Opinião e Análise

Daniel Becker

Beatriz Haikal

Pedro Gueiros

Com o pedido de licença pelo desabafo: a LGPD nasceu instável e recente decisão monocrática oriunda do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) é prova disso. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada para regulamentar as muitas lacunas presentes na legislação, fiscalizar e aplicar as sanções administrativas cabíveis, ainda não está apta a exercer suas funções. Para piorar, trata-se de uma legislação que inaugura um novo microssistema no país, e não de uma Lei que aperfeiçoa um ramo próprio do direito, tal como se deu com o Código Civil em 2002 e o Código de Processo Civil de 2015.
Nesse cenário, o que é ainda mais preocupante é que, diferentemente do contexto europeu, em que as Autoridades de Proteção de Dados (DPAs) concentram-se em criar um ambiente de conscientização e de difusão da informação, estamos fomentando no contexto nacional a judicialização de demandas, já que o horizonte delineado pela ausência da ANPD abre margem a aventureiros que buscam a todo custo formular as primeiras ações indenizatórias.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
E mais. Tal judicialização antes da regulamentação da matéria acaba resultando em decisões teratológicas, proferidas por magistrados que muitas vezes não têm tempo hábil para se dedicar ao exame aprofundado de questões tão complexas que geram incertezas até mesmo naqueles que se dedicam exclusivamente ao estudo do tema.
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A hermenêutica do microssistema de proteção de dados não é trivial. Assim, a verdade é uma só e deve ser dita a plenos pulmões: antes de a ANPD definir posicionamentos sobre as lacunas da LGPD<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, estamos todos no escuro e à margem de decisões judiciais contraditórias, atécnicas e mal fundamentadas.
E, como tudo que um dia pode acontecer, um dia, finalmente, acontece, o TJDFT proferiu uma perigosa decisão monocrática que ameaça de morte o marketing digital. Em agravo de instrumento, o TJDFT deferiu os efeitos da tutela antecipada requerida pelo MPDFT, determinando a suspensão dos serviços “Lista Online” e “Prospecção de Clientes” prestados pela Serasa Experian. “Lista Online” e “Prospecção de Clientes” são serviços de marketing customizados, os quais têm por objetivo auxiliar pequenas e médias empresas a direcionarem seus negócios, subsidiando promoções por perfil de público, inauguração de pontos de vendas, lançamento de portfólios, catálogos e convites.
<blockquote class="jota-article__eye">Ações de marketing desse tipo são bastante comuns nos dias de hoje, razão pela qual soaria pouco acurado afirmar que tal operação feriria as legítimas expectativas do titular.</blockquote>
Mas, para a Unidade Especial de Proteção de Dados e Inteligência Artificial do MPDFT, a comercialização de tais dados viola “o núcleo da privacidade do cidadão brasileiro, consistente em nome, endereço, 3 números de telefones, localização, perfil financeiro, poder aquisitivo e classe social”.
Em sua ação civil pública, o órgão argumentou que o tratamento de tais dados seria irregular na forma do art. 44 da LGPD, pois as autorizações genéricas, relacionadas ao consentimento dos titulares, seriam nulas ante à ausência de autorização específica para cada uma das finalidades dos dados tratados. Por sua vez, a urgência da tutela estaria justificada pelo fumus bonis iuris desta suposta ilegalidade, enquanto o periculum in mora na manutenção da comercialização diária de tais dados, em constante violação à proteção de dados e privacidade dos cidadãos.
Acertadamente, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido liminar ao considerar que os dados pessoais utilizados seriam proporcionais ao desenvolvimento econômico, à livre iniciativa e à própria defesa do consumidor, sendo, juntamente à tutela da intimidade e da privacidade dos indivíduos, fundamentos da LGPD (art. 2º, VI). Ainda, em consulta ao site da demandada, o magistrado verificou que ela proporciona um ambiente digital acessível e transparente, atendendo à principiologia da LGPD.
Contudo, a reversão do entendimento em grau de recurso que resultou na determinação de suspensão da prestação destes serviços pela Serasa Experian, baseou-se em premissas equivocadas e em uma canhestra interpretação da lei. O desembargador apontou que: “dada a enorme base de dados da empresa agravada (na inicial fala-se em 150 milhões de CPFs), resta evidenciado o grave risco de lesão com o compartilhamento de dados sem autorização”. Com o devido acatamento, a impressão que fica é que o magistrado ignorou o extenso e diversificado rol de hipóteses de tratamento de dados.
A LGPD estipula bases legais que legitimam o tratamento de dados pessoais independentemente do consentimento do titular – que não é prioritário e nem predominante –, como é o caso do “legítimo interesse do controlador ou de terceiros”, previsto em seu art. 7º, IX. Em razão de sua subjetividade e abrangência, a adoção desta hipótese de tratamento impõe cuidados específicos, como a confecção de um Teste de Ponderação de Legitimo Interesse (LIA). Isto não quer dizer que a operação de tratamento seja ilegal apenas por representar riscos; pelo contrário, significa que a empresa se preocupou em adotar boas práticas de governança, estudando suas fragilidades e observando os meios necessários para atenuá-los.
Vejamos, a título de exemplo, o contexto europeu. Segundo a Considerandum nº 47 do GDPR, as atividades de marketing direto podem ser embasadas no legítimo interesse<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Ainda, de acordo com informações complementares da Autoridade Nacional de Proteção de Dados do Reino Unido (ICO), para que o atendimento desta base seja legal, as atividades de marketing devem estar em conformidade com padrões éticos e de privacidade<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, algo que foi muito bem salientado pelo juízo de primeiro grau no caso em comento.
