos de extremos, a condescendência deste debate “tem levado algumas nações a proscrever as manifestações voltadas puramente para a propagação do ódio e da violência”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
A propósito, os direitos tidos como fundamentais encontram sua limitabilidade pela harmonização entre eles diante de conflitos, sendo que podem vir da teoria interna (absoluta) na qual o núcleo essencial de um direito fundamental não pode ser violado, ou da teoria externa (relativa), no qual o limite é definido fora de seu núcleo, sempre dependendo dos casos concretos.
E no caso concreto, a liberdade de expressão ameaça o direito à vida, que encabeça os direitos fundamentais. Afinal cinco foram as mortes decorrentes dos excessos da liberdade de expressão e outras tantas poderiam ser, tomando-se o caso do Capitólio como fato isolado. Assim, seja pela teoria interna ou pela teoria externa, a liberdade de expressão não somente podia, como devia ser limitada, pela prevalência do valor maior, qual seja a vida.
Não obstante a certeza acima, fundamental ter em mente que as plataformas sociais, por mais coletivas que sejam, não deixam de ser iniciativas privadas. Submetem sua utilização à concordância prévia aos seus termos e condições (um moderno contrato social, ecoando os ensinamentos de Rousseau), cuja polêmica é um capítulo à parte e já foi objeto de diversos estudos e até de relevantes documentários, como o “Sujeito à Termos e Condições”, dirigido por Cullen Hoback. Exemplificativamente, a recente alteração no caso do WhatsApp, tem provocado a considerável diminuição de seus novos usuários e uma migração maciça para seus concorrentes. Ou seja, em última análise, Trump poderia até falar o que quiser e fazer valer sua liberdade de expressão, mas não através de um meio próprio da iniciativa privada. Se uma rede televisiva pode escolher sua pauta, porque uma mídia social não pode moderar o conteúdo, até por ser legalmente responsável pela aplicação das legislações de privacidade de dados?
Por mais controverso que seja, o banimento de mensagens e usuários de redes sociais é uma prerrogativa de existência de meios privados de telecomunicação e está em acordo com toda legislação pública e interna, bem como em acordos feitos. Além disso, o que mais importa: está de acordo com a sociedade que cada vez mais repudia mensagens de ódio, violência e intolerância, de qualquer natureza.
A opressão gratuita e infundada praticada nos ambientes virtuais, por ser contrária à civilização, semeia a pura barbárie. A regulação tecnológica não deve “comprometer as liberdades civis, a liberdade de pensamento, o livre mercado de ideias, a liberdade de imprensa e nem a liberdade de expressão”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>. Logo, o adequado sopesamento entre esses direitos fundamentais e não absolutos poderá ser crucial para a integridade de nosso sistema democrático.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Segundo o especialista, a única comparação possível envolve a Guerra Anglo-Americana, iniciada em 1812, quando a Inglaterra invadiu o país norte-americano. Em agosto de 1814 ocorreu a Batalha de Washington. Tropas europeias invadiram a capital Washington, ocupando o Capitólio e a Casa Branca, sede do presidente da república dos EUA. STABILE, Arthur. Ataque ao Capitólio é inédito nos Estados Unidos desde guerra no século 19. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2021/01/06/ataque-ao-capitolio-e-absolutamente-inedito-na-historia-dos-eua.htm?foto=1</a>&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sigla, em inglês, para President of the United States.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> The social media platform has labeled eight tweets with the warning: “Some or all of the content shared in this Tweet is disputed and might be misleading about an election or other civic process,” with links to its “civic integrity policy.” A ninth tweet was flagged with different language. ROBERTSON, Lori; FARLEY, Robert; RIEDER, Rem. Trump Tweets Flagged by Twitter for Misinformation. Disponível em: &lt;https://www.factcheck.org/2020/11/trump-tweets-flagged-by-twitter-for-misinformation/&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CONGER, KATE; ISAAC, Mile. Twitter Permanently Suspends Trump. