Opinião e Análise

Daniel Becker

Felippo Accetta

O que o avião, a TNT e a liberdade de expressão têm em comum? As três, embora fundamentais para a sociedade, comumente são subvertidas para fins nefastos: bombardeios, explosivos militares e desinformação.
Na República de Platão, Sócrates defende que a democracia é um sistema autodestrutivo, pois, ao permitir a liberdade de expressão, ela dá espaço para que um demagogo use tal faculdade para se aproveitar do caráter leviano das massas e substituir o sistema democrático por uma tirania. Não à toa, o infame Joseph Goebbels declarou que a democracia deu a seus inimigos mortais os meios pelos quais foi destruída.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Hoje, aprimorada pela marcha histórica, a democracia tem mecanismos para frear os abusos da liberdade de expressão. Mas até quando? Neste breve texto, discutimos as investidas do Poder Executivo federal para impedir as redes sociais de mitigarem a disseminação de fake news.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Ao editar a Medida Provisória nº 1.068, o chefe do Poder Executivo não se atentou, ou preferiu não o fazer, a importantes ditames que embarreiram, por completo, a sua pretensão de ver limitada a atuação moderadora das plataformas no tocante à remoção de conteúdos e suspensão de conta de usuários. Como já sublinhado por diversos juristas, o texto da Medida Provisória nº 1.068 elucida a sua nítida origem inconstitucional, tanto formal quanto material. Formal porque, de plano, não preenche os requisitos de relevância e urgência, na forma do art. 62 da Constituição da República.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Material, pois, viola diversos dispositivos constitucionais, tais como o devido acesso à informação e a livre concorrência e iniciativa, consagrados no texto constitucional nos arts. 5º, XIV, e 170, caput, IV, respectivamente.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Como era de se esperar, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu o texto ao presidente, sob o argumento de que a MP geraria insegurança jurídica paras as redes sociais. Quase de forma simultânea, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, mediante decisão na ADI 6991 MC/DF, suspendeu os efeitos da MP, assegurando que “as empresas e provedores de redes sociais estão, no momento, em situação de manifesta insegurança jurídica, despendendo recursos humanos e econômicos para adequação de suas políticas e de seus termos de uso a medida de duvidosa constitucionalidade”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Irresignado com a já esperada derrocada, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei quase idêntico ao teor da MP nº 1.068. Contudo, embora com nova roupagem, a PL repete os mesmos equívocos de conteúdo, merecendo destaque para dois importantes pontos, quais sejam (i) o próprio Marco Civil da Internet e seus princípios, bem como (ii) a necessária interseção entre direito e cultura, como bastião e propagadores da luta contra a prática de fake news.
Invadindo a esfera do Marco Civil da Internet, o PL, assim como a MP, busca limitar a atuação espontânea do provedor para remover conteúdos e suspender cadastros que, de alguma forma, prejudiquem o ecossistema digital e seus usuários.
Não se pode esquecer que o Marco Civil, em seu art. 19<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, estabelece a necessidade de descumprimento de ordem judicial específica para a pronta responsabilização do provedor de aplicações de internet. Contudo, a partir de uma interpretação sistêmica dos princípios da referida lei, a moderação de conteúdo será realizada independente da atuação judiciária, quando este for divergente dos termos estabelecidos pelas plataformas.
Embora a liberdade de expressão seja um dos princípios que regem e norteiam o Marco Civil da Internet, deve-se pontuar que não se trata de direito absoluto. Nesta toada, a própria lei autoriza as plataformas a adotarem medidas restritivas a publicações que ofendam, por exemplo, terceiros, repelindo discursos de ódios, conforme ditamos do arts. 20, caput e §º único e 21.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Noutro giro, regular diretrizes pactuadas contratualmente é medida temerosa que gera alto grau de insegurança jurídica. Não custa rememorar que essas orientações, com a consequente vinculação de seus usuários, são contratos, e, por conseguinte, devem ser regulados pela autonomia da vontade das partes, bem como pela liberdade contratual, princípios contratuais fundamentais. Nessa linha, “aplica-se uma ação de caráter punitivo, a partir de um julgamento particular ou privado, formado por uma convicção de quebra das regras pré-estabelecidas em termos e condições ou de limites socialmente reconhecidos.”. <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
A propósito, o próprio MCI desautoriza a moderação de conteúdos ao Poder Executivo, à luz dos arts. 24 e seguintes, limitando sua atuação. <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Por óbvio, vincular, por força bruta, a necessidade de ordem judicial para que os provedores possam vir a tomar medidas de segurança deve ser objeto de pronta repulsa, sob a ótica de profundo abalo e desrespeito aos termos e condições de uso das plataformas, lastreados, também, pela Lei de Liberdade Econômica, em seus arts. 2º, caput, I e 421-A, caput, I.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Ainda, os olhos devem-se voltar à importante cultura social que vem se propagando, cada vez mais, no âmbito tecnológico: o combate à desinformação. Não é novidade que a informação se tornou poderosa arma de controle social, uma vez que ela, muitas vezes, funciona como gatilho afirmativo de instâncias políticas preexistentes. <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> Exemplos históricos transbordam quando se debruça sobre o tema.
Em recentíssimo caso, talvez um dos mais relevantes, o perfil social do ex-presidente norte-americano Donald Trump foi excluído de diversas plataformas sociais, tais como o Twitter e o YouTube, sob o fundamento de disseminação de fake news que fomentavam um ambiente caótico, perigoso e violento.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