No Brasil, por opção legislativa, tal base legal foi elevada à cláusula geral a ser observada no âmbito da LGPD, na forma do art. 10 (“apoio e promoção das atividades do controlador”). No entanto, por se tratar de conceito amplo e abstrato, encontra nos incisos I e II limites para sua aplicação<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>: atendimento às expectativas do titular e aos legítimos interesses do controlador.
Vale lembrar que, os dados tratados no caso concreto, embora, sem dúvidas, digam respeito à privacidade do titular não dão ensejo à discriminação de qualquer modo, bem como são ordinariamente utilizados em relações comerciais. Nada mais são do que informações de indivíduos comumente encontradas em fontes públicas. Aliás, a esse respeito, o art. 7º, § 4º da LGPD, esclarece que é dispensada a coleta do consentimento no tocante aos dados tornados manifestadamente públicos, resguardando-se os direitos do titular e os princípios da Lei.
O que mais salta aos olhos é que, na prática, se a decisão monocrática tivesse efeitos vinculantes (quod non), as atividades de marketing digital estariam proibidas, observada a impossibilidade de embasamento de tal operação de tratamento de dados no legítimo interesse. Afinal, caso o consentimento fosse condição sine qua non para o tratamento de dados pessoais para fins de marketing, ele seria impraticável.
Com a intensa digitalização da vida humana, potencializada pelas necessárias medidas de distanciamento social de enfrentamento à Covid-19, o marketing digital representa especial relevância para integração entre empresas e consumidores. Em razão do inevitável isolamento social, ações que visam identificar o perfil de potenciais clientes, como é o caso do outbound marketing, podem ser a única oportunidade de sucesso de empreendimentos. A propósito, por meio da geração, captação e conversão de leads, o ambiente digital se torna mais cômodo e ideal para experiência de usuários, enquanto auxilia empreendedores a objetivar seus negócios. É um win-win para o mercado consumidor, a livre iniciativa e a livre concorrência.
Em meio ao cenário de suposições e incertezas em torno da LGPD, empresa e sociedade saem perdedoras, na medida em que o único prejudicado é a segurança e a confiança das relações de consumo. Tal quadro é um delicioso convite para lides temerárias testarem a lei no Poder Judiciário<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e, nesse ínterim da chegada da ANPD, colhemos mais uma vez os efeitos da judicialização por falta de regulamentação adequada, aguardando – com sorte - a revogação da decisão monocrática pelo colegiado.
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O episódio 45 do podcast Sem Precedentes trata de dois julgamentos que irão começar no Supremo Tribunal Federal (STF) e que interferem diretamente nas relações da Corte com o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Ouça:
https://youtu.be/8vxcYqw2vRc
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BECKER, Daniel; WOLKART, Erik Navarro; BRUZZI, Eduardo. Estamos trancados num paiol de pólvora: LGPD, ANPD e demandismo. JOTA. Disponível em: <a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/estamos-trancados-num-paiol-de-polvora-lgpd-anpd-e-demandismo-20072019</a> - Acesso em 26.11.20
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ALVES, Fabrício da Mota; VIEIRA, Gustavo Afonso Sabóia. Sem a ANPD, a LGPD é um problema, não uma solução. JOTA. Disponível em: <a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anpd-lgpd-problema-solucao-06012020</a> - Acesso em 26.11.20.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “The processing of personal data for direct marketing purposes may be regarded as carried out for a legitimate interest” In PRIVACY REGULATION EU. Recital 47, GDPR. Disponível em: &lt;https://www.privacy-regulation.eu/en/r47.htm&gt;. Acesso em: 26.11.2020
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “In terms of the purpose test, some forms of marketing may not be legitimate if they do not comply with other legal or ethical standards or with industry codes of practice. However, as long as the marketing is carried out in compliance with e-privacy laws and other legal and industry standards, in most cases it is likely that direct marketing is a legitimate interest” In INFORMATION COMMISSIONER’S OFFICE (ICO). When can we rely on legitimate interests? Disponível em: &lt;https://ico.org.uk/for-organisations/guide-to-data-protection/guide-to-the-general-data-protection-regulation-gdpr/legitimate-interests/when-can-we-rely-on-legitimate-interests/#marketing_activities&gt;. Acesso em: 27.11.2020
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Em termos práticos, os incisos I e II do art. 10 da LGPD são exemplos do que poderia ser definido como finalidade legítima, mas isso não impede que, sobretudo em relação ao inciso I, o enquadramento da atividade do controlador em tal dispositivo dependa da análise do tipo de atividade a partir de princípios constitucionais como a livre iniciativa e o valor social do trabalho, exemplificativamente. MAIA, Roberta Mauro Medina. O legitimo interesse do controlador e o término do tratamento de dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin. A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Arquipélago: Porto Alegre, 2020, p. 103.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> BECKER, Daniel. LGPD e Castigo. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/noticia/2019/08/26/lgpd-e-castigo.ghtml – Acesso em 26.11.20.

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Consentimento para o marketing e o risco sistêmico de decisões judiciais teratológicas sobre a LGPD

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