regulação e novas tecnologias

Fintech Litigation: o cenário jurídico e o aumento de demandas sobre fraude

Assim como o sistema bancário se reinventa, fundamental também é a reinvenção do mercado jurídico

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Crédito: Unsplash

A maior revolução do sistema financeiro global, sem muito alarde, chegou no Judiciário brasileiro. O fato é que a união dos termos “fintech” e “litigation”[1] em nosso país é por essência explosiva e comporta diversas análises. Do ponto de vista das fintechs, a tese é simples e está no pitch deck de qualquer uma das milhares de startups que atuam, ou objetivam atuar, no sistema financeiro nacional. Apenas cinco bancos concentram mais de 80% das operações bancárias do país.[2] Ou seja, um clássico caso do princípio de pareto.

A concentração bancária, que outrora era tema dos debates políticos, foi incorporada pela indústria oriunda do Vale do Silício. No lugar em que muitos observam uma dor, os empreendedores enxergam oportunidade. E não foi diferente com o setor bancário nacional. Assim, a segunda década do século 21 foi marcada pela explosão cambriana das denominadas fintechs no Brasil. A jornada não foi simples, mas em decorrência de um trabalho excepcional do regulador, o Banco Central, somado aos desenhos criativos de advogados brilhantes e com a vontade de grandes fundos de venture capital nacionais e internacionais com apetite para investir bilhões, uma nova indústria ascendeu.

Cabe mencionar alguns aspectos emblemáticos de tal jornada, tal como a criação das Sociedades de Crédito Direto (SCD)[3]; o relatório do “a16Z”, tratando do mercado de fintechs na América Latina; e os IPOs de Stone[4], XP Investimentos[5], Banco Inter[6] e Nubank[7]. Desta forma, o Brasil passou a ser vitrine para o mundo, e os neobanks nacionais referências para todos.

Todavia, ingênuos foram aqueles que acharam que os desafios regulatórios seriam a grande questão jurídica para as fintechs, ou quem supôs que o leading case envolvendo o Guia Bolso e o Bradesco, tratando de open banking, seria o tema mais relevante do setor[8]. Estamos no Brasil, um dos países do mundo que mais gasta parte do seu PIB com o Judiciário (aproximadamente 2% nos últimos anos).[9] Sim, o país da judicialização traria suas novidades para os neobanks que, na medida em que crescem de maneira exponencial sua base de clientes, também ampliam suas carteiras de processos judiciais.

E aqui se nota um aspecto interessante. Em que pese muitas das fintechs pautarem sua atuação pelo encantamento dos clientes, o fato é que situações de fraude bancária, que fogem aos controles das empresas inovadoras, passaram a ser a maior dor de cabeça das lideranças jurídicas e financeiras das empresas. O ponto é que a criatividade de alguns compatriotas utilizada para o lado negativo faz com que o Brasil seja, historicamente, o laboratório para a criação de centros de segurança. É interessante notar, a título de exemplo, que o chip demorou anos para ser implementado nos cartões de crédito americanos.

E aqui alguns questionamentos: será que as fintechs passarão a constar nas listas de maiores litigantes dos tribunais brasileiros? É possível fazer algo para mudar esse futuro indesejado? O Direito 4.0 pode ajudar de alguma forma?

Entendemos que a resposta é positiva. O primeiro aspecto fundamental para entender a questão diz respeito às lideranças jurídicas de tais empresas. A cultura proveniente de fundadoras e fundadores com o propósito muito forte de fazer as coisas de uma forma diferente oportuniza ambiente de atração para heads de departamentos jurídicos inovadores. Além disso, jurimetria, automação de documentos, plataformas de acordo e uso de visual law são ferramentas disponíveis para permitir que as carteiras não cresçam em proporções exponenciais.

É importante que o mercado jurídico utilize de todo o ferramental disponível para que possamos também perceber uma revolução no sistema judiciário. Da mesma forma que o sistema bancário está sendo reinventado, fundamental também é a reinvenção do mercado jurídico. É preciso que departamentos jurídicos sem gravata, áreas de eficiência jurídica, departamentos de legal operations, lawtechs, ALSPs[10], escritórios de advocacia mais modernos e mais tradicionais colaborem para vivenciarmos também uma revolução no contexto do ambiente jurídico nacional.


[1] Apresentamos a expressão criada no escritório Lima ≡ Feigelson Advogados na obra Banking 4.0, publicado pela editora Revista dos Tribunais no selo da Future Law (FEIGELSON, Bruno e SILVA, João Pedro Brígido Pinheiro da. Fintech Litigation: Conceito e Prática, In: FEIGELSON, Bruno e BRUZZI, Eduardo (Coord.). Banking 4.0: desafios jurídicos e regulatórios no novo paradigma bancário e de pagamentos. 1ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020).

[2] Os dados são do Relatório de Economia Bancária, elaborado pelo BACEN (https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioeconomiabancaria/reb_2020 e https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/concentracao-bancaria-cai-para-81-revela-bc

[3] As SCD foram formalmente criadas em 26 de abril de 2018, por meio da Resolução número 4.656, do Conselho Monetário Nacional (cf. arts. 1º, 3º e seguintes).

[4] Consulta disponível em www.nasdaq.com/market-activity/ipos/overview?dealId=1065666-88024.

[5] Consulta disponível em https://www.nasdaq.com/market-activity/ipos/overview?dealId=1101440-91088.

[6] Consulta disponível em https://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-servicos/negociacao/renda-variavel/empresas-listadas.htm?codigo=24406.

[7] Consulta disponível em https://www.nasdaq.com/market-activity/ipos/overview?dealId=1010055-100948.

[8] Em síntese, em 2016, o Banco Bradesco entrou na justiça contra o Guia Bolso. O Bradesco acusava o aplicativo do Guia Bolso de ter falhas de segurança no acesso, motivo pelo qual defendia o uso de token como forma de proteção ao usuário e pediu ao aplicativo que não coletasse os dados dos seus clientes. O Guia Bolso, por sua vez, defendia que havia alternativas para acesso aos dados sem comprometer a segurança dos consumidores. A questão tomou proporções de natureza anticoncorrencial, sendo encerrada por meio de acordo do Bradesco com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), no âmbito de processo administrativo instaurado para a investigação de supostas práticas anticompetitivas contra o Guia Bolso. Como parte do acordo, o Bradesco encerrou o processo contra o Guia Bolso no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, se comprometeu a interromper as condutas investigadas e pagou uma multa de R$ 23,8 milhões para o CADE (Processo Administrativo n. 08700.004201/2018-38 e http://antigo.cade.gov.br/noticias/bradesco-firma-acordo-com-cade-em-investigacao-de-pratica-anticompetitiva-contra-guiabolso).

[9] Desde 2019, são mais de R$ 100 bilhões por ano, representando quase 2% do PIB em alguns anos. Os dados são do relatório “Justiça em Números 2021”, disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça (https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/).

[10] Alternative Legal Service Provider.logo-jota