Esse poderoso precedente, de fato, interferiu nas razões presidenciais tanto ao editar a MP quando ao encaminhar o novo PL. O exílio social de ex-presidente norte americano fez com que seu poder persuasivo informacional diminuísse drasticamente. Cumpre destacar que o referido poder persuasivo é o principal responsável pela formação de bolhas idealistas de pura manipulação social: a ilha só consome de si própria, sendo alheia a tudo que está em volta.
Pautado pela muleta da liberdade de expressão que, frise-se, não é medida absoluta, o Presidente da República entabulou a necessidade de proibição da espontaneidade das atuações sobre a disseminação de informações inverídicas, divergindo, por completo, do atual ensejo social em busca da melhor informação. Stefano Rodotá, no início dos anos 2000, já havia pincelado escritos sobre a disputa entre liberdade de expressão versus censura.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>
As liberdades de informação, expressão e manifestação têm como finalidade o livre exercício da democracia, assegurando a participação do maior número possível de indivíduos nas mais diversas esferas de assuntos inerentes à sociedade em que vivem. Contudo, sobre os últimos dois deveres constitucionais, há de se rememorar que não são absolutos, encontrando limitações na própria Constituição da República, afinal, “até as próprias opiniões perdem sua imunidade quando são expressas em circunstâncias tais que convertam essa sua expressão em franca instigação a alguma ação perniciosa”.<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
A título exemplificativo, nenhum dos princípios acima podem deixar de conviver harmonicamente com outros, tais como a inviolabilidade da intimidade, privacidade honra e imagem. Em fresca declaração, o ministro Luis Roberto Barroso chamou atenção para a importância de “militantes da proteção da democracia” para “preservar a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, impedir que a mentira deliberada e a desinformação comprometam a democracia”.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
A liberdade de expressão serve para proteger o discurso dos cidadãos e seus representantes. Discurso de ódio e desinformação não têm espaço dentro do princípio democrático. Portanto, pode-se dizer, sem medo de errar, que as lamentáveis iniciativas estão divorciadas tanto do espírito do MCI e da liberdade, quanto do combate à desinformação.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”. São Paulo: L&amp;PM, 2018 (edição Kindle).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Art. 62, Constituição Federal: em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 5º, XIV, Constituição Federal: é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
Art. 170, caput, IV, Constituição Federal: a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: IV – livre concorrência.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Voto da Ministra Rosa Weber na ADI 6991 MC/DF. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/adi-6991-mc.pdf">https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/adi-6991-mc.pdf</a>. Acesso em: 01.10.21.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 19, Marco Civil da Internet: com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Art. 20, Marco Civil da Internet: sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. § único: Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização;
Art. 21, Marco Civil da Internet: O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> BECKER, Daniel; GUEIROS, Pedro. Os Tribunais de Nuremberg virtuais. JOTA. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/os-tribunais-de-nuremberg-virtuais-12092020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/os-tribunais-de-nuremberg-virtuais-12092020</a>. Acesso em: 07.10.21
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Art. 24, Marco Civil da Internet: constituem diretrizes para a atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no desenvolvimento da internet no Brasil
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 2º, Lei de Liberdade Econômica: são princípios que norteiam o disposto nesta Lei: I – a liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas.
Art. 421-A, Lei de Liberdade Econômica: os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Objetiva: São Paulo, 2012 (edição Kindle).
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Twitter bane conta de Trump de modo definitivo e tira pilar de sua comunicação política. Disponível em: <a href="https://oglobo.globo.com/mundo/twitter-bane-conta-de-trump-de-modo-definitivo-tira-pilar-de-sua-comunicacao-politica-24830684">https://oglobo.globo.com/mundo/twitter-bane-conta-de-trump-de-modo-definitivo-tira-pilar-de-sua-comunicacao-politica-24830684</a>. Acesso em: 11.09.21.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> RODOTÁ. Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 168-169.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> MILL, Stuart. Sobre a liberdade, Trad. Denise Bottmann. Porto Alegre: L&amp;PM, 2015, p. 87.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, respondeu a perguntas da imprensa em uma entrevista coletiva após a apresentação do sistema eletrônico de votação aos representantes dos partidos políticos que compareceram à inauguração do “Ciclo de Transparência Democrática – Eleições 2022”, realizado nesta segunda-feira (4), na sede do Tribunal, em Brasília. Disponível em: <a href="https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Outubro/duvidas-da-populacao-sobre-voto-eletronico-motivaram-a-abertura-do-ciclo-de-transparencia-afirma-barroso-em-entrevista-coletiva">https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Outubro/duvidas-da-populacao-sobre-voto-eletronico-motivaram-a-abertura-do-ciclo-de-transparencia-afirma-barroso-em-entrevista-coletiva</a>.  Acesso em: 05.10.21

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