Coronavírus

Entre Bentham e Kant: Covid-19 e a retomada do dilema mais famoso da filosofia

Quando se trata de ir até a lua, a interpretação de Copérnico é melhor que o Almagesto de Ptolomeu

Crédito: Astrônomo Copérnico: Conversa com Deus, por Jan Matejko/ Wikimedia Commons

Dois caminhos possíveis, ambos levando a vítimas inevitáveis. O experimento mental desenvolvido por Philippa Foot, mais conhecido como dilema do bonde (trolley problem)[1], parece ter saído dos livros de filosofia e invadido a vida real. A pandemia causada pelo SARS-CoV-2 tem obrigado governos a fazer escolhas com consequências potencialmente trágicas e sem muito tempo para reflexão, vez que a velocidade de propagação do vírus se mostra implacável. Não há unanimidade entre os pesquisadores sobre qual estratégia seguir e, nos cenários atualmente à disposição dos governos, não há normas que objetivamente orientem sobre qual caminho seguir. Em qualquer caso, o preço da decisão será pago na moeda mais cara: vidas humanas.

Não é a primeira vez que enfrentamos um dilema parecido. Por isso, podemos recorrer à história e à filosofia – sempre elas – e voltar os olhos para antigos pensamentos, a fim de questionar se as soluções finalmente adotadas podem ser consideradas éticas e, principalmente, humanas. O Dilema do Bonde está no bingo das aulas de Introdução ao Direito e Filosofia do Direito das universidades, principalmente por conta da notoriedade que ele adquiriu após Michael Sandel utilizá-lo em sua aula magna em Harvard e citá-lo no best-seller: “Justiça – o que é fazer a coisa certa?”[2].

Basicamente, o dilema nos coloca diante da seguinte situação hipotética: imagine que você é o maquinista de um bonde. Alguns metros à frente, cinco pessoas estão trabalhando desatentas nos trilhos. Você tenta frear, mas percebe que o bonde está desgovernando. Ao seu lado existe uma alavanca que pode fazer o bonde seguir por outra linha; entretanto, nela também há um trabalhador desatento. Você deixa o trem seguir e matar cinco pessoas ou puxa a alavanca, condenando uma pessoa  à morte? É essa, em curtas linhas, a parte inicial do problema que conta com desdobramentos[3] cuja exposição aqui não se faz imprescindível para enfrentar o impasse que temos a nossa frente: o dilema do vírus.

Em nossa realidade atual, duas posições parecem prevalecer entre os especialistas. A primeira tem como principal expoente estudo realizado pelo Imperial College of London[4], segundo o qual, caso nenhuma medida seja adotada, a rapidez do contágio pelo vírus levaria ao colapso dos sistemas de saúde em geral em decorrência da quantidade de casos graves a serem tratados simultaneamente.

Com os leitos ocupados, milhares de pessoas perderiam a oportunidade de receber um tratamento indispensável para sobreviver. Diante deste prognóstico de contágio inevitável de milhões, a única saída seria tentar diluir o número de infectados ao longo do tempo, a fim de garantir o atendimento do maior número possível de pacientes em risco. Para cumprir esse objetivo, os pesquisadores do Imperial College defendem que o isolamento social seria a medida mais eficaz até que uma vacina seja desenvolvida, ou até que estudos demonstrem a existência de medicamentos capazes de combater o vírus de forma eficaz.

Contudo, a invenção de uma cura não tem data para acontecer e não se sabe por quanto tempo seria necessário submeter a população às medidas de isolamento. Dessa forma, a posição do Imperial College poderia trazer como efeito colateral o colapso do sistema produtivo, levando a uma crise econômica mundial grave, que poderia lançar milhões de pessoas à fome e à miséria. Não é necessário ter um Nobel em economia para compreender que este cenário também poderia levar a consequências trágicas, provocando mortes relacionadas à fome, ao desemprego e ao potencial colapso dos sistemas de segurança pública e saneamento.

A segunda principal posição sobre como gerir a crise causada pelo coronavírus é capitaneada pelos estudiosos da Universidade de Oxford, que chegaram a uma conclusão quase que diametralmente oposta àquela do Imperial College of London[5].

Sugere-se que apenas uma em cada mil pessoas infectadas chega a de fato manifestar alguma enfermidade, podendo variar entre sintomas de um simples resfriado a complicações respiratórias agudas e possivelmente fatais. Nesse cenário, a taxa de mortalidade estimada ficaria entre 1% a 3% dos casos sintomáticos – ou seja, 0,001% a 0,003% do total de portadores do vírus – e cerca de metade das pessoas do Reino Unido já teria desenvolvido imunidade ao SARS-CoV-2.

