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Piratatech: mitos e desafios

Generalista e acrítica condenação de marketplaces caminha na contramão da inovação no Brasil

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Crédito: Unsplash

Desde o século 17, a existência de um paraíso dos piratas, localizado nas proximidades da ilha de Madagascar, circunda o imaginário popular. A sociedade de criminosos seria um ambiente de paz e harmonia, financiado pelos espólios roubados de navios que atravessavam o Oceano Índico. 

A história da colônia de Libertalia (ou libertatia) apareceu pela primeira vez em "História Geral dos Piratas mais Famosos", do Capitão Charles Johnson (provável pseudônimo de Daniel Defoe), publicado em 1726, e está entre as grandes utopias modernas, como Atlantis e El Dorado [1].

Não existe comprovação histórica da existência desse “céu dos criminosos”, mas, ironicamente, os mesmos receios que assolavam os capitães de navios cargueiros naquela época, parecem existir nos brasileiros em plena era da informação. 

O oceano onde os atuais piratas navegam é a internet. Golpe do boleto, FakeMail, phishing... estes são os golpes modernos correspondentes aos grandes roubos dos habitantes de Libertalia. 

Grande parte da população não conhece o nome por trás da conduta criminosa, mas, provavelmente, já foi vítima ou teve contra si alguma tentativa de golpe por meio de aplicativos de mensagens ou e-mails. 

Alguns são mais comuns que outros. Um dos exemplos mais conhecidos é o golpe do boleto falso[2], no qual a vítima recebe um boleto supostamente referente a algum serviço que usufrui de modo contínuo, como telefonia, internet e cartão de crédito, efetua o pagamento, e só descobre a fraude após a cobrança do verdadeiro fornecedor do serviço. 

Outros golpes, como o FakeMail e phishing[3], geralmente se concretizam em razão da sua atratividade. Nestes, as vítimas recebem mensagens de texto através de SMS, aplicativos de conversa ou e-mail, com informações muito empolgantes, como a contemplação em sorteio ou uma proposta imperdível de emprego. Estas mensagens contêm um link que direciona o usuário para outra plataforma, na qual ele é seduzido a informar seus dados pessoais e, por vezes, até os números de seu cartão de crédito. De posse dessas informações, os criminosos causam grandes danos a esses desavisados. 

As estatísticas assustam: segundo levantamento do Inteligência em Pesquisa e Consultoria(IPEC)[4], até 2021, 55% dos brasileiros das classes ABC com acesso à internet sofreram alguma tentativa de golpe. Nas capitais, esse número salta para 62% da população. Outro levantamento relevante, produzido pela PSafe[5], estima que, no Brasil, entre abril e maio de 2022, apelas pelo Pix, houve mais de quatro ataques fraudulentos por minuto. 

Sabe-se que essas práticas são prejudiciais para todos os sujeitos do mercado, e não apenas para o consumidor. Marketplaces e plataformas de anúncios digitais, a exemplo do Mercado Livre e Buscapé têm a reputação abalada por fraudadores que utilizam a notoriedade de suas marcas para mascarar golpes e, por vezes, são responsabilizadas solidariamente a indenizar o dano sofrido pela vítima. 

Tanto é assim que são numerosos os esforços para combater tais condutas: em 2021, a Konduto/Boa Vista evitou aproximadamente R$ 7,2 bilhões em pedidos fraudulentos[6] e o Mercado Livre, somente no segundo semestre do último ano, removeu quase 6 milhões de anúncios falsos em toda a América Latina[7], dois exemplos que ilustram bem a dimensão da problemática. 

Segundo disposto no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o fornecedor responde pelos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação do serviço, independentemente da existência de culpa. Além disso, de acordo com a teoria do risco do empreendimento, todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos. 

A conjugação do regime objetivo da responsabilidade civil previsto no CDC com a teoria do risco do empreendimento poderia induzir ao entendimento de que as plataformas sempre respondem pelos danos causados às vítimas de fraude, independentemente de culpa, mas essa não é a realidade (ou não deveria ser). 

Para responder a essa questão, uma análise detida do caso concreto é essencial. A responsabilidade do marketplace dependerá da sua participação na relação de consumo, ou seja, se de algum modo influiu na negociação ou se simplesmente agiu como um mero aproximador das partes (comprador e vendedor), ao disponibilizar a plataforma usada pelos sujeitos para negociar livremente. 

Para essa investigação, é preciso verificar se a respectiva plataforma assume o papel de fornecedor na relação, como prevê o artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual: "Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços". 

