Opinião e Análise

Gabriella Machado

Marissol Pinheiro

O mercado fonográfico é termômetro dos avanços tecnológicos. Do vinil ao tema deste artigo, podemos elencar alguns marcos históricos que impactaram a necessidade humana de ressignificar suas atividades mais cotidianas.
A década de 60 trouxe mudanças na maneira de interagir com a música com a criação da fita-cassete e do “toca-fitas”, mudando os hábitos dos consumidores, antes acostumados com os LPs e suas limitações tecnológicas, para a possibilidade de montar coletâneas personalizadas. Na década de 80, o mercado musical foi marcado pela iniciativa conjunta das empresas Philips e Sony com a invenção do CD (Compact Disc), trazendo maior qualidade sonora e a facilitação em realizar cópias dessas obras<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nota-se, assim, que a obra musical e seu aproveitamento durante grande parte do século XX era estritamente vinculado ao conceito autoral clássico de corpus mechanicum, termo utilizado para descrever o suporte material que fixa a música<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Esse cenário mudou completamente com o advento da Internet, que trouxe serviços de P2P<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> como o emblemático Napster e a disponibilização de músicas online, por vezes, sem a devida remuneração aos titulares<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O marco do século XXI são as grandes inovações do ambiente digital, através dos ativos intangíveis e da dispersão que ocorre na Web 3.0. A possibilidade atual de tokenizar obras artísticas através dos NFTs, muda de forma impactante o cenário do mercado da música. Os NFTs realmente poderão ser identificados como o novo Napster, conforme comentário da Forbes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>?
Para fins de esclarecimento, vale dizer que o NFT pode ser compreendido como uma informação armazenada em <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/blockchain">Blockchain</a><a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> que, via de regra, deve ser única, já que tal característica se encontra no próprio nome do ativo digital: NFT ou Non Fungible Token (Token Não Fungível). O NFT é a representação de um certificado desse ativo, por meio do qual ocorre a transação de determinados bens e/ou direitos, sendo objeto de grande repercussão e estudos no âmbito do direito na pós-modernidade.
O conceito de “bem não fungível” significa um bem móvel que apresenta a impossibilidade de ser substituído por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade, conceito obtido por adequação ao seu antagonista (bem fungível), disposto no art. 85<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> do Código Civil (Lei 10.406/2002). À título exemplificativo, bens fungíveis seriam dinheiro, veículos, computadores e, inclusive, as criptomoedas como as bitcoins, entre outras. Enquanto os bens não fungíveis seriam obras de arte, artigos personalizados em geral, bens imóveis, entre outros, tal como o NFT.
Em síntese, o NFT é único (infungível), permanente (informações e dados estão permanentemente armazenados no token) e programável (por ser um código em blockchain) que comumente incluem: (i) as informações do proprietário e do bem tokenizado; (ii) uma lista de endereços aprovados; (iii) uma função de transferência que implementa a transferência de tokens do proprietário para o comprador; (iv) entre outras funções úteis e regras pré-determinadas, estabelecidas em contratos inteligentes (Smart Contract), no qual se inserem as regras da transação, de forma codificada, para possibilitar a automação de obrigações contratuais em rede.
Se a informação/bem objeto do NFT for uma obra protegida pelo direito de autor, há a possibilidade de oferecer condições de utilização das obras, tal como a cessão de direitos ou a concessão de licenças de uso de músicas. Essas autorizações são materializadas pelos Smart Contracts inseridos nos NFTs, os quais incluem em sua estrutura jurídica a possibilidade de viabilizar a distribuição direta de royalties, sem intermediários<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
A referida temática, no entanto, já encontra relevante aplicação diante de diversos casos concretos atuais. Os artistas estão utilizando a tokenização para a venda de direitos autorais decorrentes das suas obras musicais, como é o caso do rapper americano Nas. Os tokens foram vendidos como forma de investimento a partir do compartilhamento do direito patrimonial de autor, de modo que a venda de duas das músicas do Nas como tokens, Ultra Black, do álbum King’s Disease, e Rare, do álbum King’s Disease II, gerará o compartilhamento do lucro financeiro entre o cantor e os detentores dos tokens<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Outros artistas e empresas estão seguindo o mesmo movimento, tal como a plataforma A Royal, que recebeu um aporte de US$ 16 milhões em 2021 com a proposta de tokenizar músicas e a plataforma de streaming Audius, que permite que o artista coloque obras diretamente na tecnologia blockchain<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Historicamente, os contratos usualmente celebrados entre gravadoras e artistas no século passado, chamados de “cessão onerosa de interpretações fixadas”, funcionavam como contratos de adesão. As regras do jogo eram inquestionáveis e ditadas pelas gravadoras, as majors. Tais empresas escolhiam os autores com quem desejavam gravar, por entendê-los mais rentáveis ao seu modelo de negócios. Predominava a hegemonia das gravadoras e uma crença de que, sem elas, não subsistiria o mercado fonográfico<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Com os NFTs, atinge-se não somente a revolução tecnológica, mas também uma revolução negocial e estrutural envolvendo o meio artístico. Com o uso de NFTs, é possível que o autor ou detentor dos direitos decida as regras de monetização da obra, por meio de financiamentos ou adiantamentos. Com a dispensa de intermediários, a negociação pode ser realizada diretamente com seus consumidores e parceiros, sejam essas pessoas físicas ou jurídicas. Assim, os ledgers<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> distribuídos podem fornecer uma plataforma descentralizada para construir e manter registros de obras e fonogramas.
