Pandemia

Manual jurídico para implantação do Ensino Não Presencial na Educação Básica

Um material objetivo para auxiliar advogados e gestores que atuam na educação

Crédito: Pixabay

A Covid-19 já provocou a maior revolução das últimas décadas na Educação Básica brasileira. O Ensino Não Presencial (que vou usar sempre em maiúsculo como um termo definido, e já justifico), que era um sonho distante, virou realidade em 15 dias para milhares de escolas e milhões de alunos e famílias, a fórceps.

Como tudo que é feito às pressas, vários processos estão atravessados e muitas lacunas estão ficando abertas para que a educação do país não pare. Enquanto o carro anda, as escolas estão trocando pneus e fazendo os ajustes em uma incrível velocidade.

Mas, do ponto de vista jurídico, alguns cuidados básicos, essenciais, podem evitar exposição da escola a riscos. São esses cuidados que vou tratar neste artigo. Uma tentativa de manual de adaptação, baseado na minha experiência como diretor jurídico do maior grupo de escolas particulares do Brasil, que pode auxiliar os próprios gestores escolares ou advogados que prestam serviços para essas intuições. A ideia é socializar conhecimento, de forma simples, direta e ágil, tal como a situação demanda.

Por que estamos falando de Ensino Não Presencial e não de EAD?

Ensino Não Presencial é uma adaptação momentânea e emergencial realizada pelas escolas para atenderem seus alunos durante a interrupção das atividades presenciais, em função da Covid-19. Diversos especialistas em educação têm preferido usar a expressão “Ensino Não Presencial” para que não ocorra confusão com educação a distância, ou como é mais conhecida, EAD.

A modalidade EAD, extremamente difundida no ensino superior, está estabelecida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96), especificamente no seu art. 80, e regulamentada por meio de diversos Decretos, como o 2494/98 e o 2561/98, pela Portaria Ministerial 310/98 e mais recentemente, pelo Decreto 9057/2017.

É fato que o Ensino Não Presencial utiliza meios que já são empregados pelo EAD no Ensino Superior há algum tempo. Mas, os institutos não podem ser confundidos.

O Ensino Não Presencial tampouco pode ser confundido com a oferta de Ensino Médio à distância, que muito vem sendo debatida após a Reforma do Ensino Médio (ver Lei 13.415/17). A legislação permitiu ao Ensino Médio a possibilidade de ofertar de 20% a 30% de suas aulas, a depender do turno, na modalidade EAD. Mas a regulamentação por parte dos sistemas estaduais ainda está em fase inicial em todo o país.

O Ensino Não Presencial é uma tentativa de entrega das atividades presenciais em ambiente virtual. Um exemplo da diferença para o clássico EAD é que uma escola que tem uma sala de aula presencial, com 35 alunos, está montando um aparato on-line para que os professores que atendem presencialmente esses alunos continuem oferecendo o mesmo conteúdo, só que remotamente.

No EAD, uma diferença sensível é o ganho de escala, uma faculdade consegue montar uma turma com centenas de alunos, normalmente utilizando aulas assíncronas e um aparato de tutoria e outros serviços para individualizar o atendimento. No Ensino Não Presencial em tempos de Covid-19, não ocorre ganho de escala, as turmas e professores são mantidos, só que não mais no ambiente físico da escola.

Então, muito do que a legislação de EAD trata não se aplica a este caso excepcional que estamos vivendo. Inclusive, a complexa discussão sobre credenciamento de instituições que podem oferecer EAD não faz sentido para o caso aqui debatido. As escolas que as crianças estão matriculadas são credenciadas como presenciais e estão apenas se virando, diante da calamidade, para que a educação dos alunos não seja paralisada.

Cessão de direito de imagem, voz e conteúdo dos professores

A aula presencial só fica guardada na mente dos alunos, quando eles não filmam com seus celulares, as Aulas Não Presenciais ficam gravadas por tempo indeterminado. Do ponto de vista jurídico, precisamos regular essa nova característica da aula. A primeira tarefa é ajustarmos a cessão desse material que ficará disponível no ambiente virtual.