De modo a dar sentido a norma, os parágrafos primeiro e segundo do artigo supramencionado discorrem sobre o conceito de produto e serviço, sendo aquele qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial; e este qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. 

Nesse sentido, agindo a plataforma como um mero aproximador da relação de consumo, ou seja, somente disponibilizando o espaço para o contato inicial entre o vendedor e o consumidor, não há como enquadrá-la no conceito de fornecedora de produto ou serviço e, consequentemente, responsabilizá-la por eventuais danos decorrente de golpes online. 

Apesar de restar plausível a ausência de responsabilidade da plataforma, é certo que há decisões que entendem pela sua responsabilidade solidária. Diante disto, coube ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificar a matéria. 

Historicamente, o entendimento da Corte Superior é de equiparar as plataformas de marketplace aos jornais que publicam anúncios nos classificados, enfatizando que a fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do artigo 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos (REsp 1.193.764/SP, DJe 14.12.2010). 

Recentemente, o entendimento do STJ foi reforçado pelo julgamento do Recurso Especial 1880334/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, que salientou: A fraude praticada por terceiro em ambiente externo àquele das vendas online não tem qualquer relação com o comportamento da empresa, tratando-se de fato de terceiro que rompeu o nexo causal entre o dano e o fornecedor de serviços"[8]. 

Com isso, firmou-se o entendimento de que, havendo a culpa da parte prejudicada na fraude perpetrada por terceiros, isto é, a utilização de ambiente externo à plataforma para realização da negociação, ou a violação dos termos de segurança estipulado pelo provedor da aplicação, as empresas de marketplace não devem responder, em razão de o dano ter sido viabilizado pela culpa exclusiva da parte prejudicada. 

Convém destacar que em seu posicionamento, a ministra Nancy teceu importante consideração sobre o risco do negócio desenvolvido pelas empresas digitais. Consta de seu voto que o risco da sua atividade é balizado com a assunção do risco assumido pelo usuário da aplicação, de modo que não se encaixam em sua esfera de responsabilidade atos praticados além do ambiente da aplicação, o core business de sua atuação comercial. 

No mesmo sentido segue o Marco Civil da Internet[9], que dispõe que os sites de intermediação se enquadram na categoria dos provedores de aplicações e, consequentemente, não serão responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros (artigo 18, caput da Lei). 

Tal entendimento é compartilhado, novamente, pela 3ª Turma do STJ, que afastou a responsabilidade da plataforma intermediadora no comércio eletrônico por fraude perpetrada por terceiro ao julgar o Recurso Especial 1.880.344/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, em 11 de março de 2021. 

O que todo esse arcabouço normativo nos ensina? Que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Embora o CDC parta do pressuposto de vulnerabilidade do consumidor (CDC, artigo 4º, I), isso não isenta o público de tomar cuidados mínimos na hora de fazer negócios online. A facilitação da defesa dos direitos dos consumidores pretendida pelo CDC não pode ser convertida em nova assimetria de poderes, responsabilizando as empresas por fortuitos externos sem uma análise cuidadosa do caso concreto. 

“Pesar a mão” em favor dos consumidores pode ocasionar o efeito diametralmente oposto ao pretendido: poucos felizardos receberão indenizações que não fazem jus e a operação empresarial será burocratizada, o que se converte em serviços piores e mais custosos, prejudicando toda a coletividade. 

Não custa lembrar que o Brasil já ocupa as piores posições nos índices globais de liberdade econômica (que medem indicadores relacionados ao ambiente financeiro e institucional, classificando os países entre mais e menos propícios ao crescimento econômico): 133º de 177 pela Heritage Foundation[10] e 109º de 165 Mackenzie/Fraser Institute [11]. 

Nesse cenário, a distribuição adequada dos direitos e obrigações de cada sujeito na cadeia de consumo ganha significativa importância: ao consumidor, cabe entender os termos de uso da plataforma e diligenciar minimamente para não cair em fraudes online; e aos marketplaces incube, dentre outros deveres, retirar do ar anúncios falsos (assim que notificados), otimizar continuamente os mecanismos de fiscalização e informar com clareza ao público como utilizar o serviço de forma segura. 

Esse entendimento é compartilhado por diversos tribunais brasileiros, a exemplo da 5ª Turma Cível do TJDF, que consignou em julgado recente[12]: “Havendo o consumidor negligenciado quanto aos mecanismos de segurança oferecidos pelo site, sem se cercar dos cuidados necessários, não pode imputar à administradora do site a responsabilidade pelo insucesso na operação, em razão de fraude perpetrada pelo vendedor, único que deverá ser responsabilizado pelos prejuízos causados”. 