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.nytimes.com/2021/01/08/technology/twitter-trump-suspended.html</a>&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Você não pode usar os serviços do Twitter para manipular nem interferir em eleições ou outros atos cívicos. Isso inclui publicar ou compartilhar conteúdo que suprima a participação ou induza as pessoas ao erro sobre quando, onde ou como participar de um ato cívico. Além disso, podemos marcar e reduzir a visibilidade de Tweets que contenham informações falsas e enganosas sobre atos cívicos, como forma de fornecer contexto adicional. TWITTER. Política de integridade cívica. Disponível em: &lt;https://help.twitter.com/pt/rules-and-policies/election-integrity-policy&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O Twitter geralmente remove os Tweets que violam as Regras. Entretanto, reconhecemos que, às vezes, pode ser de interesse público permitir que as pessoas vejam Tweets que normalmente seriam removidos. Consideramos o conteúdo como sendo de interesse público quando ele contribui diretamente para a compreensão ou discussão de um assunto de preocupação pública. TWITTER. Sobre as exceções devido ao interesse público no Twitter. Disponível em: &lt;https://help.twitter.com/pt/rules-and-policies/public-interest&gt;. Acesso em: 08.01.2021
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> An echo chamber leads its members to distrust everybody on the outside of that chamber. And that means that an insider’s trust for other insiders can grow unchecked. The problem of living inside echo chambers. NGUYEN, C. Thi. The problem of living inside echo chambers. Disponível em: &lt;https://theconversation.com/the-problem-of-living-inside-echo-chambers-110486&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A Apple e a Amazon anunciaram neste sábado (9) a suspensão da plataforma de mídia social Parler até que o aplicativo passe a adotar medidas para moderar seu conteúdo. O anúncio das duas empresas segue a mesma linha tomada pelo Google um dia antes. UOL. Apple e Amazon anunciam suspensão do aplicativo Parler. Disponível em: &lt;https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/01/10/apple-e-amazon-anunciam-suspensao-do-aplicativo-parler.htm&gt;. Acesso em: 10.01.2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> No Parler, os vídeos de Trump circulavam livremente e apoiadores inudaram a rede convocando partidários para a invasão. O advogado Lin Wood, que atuou em processos judiciais para anular os resultados da eleição americana, postou que era "hora de lutar". “Chegou a hora, Patriots”, escreveu Wood em Parler. "Este é o nosso tempo. É hora de retomar nosso país. É hora de lutar por nossa liberdade. Comprometam suas vidas, suas fortunas e sua sagrada honra. Não haverá outra chance. Fale a VERDADE. Seja SEM MEDO. Deus Todo-Poderoso está com você. HOJE É NOSSO DIA. ONOFRE, Renato. "Parler: a "rede social da extrema-direita' usada para mobilizar a invasão ao Congresso americano. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://epoca.globo.com/mundo/parler-rede-social-da-extrema-direita-usada-para-mobilizar-invasao-ao-congresso-americano-24827320</a>&gt;. Acesso em: 08.01.2021.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BECKER, Daniel; GUEIROS, Pedro. Os tribunais de Nuremberg virtuais. Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/os-tribunais-de-nuremberg-virtuais-12092020&gt;. Acesso em: 10.01.2021.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> O Facebook, a Microsoft e o Google anunciaram nesta segunda-feira (11) que interromperam parte de suas doações políticas nos Estados Unidos, dias depois de apoiadores do presidente americano Donald Trump invadirem o Capitólio. Todas citaram o episódio para justificar a revisão da prática. G1. Facebook, Microsoft e Google congelam doações políticas após invasão de apoiadores de Trump ao Capitólio. Disponível em: &lt;https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2021/01/11/facebook-microsoft-e-google-congelam-doacoes-politicas-apos-invasao-de-apoiadores-de-trump-ao-capitolio.ghtml&gt;. Acesso em: 11.01.2021.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> O ano de 2021 talvez mostre a nocividade de uma medida determinada por ente
privado que coloca em segundo plano a liberdade de expressão em prol da
informação. O banimento do Facebook deixou isso ainda mais claro. CARVALHO, Leticia Ledis. O banimento das contas de Donald Trump no Facebook e
Twitter. Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-banimento-das-contas-de-donald-trump-no-facebook-e-twitter-07012021&gt;. Acesso em: 10.01.2021.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BINENBOJM, Gustavo. Liberdade igual: o que é e por que importa. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 24.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> BECKER, Daniel; GUEIROS, Pedro. Do Cemitério de Praga ao gabinete do ódio: informação contra a desinformação. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/do-cemiterio-de-praga-ao-gabinete-do-odio-informacao-contra-a-desinformacao-18072020</a>&gt;. Acesso em: 10.01.2021.

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