Seguindo com a intenção de produzir um manual didático e útil, vou apenas enumerar os principais tópicos que devem ser tratados no documento:

(i) individual: a imagem, a voz e o conteúdo é de cada professor, então a cessão tem que ser individual, assinada um a um;

(ii) destino da aula: o termo deve prever de maneira clara a que a aula se destina. Se vai ser apenas visualizada por alunos de uma turma, se vai ser transmitida para outras turmas da mesma escola ou se vai ser disponibilizada de forma aberta ao público;

(iii) prazo: o termo tem que estabelecer se o conteúdo poderá ser utilizado por um ano letivo, por dois anos letivos ou até por período indeterminado, mas o prazo deve constar no termo;

(iv) remuneração: cada escola deve entrar em acordo com os professores para decidir sobre a remuneração da aula. Se a atividade não presencial já estiver inserida na carga horária e na remuneração do professor, não é necessário que haja pagamento específico. Porém, se é um trabalho adicional realizado pelo professor, ele pode fazer jus à remuneração. O mais importante é que isso seja acordado entre escola e cada professor, individualmente, e conste no termo de cessão.

(v) não representa vínculo trabalhista: é importante deixar claro que a cessão não é um novo contrato de trabalho, assim como não altera relação de trabalho existente entre as partes. Seja remunerada ou não, é um termo específico para as aulas que serão disponibilizadas no ambiente virtual, mas não altera a relação fundamental do professor com a escola, como remuneração por aula ou carga horária semanal.

Dúvidas frequentes

Mas como eu vou prever tudo isso agora? E se eu mudar de ideia em seguida?

Mudar de ideia é normal, mas antes de operacionalizar a ideia, entre em contato com os professores e atualize o termo com cada um. Dá trabalho, mas é para a segurança da escola e do professor.

Como eu vou pegar todas essas assinaturas agora que os professores estão em casa?

Existem meios tecnológicos que podem facilitar a vida da escola, como empresas que realizam assinatura digital. Se não for possível para a sua escola, uma alternativa é o professor imprimir, assinar e mandar foto. Se o professor não tem impressora em casa, em função do momento de crise, peça para dar um aceite formal por e-mail e depois pegue o documento assinado por ele, a boa-fé precisa prevalecer.

Questões pedagógicas, como são decididas?

Até a data em que escrevi esse manual, ainda havia muitas perguntas em aberto sobre a regulamentação das atividades não presenciais. Vale ressaltar que cada Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, por meio de seus Conselho de Educação, tem competência para criar as regras do respectivo sistema de ensino – o que inclui a administração das escolas públicas e as regras a serem cumpridas pelas escolas privadas.

A iniciativa privada é regida pela liberdade de ensino (art. 7º da LDB), devendo apenas cumprir as normas gerais da educação nacional e as regras mais específicas do respectivo sistema de ensino. Dessa forma, não havendo deliberação específica, as escolas privadas têm liberdade para prestarem seus serviços de acordo com as suas propostas pedagógicas.

Mas, isso significa dizer que o Ensino Não Presencial não substituirá as obrigações nacionais gerais – tal como obrigação de cumprimento de carga horária e aos dias letivos mínimos, que estão previstos na LDB e devem ser prestados presencialmente, para todos os segmentos, caso não haja autorização contrária expressa.

Em relação aos dias letivos, o Governo Federal já editou a Medida Provisória 934/2020 que permite a flexibilização dos 200 dias letivos previstos na LDB – porém, mantendo a carga horária mínima anual. Tal decisão não autoriza automaticamente a utilização do Ensino Não Presencial para compensar os dias letivos, o possível aproveitamento de horas ou dias letivos na modalidade Não Presencial depende ainda de autorização expressa do Conselho de Educação de cada sistema de ensino. O que a Medida Provisória permite automaticamente é que a escola aplique mais horas de aulas em menos dias letivos, para compensar o período de fechamento.

Os sistemas estaduais e municipais de educação estão no caminho para autorizar a substituição de aulas presenciais por Não Presenciais, o que pode vir a ser inevitável, a depender do tempo de suspensão das aulas presenciais.

O CEE/RJ foi um dos primeiros a regulamentar a questão. Por meio da Deliberação 376, deu liberdade para que as instituições de Educação Básica, com a participação do seu corpo docente, pudessem planejar e organizar as atividades escolares a serem realizadas fora da instituição (Não Presencial).