Consequentemente, a estratégia mais eficiente deveria ser a manutenção do isolamento e das medidas de proteção das pessoas do chamado grupo de risco e o fim do isolamento para as demais, de modo a incentivar a chamada imunidade de grupo (herd immunity). Segundo seus defensores, tal estratégia permitiria que grande parte da população contraísse o vírus sem apresentar qualquer sintoma, ganhando imunidade e dificultando a sua disseminação para novos hospedeiros. Objetivamente, defende-se que tal proposta encerraria a pandemia sem consequências drásticas para a economia.

Obviamente, encerrar a quarentena e orientar as pessoas a voltarem à vida comum pode colocar em risco milhares de pessoas que teriam complicações graves se ficassem doentes. Se já há exemplos, inclusive no Brasil, de casos fatais de pacientes que não faziam parte do grupo de risco, é de se imaginar que com o sistema de saúde colapsado tais números aumentariam substancialmente. Consequentemente, a posição da Universidade de Oxford também resultaria em mortes.

Como se vê, assim como no clássico dilema da filosofia, a decisão dos governos sobre como lidar com o coronavírus também envolve escolhas trágicas que invariavelmente resultarão na perda de vidas humanas: com a adoção do isolamento social, o colapso econômico futuro poderia levar a mortes indiretas; com a imunidade de grupo, possíveis complicações médicas e o colapso do sistema de saúde poderiam causar mortes diretamente. Entre a cruz e a espada, como escolher?

Perguntadas sobre o dilema do bonde, as pessoas tendem a afirmar que puxariam a alavanca para salvar cinco pessoas e matar uma. A escolha é simples: o custo da perda de cinco pessoas para uma comunidade é maior do que a de uma. A situação muda de figura quando o dilema é temperado com um familiar sendo o trabalhador que está em oposição aos cinco outros. De qualquer forma, há evidências de que, quando colocadas numa situação prática de escolha (simulada, é claro), a maior parte das pessoas tende a não tomar decisão nenhuma, levando à morte dos cinco.[6]

A Constituição da República não adotou um modelo ético único, mas sim um conjunto de teorias para disciplinar a forma como o Estado deve agir em direção à sua finalidade de tutelar direitos fundamentais e assegurar o bem comum.[7] Dessa forma, não há restrição constitucional apriorística para que encontremos a melhor solução filosófica para o dilema que hoje se impõe diante da humanidade. Tais circunstâncias tornam propícia uma análise mais aprofundada das respostas já oferecidas ao Dilema do Bonde no passado, o que, por sua vez, recomenda a remissão às teorias filosóficas mais implicadas pelo dilema: a teoria utilitarista e a teoria kantiana.

O utilitarismo, filosofia consequencialista desenvolvida por Jeremy Bentham no Século XVIII[8], prega que um ato ou procedimento é moralmente correto se produzir mais felicidade que sofrimento para os membros de uma determinada comunidade.[9] Em outros termos, ser utilitarista é calcular prazer versus dor. Aplicada ao Dilema do Bonde, é possível concluir que sacrificar uma pessoa para salvar cinco é uma ação ética e tutelável pelo Direito. Friamente falando, há mais felicidade em um morto do que em cinco.

Todavia, o utilitarismo puro e simples é defeituoso. Exemplo? Nas antigas lutas de gladiadores nos anfiteatros romanos, a morte de dezenas de condenados gerava muita felicidade para uma enorme plateia de milhares de pessoas. Convocar dois escravos – o que já é moralmente inaceitável – para uma luta até a morte em um espetáculo para milhares é algo ético? Se em vez de ser o maquinista que puxa a alavanca, você está sobre uma passarela vendo o bonde desgovernado vindo em direção aos trabalhadores e, ao seu lado, está um sujeito com sobrepeso que, se caísse nos trilhos, poderia pará-lo antes que atingisse os cinco azarados, você o empurraria?

Por sua vez, a teoria ética kantiana, desenvolvida por Immanuel Kant também no Século XVIII, encara a eticidade de cada ação sob uma ótica universalista.[10] Kant apresenta três fórmulas a serem seguidas:

  1. Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal;
  2. Aja de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio; e
  3. Aja de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas.

Dito de outra forma, o ser humano não deveria ser usado jamais como instrumento para um fim, objeto de uma vontade. O indivíduo, dotado de dignidade pelo simples fato de existir, deve ser considerado um fim em si mesmo e todos os atos devem ser praticados para que se atinja um benefício distribuído comum entre todos. Nesse sentido, para identificar a eticidade de um ato, seria necessário refletir se a sua universalização traria consequências aceitáveis para o todo.

A aplicação da teoria de Kant ao dilema do bonde resultaria na inação e, consequentemente, na morte de cinco pessoas. A partir do momento em que se opta por salvá-las, a pessoa que morrerá estaria servindo como instrumento para a salvação das demais. Dado que o ser humano não pode ser usado como objeto para um fim, a escolha não seria ética e poderia ser combatida pelo Direito.

Soa justa a morte de cinco pessoas em contrapartida à sobrevivência de uma? Conclui-se que a ética kantiana também não serve a todos os casos.

