Opinião e Análise

Bruno Feigelson

Denis Brum

Ramon Terroso Carneiro

Qual é a totalidade de tudo que existe? Essa pergunta tem dirigido, há séculos, os esforços de filósofos, matemáticos e cientistas para compreender a dimensão do universo em que vivemos. No documentário de 2011 “Tudo e nada: a ciência surpreendente do espaço vazio"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o professor Jim Al-Khalili, da Universidade de Surrey (Reino Unido), conduz uma interessante investigação histórica sobre a evolução do conceito do espaço para o ser humano.
O recorte cronológico explorado pelo professor parte das teorias de Thomas Digges (1546-1595), cujo diagrama (baseado nos trabalhos de Nicolau Copérnico) descrevia o universo como infinito e estático; passando por William Herschel (1738-1822), que tentou mapear toda a via láctea; chegando à teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955) até o modo como enxergamos o cosmos atualmente, com bilhões de estrelas e galáxias em constante movimento.
O ponto de ruptura entre a nossa atual ideia sobre o espaço e todas as teorias anteriores parece ter sido o trabalho de Edwin Hubble (1924–1953). Esse astrônomo norte-americano conseguiu provar que objetos então catalogados como nuvens de poeira e gás, nomeados de nebulosas, eram na verdade galáxias além da Via Láctea. Com base na tecnologia disponível à época, foi possível estimar a distância entre a Terra e Andrômeda (como foi nomeada a galáxia mais próxima da Via Láctea), abrindo o caminho para o descobrimento de outras galáxias com incalculáveis elementos, expandindo os modelos filosóficos e astronômicos de forma inédita.
Mas, por que estamos narrando esses acontecimentos relacionados à astronomia numa coluna de Direito e tecnologia? É que essa evolução histórica no estudo dos corpos celestes nos fornece uma perfeita analogia para uma medida judicial paradigmática recentemente proferida nos Estados Unidos.
Em junho do corrente ano, pela primeira vez, um NFT (non-fungible token)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> foi utilizado para dar cumprimento a uma ordem judicial. O caso modelo está em curso na Suprema Corte de Nova Iorque e discute a ocorrência de hackeamento e roubo de ativos digitais alegadamente sofrida por uma exchange de criptomoedas com sede em Liechtenstein, que teria sido vítima de um ataque cibernético em janeiro de 2022, causando a perda de US$ 8 milhões.
Segundo noticiado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, os ativos foram “lavados” (em sentido similar de lavagem de dinheiro) por meio de um crypto mixer, plataforma que, grosso modo, embaralha moedas de diversos usuários para confundir quem tente rastreá-las, garantindo o anonimato em transações.
Através de perícia algorítmica, foi possível rastrear as moedas roubadas, mesmo após o uso do mixer pelo hacker, e identificar carteiras digitais associadas ao invasor, viabilizando a tentativa de recuperação dos valores.
Uma vez encontrados os ativos, os advogados da exchange puderam requerer uma ordem de restrição (similar a tutela de urgência antecedente prevista nos artigos 300 e seguintes do Código de Processo Civil) para bloquear a transação dessas moedas, impedindo que os danos se alastrassem, e, na mesma oportunidade, proceder à citação do hacker acerca do processo judicial em andamento.
A citação inovadora ocorreu através da inserção de um hyperlink em um NFT chamado de “service token” ou “service NFT”, atrelado à Ethereum blockchain, que direcionava o réu para a carta de citação e os documentos anexos, contendo um mecanismo capaz de rastrear quando alguém acessou o link.
Eis a ruptura de paradigma inaugurada por esse fato: a concepção da web 3.0 como um lugar ingovernável, onde a descentralização e o anonimato asseguram a impunidade foi inevitavelmente abalada. O precedente da Corte americana cria a ponte necessária entre a jurisdição estatal e esse novo universo digital, que contém infinitos elementos e uma dinâmica própria. Analogicamente, é como se tivéssemos descoberto a nova Andrômeda, como fez Edwin Hubble há praticamente um século.
As nebulosas, que posteriormente foram descobertas como galáxias, ilustram bem como concepções milenares podem ser completamente ressignificadas e expandidas na medida em que o estado da arte científico evolui.
Até então, de fato, a capacidade do Poder Judiciário para tutelar relações jurídicas produzidas, executadas e eventualmente violadas dentro da nova web era completamente esvaziada pela descentralização e dinamicidade do ambiente virtual. O anonimato, por exemplo, parecia ser uma barreira intransponível: enquanto a identificação pessoal de autor e réu são informações essenciais para iniciar qualquer ação judicial, tais dados são dispensáveis para a realização de transações online pela blockchain, criando um obstáculo informacional que parecia impedir qualquer tentativa de conectar os dois mundos.