Porém, obrigou que fosse elaborado um plano de ação pedagógica completo contendo os objetivos, métodos, técnicas, recursos, carga horária para cada atividade, formas de acompanhamento, avaliação e comprovação da realização pelos alunos. E que esse plano de ação pedagógica fosse divulgado a toda a comunidade escolar e remetido à inspeção escolas, por meio eletrônico, no prazo de 30 dias. O CEE/SC, provavelmente um dos mais evoluídos no tema, elaborou a Resolução 009/2020 muito similar à do RJ.

Talvez a explicação inicial tenha sido muito técnica para um manual. Então vamos às questões mais comuns dos gestores de escolas, para facilitar o entendimento:

As aulas Não Presenciais da minha escola poderão ser contabilizadas como horas e dias letivos?

Tanto as horas quanto os dias letivos apenas poderão ser aproveitados se houver deliberação nesse sentido do Conselho de Educação que regula o seu sistema de ensino. Se não houver deliberação específica sobre o tema, a princípio, não poderão ser contabilizadas.

O que eu preciso fazer para que as atividades Não Presenciais sejam consideradas horas para completar a carga horária mínima anual ou dias letivos?

Cada estado tem o poder de autorizar o aproveitamento de criar suas próprias exigências. Você deve buscar nas regulamentações do sistema de ensino do seu estado para confirmar se existe autorização para aproveitamento dos dias e horas e verificar quais os requisitos.

Se o estado em que se situa a minha escola ainda não se manifestou sobre a possibilidade de Ensino Não Presencial, eu ainda assim posso prestar o serviço?

Sim, a escola tem liberdade pedagógica para oferecer o serviço, apesar dessas aulas não poderem ser contabilizadas nas horas ou dias letivos.

Se o estado em que se situa a minha escola ainda não se manifestou sobre a possibilidade de Ensino Não Presencial, por que ofereceríamos isso nossos alunos?

Diversas são as razões: pedagógicas, comerciais, etc. Mas agora, vamos manter o foco na regulatória. Não sabemos o tempo que a suspensão das aulas vai durar. Uma coisa é certa, quanto mais tempo, maior será a pressão pela utilização da modalidade Não Presencial para o cumprimento do projeto pedagógico da escola e para o atingimento das horas e dias letivos mínimos. Então, é bom que as escolas já estejam preparadas.

Por fim, como a maioria dos Conselhos de Educação ainda não regulamentou a questão, vale atenção a algumas práticas mínimas que devem ser tomadas, caso venha regulamentação posterior:

  • Ter um plano de ação pedagógica elaborado, assinado pelos representantes pedagógicos da escola e com suporte dos professores, divulgado para toda a comunidade escolar. Nele devem estar detalhados os métodos e técnicas a serem utilizados, de acordo com a liberdade pedagógica da escola;
  • Definir a carga horária para cada atividade proposta. Como não existe tempo dentro de sala de aula, cada atividade deve ter o seu tempo estimado pelos especialistas da escola, aulas gravadas ou ao vivo têm tempo preciso, mas outras tarefas como leitura, realização de trabalhos e questionários, podem ter tempo estimado pelo corpo técnico da escola;
  • Controlar o cumprimento das atividades dos alunos;

Manual de Conduta não presencial para professores e alunos

Manual de conduta para alunos não é novidade. Escolas formulam, sob diversas denominações, verdadeiros códigos de comportamento dos alunos que são entregues antes do início do ano letivo.

Tais documentos dispõem sobre os direitos e obrigações dos alunos, sobre o que pode o que não pode ser feito dentro do estabelecimento escolar. O problema é que esses códigos não atendem a nova realidade, pois não se preocuparam na transferência da escola para dentro do lar do aluno por meio da tela de um computador ou um celular.

É importante que escola adapte os seus códigos para que fiquem compatíveis com a realidade virtual. Temas como cyberbullying, declaração de que o ambiente online é uma extensão da sala de aula; destaque para a honestidade na realização de tarefas sem consultas e não compartilhamento de suas aulas nas redes sociais pessoais, são alguns que a escola tem que endereçar diante da nova realidade.

