Opinião e Análise

Daniel Becker

Pedro Gueiros

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é terreno fértil para sensacionalismo e clickbaits. No lugar de sugestões acuradas, proposição de soluções matizadas ou análises técnicas, apontam-se dedos desenfreadamente com acusações que não passam de ar quente. E a bola da vez é o WhatsApp. Nas últimas semanas, assistimos a uma enxurrada de revolucionários de sofá criticando a nova Política do aplicativo em grupos – atenção! – no próprio WhatsApp. Ameaças de mudança para os aplicativos de mensagens Telegram e Signal foram uma das bravatas mais lidas e ouvidas nesse período.
De acordo com os novos termos da Política de Privacidade, o aplicativo de mensagens continuaria a compartilhar dados pessoais com o Facebook<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. A atualização, embora transparente, acessível, sem qualquer modificação efetiva quanto à finalidade do tratamento e sem qualquer acréscimo na coleta de novos dados pessoais, foi vista com grande espanto; os paladinos da privacidade questionaram a ausência de "consentimento" para esta atualização. Ainda que tal argumento tenha sido tomado de empréstimo do manicômio, é importante rebatê-lo de uma vez por todas, pois parece que a ignorância tem sido o tom da orquestra dos evangelistas da privacidade.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato" rel="attachment wp-att-291327"><img class="size-medium wp-image-291327 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/11/jota-pro-poder-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Avante ao óbvio. O consentimento, juntamente com o interesse legítimo do controlador e a execução de contrato, parece ser um dos grandes dilemas para a atribuição de bases legais na LGPD. Não deveria ser. A lei é clara ao estipular que são hipóteses de tratamento, oferecendo-as juntamente com outras sete bases legais que justificam e legitimam as operações envolvendo dados pessoais.
Com o perdão do truísmo, é bom dizer que WhatsApp e Facebook fazem parte do mesmo grupo econômico. Juntamente com outras plataformas, como o Instagram, desenvolvem e aperfeiçoam suas aplicações de modo centralizado. Ao analisar os dados de maneira mais sofisticada, podem (i) adotar os melhores mecanismos para segurança da informação, atendendo aos princípios da segurança e prevenção, e (ii) promover seus serviços de forma direcionada e ainda mais assertiva. Tudo isso encontra-se na esfera do legítimo interesse do WhatsApp e de seu grupo ou na execução do contrato firmado pelo usuário ao aceitar os Termos de Uso desses aplicativos.
Sobre a base da execução do contrato, vale destacar que, na maior parte dos casos, quando há vontade, manifestação de vontade ou consentimento para a celebração de um negócio jurídico e este envolva, por consequência, também o tratamento de dados pessoais, a base legal será a “execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular”, na forma do artigo 7º, V, da LGPD<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, e não do consentimento.
Não é demais lembrar que, no âmbito do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR), tal base legal é denominada contractual necessity: o objeto principal do contrato com o titular de dados não pode ser executado sem esse tratamento de dados<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.A atualização, a bem da verdade, atende aos princípios da finalidade, adequação e transparência ao delimitar para quais usos tais compartilhamentos se destinam<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e sobre quais dados pessoais<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Vemos, portanto, para muitas desses casos, as hipóteses numerus apertus para aplicação do legítimo interesse como base legal, definidas nos incisos do art. 10 da LGPD.
<blockquote class="jota-article__eye">Em outras palavras, a medida não apenas atende a promoção das atividades do WhatsApp, como também se verifica “a relação íntima entre a aplicação da cláusula geral de interesse legítimo do controlador e as legítimas expectativas do titular de dados”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.</blockquote>
Para outras, repita-se, a execução do contrato firmado com o usuário é a base legal correta e legítima.
Ainda assim, diante da reação decorrente de tais modificações contratuais, o provedor de aplicações prolongou o prazo para revisão e aceitação dos novos termos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. E vale lembrar: embora igualmente relevantes, aceitação/anuência/concordância/ciência/consentimento e consentimento para tratamento de dados são coisas distintas que, como o óleo e a água, não se misturam. Enquanto o primeiro se traduz em um elemento no plano da validade do negócio jurídico, o segundo diz respeito a uma base legal da LGPD para, repita-se, tratamento de dados. Este último se traduz em um elemento “extremamente oneroso, pois impõe o dever de gestão e ônus da prova, bem como requisitos rígidos, cujo mínimo desvio pode representar um passivo para as companhias”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Não é à toa que a sua utilização na prática é extremamente restrita. Pergunta-se: pelas regras da experiência, seria possível, viável ou eficiente que o WhatsApp utilizasse, no caso em comento, a base legal do consentimento? Imagine-se. Tal operação demandaria uma força tarefa quase tão grande quanto àquela necessária para a vacinação contra a Covid-19 — e sem qualquer necessidade, considerando o mérito da atualização e  a existência de bases legais mais adequadas.