Sob ambas as teorias, porém, nota-se que a informação sobre os fatos é um componente essencial para a escolha. Você, maquinista, só tomará uma decisão – que poderia ser uma inação – se souber que há pessoas em risco e quais ações poderia tomar. Se soubesse que há uma buzina no trem, certamente tentaria alertar os trabalhadores. Se soubesse que um dos trabalhadores é um parente, certamente tentaria salvá-lo. Pesquisadores têm se dedicado a estudar o vírus por todo o mundo. Desconsiderar suas conclusões é fechar os olhos para possíveis soluções. Seja qual for a decisão, a ética estará ao lado daquele que decide baseado nas informações que dispõe. Ignorá-las é dar um tiro no escuro.

A pandemia do coronavírus é só mais um dos momentos históricos em que administradores públicos tiveram que tomar decisões em ambiente de anomia. Winston Churchill teve de sacrificar soldados para atrasar o avanço do exército alemão enquanto salvava milhares de militares britânicos e franceses cercados em Dunquerque.[11] Harry Truman decidiu usar armas nucleares pela primeira vez na história moderna para acelerar o fim do maior conflito bélico que já existiu, assumindo a morte de milhares de japoneses inocentes. Hoje, cada chefe de governo tem diante de si um dilema de certa forma semelhante.

Deixando de lado argumentações acaloradas baseadas num pathos retórico irracional, no Brasil, ainda que não haja regra sobre o tema, é preciso relembrar que nenhum direito é absoluto. Mesmo direitos fundamentais podem ceder, principalmente quando entram em conflito, o que ocorre em emergências como a atual e justifica, por exemplo, o regime dado ao estado de defesa e ao estado de sítio. Porém, em qualquer caso, as decisões da Administração Pública devem se basear nos princípios descritos no artigo 37, caput, da Constituição da República, sem abrir mão da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde, e da proteção aos valores sociais do trabalho e da iniciativa privada, ambos objetivos da República Federativa do Brasil, descritos no  art. 1º, III e IV, da Carta Magna.

Na situação em que ambos os caminhos causarão mortes, qualquer saída será dramática, mas, desde que seja compatível com as informações disponíveis, não poderá ser condenada sob o ponto de vista ético, até porque não há consenso sobre qual seria a saída correta diante de dilemas dessa natureza.

Como nos lembra Umberto Eco[12], quando se trata de ir até a lua, a interpretação de Copérnico é melhor que o Almagesto de Ptolomeu. Portanto, que se proteja o trabalho dos médicos e cientistas em todas as linhas de pesquisa possíveis até que tenhamos subsídios capazes de apontar de forma confiável o caminho mais seguro para atravessarmos juntos esta crise, seja em busca de uma cura, seja para a realização de testes e simulações que esclareçam o quão viável seria a estratégia da herd immunty. Até lá, evite passear por trilhos. Fique em casa.

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[1] FOOT, Philippa. The problem of abortion and the doctrine of the double effect in virtues and vices. Oxford Review nº 05, 1967.

[2] SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015

[3] Estes desdobramentos são explorados em BECKER, Daniel; LAMEIRÃO, Pedro. Filosofia e algoritmos: o dilema moral dos carros autônomos. LEX MACHINÆ. Disponível em: https://www.lexmachinae.com/2017/07/28/filosofia-e-algoritmos-o-dilema-moral-dos-carros-autonomos/ – Acesso em 31 de março de 2020.

[4] FERGUSON, Neil M. et al. Impact of Non-pharmaceutical Interventions (NPIs) to Reduce COVID-19 Mortality and Healthcare Demand, publicado em 16 de março de 2020. Disponível em: https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/imperial-college-covid19-npi-modelling-16-03-2020.pdf – Acesso em 1º de abril de 2020.

[5] COOKSON, Clive. Coronavirus May Have Infected Half of UK Population – Oxford Study. Financial Times,24 de março de 2020. Disponível em https://www.ft.com/content/5ff6469a-6dd8-11ea-89df-41bea055720b – Acesso em 25 de março de 2020.

[6] STEVENS, Micheal. The Greater Good – Mind Field S2, VSauce, publicado em 6 de dezembro de 2017. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1sl5KJ69qiA – Acesso em 30 de março de 2020.

[7] BRANDÃO, Rodrigo. Entre Anarquia e Estado Social. Revista de Direito do Estado, nº 14, abr./jun. 2009, p. 182.

[8] BENTHAM, Jeremy. An introduction to the principles of morals and legislation. Ada: White Dog Publishing, 2010 (Edição kindle).

[9] KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11.

[10] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Vozes, 2016 (edição Kindle).

[11] HASTINGS, Max. Finest Years: Churchill as Warlord 1940–45. Londres: HarperPress, 2010 (edição Kindle).

[12] ECO, Umberto. Pape Satàn Aleppe. São Paulo: Record, 2017 (edição Kindle).