Se um manual do aluno já existia em diversas escolas, um manual de conduta para professores é algo bem raro. As escolas apenas recentemente começaram a se debruçar sobre temas mais espinhosos que dizem respeito a atuação dos professores em sala de aula.

Temas como política, sexualidade ou religião ainda são tabu nas conversas instituição-professor. A grande questão é que se atuação irresponsável de alguns professores dentro da sala de aula já expunha as escolas ao risco. Agora, em ambientes virtuais que corrompem o direito ao esquecimento, a exposição ficou muito maior.

Por isso, é extremamente importante que as escolas formalizarem com seus professores as regras de condução de suas aulas em ambientes não presenciais. Um código de conduta bem elaborado dá segurança ao professor, por deixar clara a forma de condução das aulas em conformidade com o que a escola espera dele.

E dá segurança à instituição de ensino, pois a protege de transgressão de professores, deixando igualmente claro que determinadas atitudes dos professores não são orientações ou políticas da escola, mas decisões individuais dos professores.

Sempre com o objetivo de deixar colaborações concretas para gestores escolares ou advogados que assessoram escolas, seguem algumas sugestões de temas que deveriam ser apreciados nesses códigos de conduta:

  • Postura ética no ambiente virtual: neste trecho a escola deve mencionar o que considera postura ética do professor, deixa claro o que entende por conteúdo não adequado, como de cunho sexual, propaganda política ou cultos religiosos, por exemplo. Vale destacar sempre o respeito no tratamento a outros professores e aos alunos;
  • Respeito aos direitos autorais de terceiros: o professor deve ser avisado a não compartilhar aulas de outros professores, livros completos ou outros conteúdos que firam a propriedade intelectual de terceiros.
  • Privacidade dos conteúdos e respeito a imagem dos alunos: a escola deve alertar seus professores a não compartilharem os conteúdos das aulas nas suas redes sociais. Primeiramente, porque o conteúdo é de propriedade da escola, além disso, ainda mais grave, pode expor os alunos ao público.
  • Utilização dos meios não presenciais para divulgação de mensagens ou propaganda que não sejam de cunho pedagógico ou vinculados à aula do professor: professores podem confundir o espaço virtual com seus grupos pessoais ou suas próprias redes. É preciso deixar claro que os ambientes de ensino não presencial são apenas uma extensão da sala de aula.

Para simplificar, código de conduta pode ser validado por e-mail ou mesmo com uma simples anuência depois de um clique na caixinha “Li e estou de acordo”

Contrato de Prestação de Serviços Educacionais

Cumpre destacar que as adaptações para o Ensino Não Presencial não foram uma opção das escolas, não tiveram objetivo comercial e não tiveram a intenção de reduzir custos ou aumentar lucratividade. Ocorreram exclusivamente por conta de determinação estatal, decretos espalhados por todo o país, que proibiram a prestação dos serviços presencialmente.

Os ajustes na prestação do serviço são trocas úteis e justas e cumprem a necessidade imposta pelo Estado e demonstra a boa-fé das instituições de ensino a adequarem seus serviços, da melhor forma possível, aos anseios da comunidade escolar.

Dessa forma, entendo que não existe necessidade de revisar os contratos de prestação de serviços agora. Principalmente, porque retornada à normalidade, o que esperamos ser muito em breve, a prestação do serviço voltará a ser como antes. As adaptações, como já dito, são provisórias e emergenciais.

(Especificamente sobre a cobrança de mensalidades, vale a leitura do excelente artigo publicado por Roberta Leite aqui no JOTA – “Aulas suspensas, alunos em casa. Tenho que pagar a escola?”).

Mas, certamente, ao fim da crise, a comunidade escolar terá aprendido novas formas de comunicação com as famílias e de ensino. Ficará o legado da utilização do Ensino Não Presencial que pode ser combinado com o Ensino Presencial- modelos híbridos (blended learning), sala de aula invertida, dentre diversas outras ideias. Se os contratos nesse momento não precisam ser alterados, não significa dizer que não esperamos alterações futuras para contemplar a nova fase da educação brasileira.

Desejo muito sucesso à comunidade escolar que está trabalhando de forma incansável para continuar a educação do nosso país. Obrigado, de coração, pela dedicação de todos.