O feito dos advogados americanos transplantou essa barreira, criando um campo comum pelo qual, mesmo usuários anônimos, como o hacker em questão, podem ser encontrados e indubitavelmente cientificados da existência do processo judicial, aperfeiçoando a triangulação processual e, por consequência, viabilizando a ação do Poder Judiciário sobre aquela relação jurídica.
É claro que o laço criado entre as duas esferas (Judiciário e nova web) ainda é muito embrionário, assim como eram os telescópios utilizados por William Herschel na sua tentativa de mapear a Via Láctea em comparação com os radiotelescópios atuais, capazes de fotografar com nitidez um buraco negro no centro de nossa galáxia, como divulgado recentemente pela Event Horizon Telescope<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Não são poucos os desafios a serem suplantados para a pavimentação dessa estrada entre mundos. Um deles é a velocidade: segundo o último levantamento anual do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a><a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, o tempo médio de tramitação de processos no Brasil é de três anos e seis meses. Como compatibilizar, por exemplo, o ritmo do Poder Judiciário brasileiro com a tutela dos smart contracts, que executam transações automaticamente, em pequena ou larga escala? Ao tempo do primeiro despacho sobre a inicial, o bem jurídico que se pretendia preservar provavelmente já terá evaporado.
Fato é que a advocacia privada possui um papel essencial nessa construção: o uso do NFT como forma de cumprir um dos requisitos essenciais do processo (citação) e dar exequibilidade à medida judicial decorreu justamente da iniciativa dos representantes da exchange, que provocaram o Judiciário a trazer uma resposta para esse conflito ultramoderno.
Daí a importância de os departamentos jurídicos atuais estarem alinhados com o negócio dos clientes: entender que NFT não é um instrumento que serve meramente à especulação financeira foi o primeiro passo para os advogados da parte autora vislumbrarem novas aplicações para essa tecnologia, materializando a necessária simbiose entre o jurídico e o tecnológico.
Assim como os as estrelas, planetas e demais elementos celestiais catalogados saíram da casa das centenas, milhares, até chegar nas estimativas bilionárias atuais, as possibilidades de intersecção entre a jurisdição estatal e vida online destravadas por esse precedente americano parecem ser infinitas.
Parafraseando Neil Armstrong ao pisar na lua: esse pequeno passo foi um grande salto para a comunidade jurídica. Resta-nos, então, assumir o papel de agentes ativos na construção de ambientes de negócios seguros, transparentes e justos, tanto online quanto offline.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> NIC STACEY (2011) – Tudo e nada: a ciência surpreendente do espaço vazio. Disponível em &lt; <a href="https://www.primevideo.com/detail/Tudo-e-nada-a-ci%C3%AAncia-surpreendente-do-espa%C3%A7o-vazio/0GUQSBIIBW5ACQOHXFFYWX408P">https://www.primevideo.com/detail/Tudo-e-nada-a-ci%C3%AAncia-surpreendente-do-espa%C3%A7o-vazio/0GUQSBIIBW5ACQOHXFFYWX408P</a>&gt;. Acesso: 28/06/2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tradução Livre – Token não fungível.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> COINTELEGRAPH: Anonymous Hacker Serveres With Restraining Order Via NFT. Disponível em: &lt; <a href="https://cointelegraph.com/news/anonymous-hacker-served-with-restraining-order-via-nft">https://cointelegraph.com/news/anonymous-hacker-served-with-restraining-order-via-nft</a>&gt;. Acesso: 29/06/2022.
LAW.COM: In New Approach, Big Law Firm Uses NFT to Serve Court Papers on Anonymous Defendants. Disponível em: &lt; <a href="https://www.law.com/dailybusinessreview/2022/06/09/in-new-approach-big-law-firm-uses-nft-to-serve-court-papers-on-anonymous-defendants/">https://www.law.com/dailybusinessreview/2022/06/09/in-new-approach-big-law-firm-uses-nft-to-serve-court-papers-on-anonymous-defendants/</a>&gt;. Acesso: 29/06/2022
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> G1 – Foto inedita de buraco negro no centro da Via Láctea é divulgada por cientistas. Disponível em &lt; <a href="https://g1.globo.com/ciencia/noticia/2022/05/12/foto-inedita-de-buraco-negro-no-centro-da-via-lactea-e-divulgada-por-cientistas.ghtml">https://g1.globo.com/ciencia/noticia/2022/05/12/foto-inedita-de-buraco-negro-no-centro-da-via-lactea-e-divulgada-por-cientistas.ghtml</a>&gt;. Acesso: 29/06/2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – Justiça em números (2021) – Disponível em: &lt; <a href="https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf">https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf</a>&gt;. Acesso: 29/06/2022.

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JOTA

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