Igualmente entende o Tribunal de Justiça de São Paulo[13] ao dispor que: “apesar de existir o risco da atividade inerente a qualquer atividade empresarial, não se pode reconhecê-la sem limitações, razão pela qual a inobservância das mínimas regras de segurança previstas nos termos e condições de uso pelo usuário, não pode ensejar a responsabilidade da recorrente por danos sofridos causados por terceiros totalmente desvinculados de sua atividade”. 

Em suma, o melhor cenário parece ser fugir das generalizações, buscando soluções singulares para os casos concretos e distribuindo as responsabilidades de forma proporcional a conduta e as obrigações dos sujeitos inseridos nas cadeias de consumo, evitando, com isso, que vítimas de golpes na internet amarguem danos indevidos, ao passo em que deve ser preservado o ambiente de negócios no Brasil. 

Ao contrário, a generalista e acrítica condenação de marketplaces nesses casos caminha na contramão da inovação no Brasil. O ideal é que a sociedade de libertalia e seus habitantes permaneçam no imaginário popular como mera referência ficcional, não assombrando o desenvolvimento regular das atividades na web, com a imposição de medidas desarrazoadas de responsabilização das plataformas, mas servindo de alerta sobre a necessidade de perene vigilância no combate as fraudes e demais crimes.


[1] Aos interessados sobre o tema, recomenda-se a leitura do artigo: Did the Utopian Pirate Nation of Libertatia Ever Really Exist? – Publicado em ATOASOBSCURA.COM em 14 de dezembro de 2015 – Disponível em < https://www.atlasobscura.com/articles/did-the-utopian-pirate-nation-of-libertatia-ever- really-exist>. Acesso: 24/07/2022. 

[2] https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/07/05/guia-definitivo-para-nao-cair-no-golpe-do-boleto-falso.htm 

[3] https://br.malwarebytes.com/phishing/

[4] BLOG C6 BANK – Maioria dos brasileiros já sofreu tentativa de golpe, diz pesquisa C6 Bank/Ipec inteligência – publicado em 09/11/2021 – disponível em < https://blog.c6bank.com.br/maioria-dos- brasileiros-ja-sofreu-tentativa-de-golpe-diz-pesquisa-c6-bank-ipec-inteligencia>. Acesso: 27/07/2022. 

[5] DFNDR BLOG – Golpe do pix cresce mais de 350% nos dois últimos meses, aponta PSafe – publicado em 22/06/2022 – Disponível em < https://www.psafe.com/blog/golpe-do-pix-cresce-mais-de-350-nos- dois-ultimos-meses-aponta-psafe/>. Acesso: 21/07/2022. 

[6] SEUDINHEIRO.COM – Boa vista: o e-commerce brasileiro explodiu – e com ele, também as fraudes  Publicado em 16 de fevereiro de 2022 Disponível em <https://www.seudinheiro.com/2022/colunistas/seu-dinheiro-convida/e-commerce-brasileiro-explodiu- fraudes-tambem/>. Acesso: 21/07/2022. 

[7] TECMUNDO – Mercado Livre removeu 6 milhões de anúncios no 2º semestre de 2021 – Publicado em 18/05/2022 – Diponível em < https://www.tecmundo.com.br/mercado/238865-mercado-livre- remove-6-milhoes-anuncios-falsos-2-semestre.htm>. Acesso: 21/07/2022. 

[8] REsp 1880344/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 11/03/2021 

[9] Lei 12.965, de 23 de abril 2014.  

[10] Ranking completo em: https://www.heritage.org/index/ranking. 

[11] MACKENZIE – O Brasil ocupa a posição 109 entre 165 jurisdições em Liberdade Econômica – Publicado em 19/11/2021 – Disponível em <https://www.mackenzie.br/noticias/artigo/n/a/i/o-brasil-ocupa-a- posicao-109-entre-165-jurisdicoes-em-liberdade-economica>. Acesso: 21/07/2022. 

[12] Acórdão 1271645, 00051595120168070014, Relator: ANA CANTARINO, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 5/8/2020, publicado no DJE: 18/8/2020 

[13] TJSP Recurso Inominado 0010988-78.2017.8.26.0198, De. Rel. Rodrigo Marcos de Almeida Geraldes, J. 29.05.2018. logo-jota