Um argumento não menos profano é que o legítimo interesse mereceria, de forma irrestrita, a possibilidade de opt-out. Talvez para marketing direto, mas definitivamente essa não é a regra geral. Exemplo? Uso de dados pessoais para prevenção à fraude, compartilhamento de dados pessoais para back-up, segurança dos usuários e integridade dos serviços et cetera. No caso que ora examinamos, o direito à oposição ao tratamento de dados não se sustenta.
Feitas essas observações, também é importante destacar que, em seu nicho comercial, o WhatsApp sempre foi referência em termos de privacidade, por ser uma das poucas plataformas que utiliza o sistema de criptografia de ponta a ponta (p2p). Em outras palavras, terceiros — e os próprios WhatsApp e Facebook — não têm acesso: (i) ao registro de pessoas contactadas, (ii) às localizações compartilhadas e, o mais importante, (iii) ao teor das mensagens trocadas<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Por serem o núcleo duro da privacidade em questão, a medida “é benéfica à proteção de dados ao aumentar a confiança dos seus usuários e a segurança do sistema tecnológico, impedindo ou dificultando acessos indevidos”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Ressalte-se que a referida transparência abrange ainda a possibilidade de os usuários conhecerem efetivamente o que está sendo compartilhado, mediante solicitação dentro dos ajustes do aplicativo.
Nada obstante, recentemente, o Procon-SP acionou a plataforma, exigindo, “que a empresa informe detalhadamente sobre o enquadramento da política de privacidade” à LGPD e ao CDC<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Frente à (anterior) inexistência do futuro órgão especializado em proteção de dados, o ente vinha se debruçando sobre diversas controvérsias envolvendo a tutela de dados pessoais. Não pode - e já não podia, mesmo antes - ser o caso.
Ao solicitar à empresa para esclarecimentos óbvios, o PROCON, que “não possui competência institucional para tratar de proteção de dados pessoais e privacidade”<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>, a agência deixa claro seu completo desconhecimento daquilo que pretende canhestramente regular. Vemos, assim, mais um capítulo “[d]a problemática medida do Procon-SP que prejudica a inovação e diversos outros provedores de aplicação somando mais um ponto na escala do Risco Brasil”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Afinal, quem não se lembra da medida ilegal do PROCON-SP contra a Apple e a Google por comercializarem o inofensivo aplicativo FaceApp — que nada tem a ver com o Facebook, é bom dizer? Para o PROCON-SP, portanto, se a sua tese não dialoga com a realidade, pior para a realidade.
Nas palavras do rapper Black Alien, no país da fake news com um milhão de views e um milhão de “ninguém viu”, é preciso responsabilidade, estudo, leitura e atenção àquilo que se encontra na internet; caso contrário, seguiremos sendo um dos países mais afetados do mundo por teorias conspiratórias estúpidas, falsas e irresponsáveis – que, com o perdão do trocadilho, circulam bastante em grupos no WhatsApp.
Nesses tempos sombrios, é comum que as pessoas busquem vilões, inimigos, adversários ou simplesmente “o outro”, como disse Jacques Lacan. Contudo, proteção de dados e privacidade são assuntos sérios demais e não devem dar margens para antagonismos, pois “estamos diante de uma matéria na qual não pode haver vencedores e vencidos”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Como parte das Empresas do Facebook, o WhatsApp recebe e compartilha dados (acesse este artigo) com as demais Empresas do Facebook. Podemos usar os dados fornecidos por essas empresas, e essas empresas podem usar os dados compartilhados por nós para nos ajudar a operar, executar, aprimorar, entender, personalizar, dar suporte e anunciar nossos Serviços e as ofertas das Empresas do Facebook, inclusive os Produtos das Empresas do Facebook. WHATSAPP. Política de Privacidade do WhatsApp. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.whatsapp.com/legal/updates/privacy-policy</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SCHRAPPE, Camila; BECKER, Daniel. Consentimento e o consentimento na LGPD. JOTA. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/consentimento-e-o-consentimento-na-lgpd-03012021</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> In summary, to rely on Article 6(1)(b), it is required that the processing is objectively necessary for a purpose that is integral to the delivery of that contractual service to the data subject. To meet the EU regulators’ expectations, controllers seeking to rely on contractual necessity as a lawful ground for their data processing operations will need to be able to demonstrate how the main object of the contract with the data subject cannot, as a matter of fact, be performed without that data processing. USTARAN, Eduardo. The European Data Protection Board (EDPB) has adopted the narrowest possible interpretation of ‘contractual necessity’ as a ground for processing of personal data. Disponível em: &lt;https://www.engage.hoganlovells.com/knowledgeservices/news/the-edpbs-narrow-view-of-contractual-necessity&gt;. Acesso em: 20.01.2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> De acordo com o WhatsApp, os objetivos são: (i) Ajudar a aprimorar os sistemas de infraestrutura e entrega; (ii) Entender como são utilizados nossos Serviços ou os serviços das Empresas do Facebook; (iii) Promover a proteção, segurança e integridade para todos os produtos das <a href="about:blank">todos os produtos das Empresas do Facebook</a>, como sistemas de proteção e combate a mensagens indesejadas (spams), ameaças, abusos ou infrações; (iv) Aprimoramento dos serviços das Empresas do Facebook e sua experiência ao usá-los, como fazer sugestões a você (por exemplo, de conexões de grupos ou amigos, ou de conteúdo interessante), personalização de recursos e conteúdos, ajuda para realizar compras ou transações e exibição de ofertas e anúncios relevantes sobre os <a href="about:blank">Produtos das Empresas do Facebook</a>; (v) Fornecer integrações que possibilitem a conexão de suas experiências do WhatsApp com outros <a href="about:blank">Produtos das Empresas do Facebook</a>. Por exemplo, permitir que você conecte sua conta do Facebook Pay para realizar pagamentos no WhatsApp ou habilitar a conversa com seus amigos em outros <a href="about:blank">Produtos das Empresas do Facebook</a>, como o Portal, conectando sua conta do WhatsApp. Ibid.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> As informações que compartilhamos com as Empresas do Facebook incluem as informações de registro de sua conta (como seu número de telefone), dados de transações, informações relacionadas ao serviço, informações sobre como você interage com outras pessoas (incluindo empresas) ao usar nossos Serviços, informações do aparelho móvel, seu endereço de IP. WHATSAPP. Quais informações o WhatsApp compartilha com as Empresas do Facebook? Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://faq.whatsapp.com/general/security-and-privacy/what-information-does-whatsapp-share-with-the-facebook-companies</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MAIA, Roberta Mauro Medina. O interesse legítimo do controlador e o término do tratamento de dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin. A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020, p. 105.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Assim, decidimos prolongar o prazo no qual as pessoas deverão revisar e aceitar os termos atualizados. Ninguém terá a conta suspensa ou apagada em 8 de fevereiro de 2021. Também faremos um trabalho intenso para esclarecer todas as informações incorretas sobre como a privacidade e a segurança funcionam no WhatsApp. Por isso, daremos mais tempo para que todas as pessoas possam revisar nossa política antes de 15 de maio de 2021, data em que as novas opções comerciais ficarão disponíveis. WHATSAPP. Prolongamos a data de aceitação da atualização da Política de Privacidade. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://blog.whatsapp.com/giving-more-time-for-our-recent-update</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> SCHRAPPE, Camila; BECKER, Daniel. Consentimento e o consentimento na LGPD. JOTA. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/consentimento-e-o-consentimento-na-lgpd-03012021</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> WHATSAPP. Tire suas dúvidas sobre a Política de Privacidade do WhatsApp. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://faq.whatsapp.com/general/security-and-privacy/answering-your-questions-about-whatsapps-privacy-policy</a>&gt;. Acesso em: 21.01.2021.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> MENDES, Laura Schertel; DA FONSECA, Gabriel Campos Soares. Proteção de dados para além do consentimento: tendencias de materialização. In: DONEDA, Danilo et al (Coord.). Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 87.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> PROCON-SP. Procon-SP notifica WhatsApp. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.procon.sp.gov.br/procon-sp-notifica-whatsapp/</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> BECKER, Daniel; ROJTENBERG, Natasha. O gorila e a loja de lustres. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/o-gorila-e-a-loja-de-lustres-29082020</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BECKER, Daniel; LEAL, Ana Luisa. From Russia with Love. Disponível em: &lt;<a href="about:blank">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/regulacao-e-novas-tecnologias/from-russia-with-love-07092019</a>&gt;. Acesso em: 18.01.2021.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 137.

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Entre um milhão de views e milhões de 'ninguém viu'

Afinal, quem leu a alteração na Política de Privacidade do WhatsApp?