As tecnologias blockchain possuem alguns recursos, como a escassez, a confiança, a transparência, os registros públicos descentralizados e os Smart Contracts, que aparentam compatibilidade com os fundamentos do direito autoral. Os autores podem publicar suas obras utilizando essas tecnologias , com a criação de um registro quase imutável de propriedade inicial e, posteriormente, com a codificação de  contratos inteligentes para permitir o uso das obras. Assim, a remuneração pode ser realizada em plataformas ou aplicativos que foram configurados com base nas regras dispostas nos smart contracts, de forma a facilitar a automação da gestão dos direitos autorais<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Nota-se que a tecnologia conduzirá o mercado fonográfico a novos e impensáveis rumos. Entretanto, um caminho é certo: a atividade dos operadores do direito no mercado fonográfico, vinculada aos NFTs ou não, será sempre imprescindível. Na realidade física ou exponencial, a especificidade do ramo enseja análises complexas, estudos profundos e variáveis impensáveis, que não dispensam a inteligência humana.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LOSSO, Fábio. Os Direitos Autorais no mercado da música. Disponível em &lt;<a href="https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-28092009-082901/publico/fabio_final.pdf">Microsoft Word - fabio final.doc (usp.br)</a>&gt;. Acesso em 15 jun. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BARBOSA, Denis Borges. Criação e fruição: os interesses jurídicos na produção intelectual. Disponível em &lt;<a href="https://brapci.inf.br/index.php/res/download/96494">96494 (brapci.inf.br)</a>&gt;. Acesso em 15 jun. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Peer-to-peer (ponto a ponto, em livre tradução) é uma rede de computadores que compartilham arquivos pela internet. Disponível em: <a href="https://www.techtudo.com.br/noticias/2012/05/o-que-e-p2p.ghtml">https://www.techtudo.com.br/noticias/2012/05/o-que-e-p2p.ghtml</a>. Acesso em 13 de jul. 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LOSSO, Fábio. Os Direitos Autorais no mercado da música. Disponível em &lt;<a href="https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2131/tde-28092009-082901/publico/fabio_final.pdf">Microsoft Word - fabio final.doc (usp.br)</a>&gt;. Acesso em 15 jun. 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Disponível em: &lt; <a href="https://forbes.com.br/forbes-money/2021/08/os-nfts-sao-o-novo-napster-entenda-a-ameaca-dessa-tecnologia-para-a-industria-da-musica/">Os NFTs são o novo Napster? Entenda a ameaça dessa tecnologia para a indústria da música - Forbes</a>&gt;. Acesso em: 13/07/2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A tecnologia de Blockchain, utilizada nos NFTs é a mesma, atualmente, utilizada para a mineração e registro de criptomoedas. Segundo a IBM (Institute for Business Value) a definição de blockchain seria “um livro-razão compartilhado e imutável que facilita o processo de registro de transações e o rastreamento de ativos em uma rede empresarial. Um ativo pode ser tangível (uma casa, um carro, dinheiro, terras) ou intangível (propriedade intelectual, patentes, direitos autorais e criação de marcas). Praticamente qualquer item de valor pode ser rastreado e negociado em uma rede de blockchain, o que reduz os riscos e os custos para todos os envolvidos”. Conceito disponível em: &lt; <a href="https://www.ibm.com/br-pt/topics/what-is-blockchain">O que é a tecnologia blockchain? - IBM Blockchain - Brasil | IBM</a>&gt;. Acesso em: 01/05/2022.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> PESSERL, Alexandre.  NFT 2.0: BLOCKCHAINS, MERCADO FONOGRÁFICO E DISTRIBUIÇÃO DIRETA DE DIREITOS AUTORAIS. Disponível em &lt;<a href="https://revista.ioda.org.br/index.php/rrddis/article/view/14">NFT 2.0: blockchains, mercado fonográfico e distribuição direta de direitos autorais | Revista Rede de Direito Digital, Intelectual &amp; Sociedade (ioda.org.br)</a>&gt;. Acesso em 27 jun. 2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Disponível em &lt;<a href="https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2022/01/07/nas-direitos-autorais-nft/">Lenda do Rap, Nas irá usar NFTs para vender direitos de suas músicas aos fãs - TMDQA! (tenhomaisdiscosqueamigos.com)</a>&gt;. Acesso em 30 ago. 2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Disponível em &lt;<a href="https://www.migalhas.com.br/depeso/352121/alem-do-hype">Além do hype (migalhas.com.br)</a>&gt;. Acesso em 30/08/2022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Disponível em &lt;<a href="https://www.redalyc.org/journal/938/93846957013/html/">O artista popular e o contrato: lógicas divergentes nas produções musicais (redalyc.org)</a>&gt;. Acesso em 17.08.2022.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Tradução para o português: Livros contábeis.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> PESSERL, Alexandre.  NFT 2.0: BLOCKCHAINS, MERCADO FONOGRÁFICO E DISTRIBUIÇÃO DIRETA DE DIREITOS AUTORAIS. Disponível em &lt;<a href="https://revista.ioda.org.br/index.php/rrddis/article/view/14">NFT 2.0: blockchains, mercado fonográfico e distribuição direta de direitos autorais | Revista Rede de Direito Digital, Intelectual &amp; Sociedade (ioda.org.br)</a>&gt;. Acesso em 27 jun. 2022.

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JOTA

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