Opinião e Análise

Jean Marc Sasson

Daniel Orlean

Esse debate a respeito da dicotomização dos esportes eletrônicos ou e-sports do desporto tradicional ganhou relevância após a nova ministra do Esporte e ex-atleta multicampeã de vôlei, Ana Moser, declarar que não considera os e-sports como esporte e, por isso, pretende reservar os investimentos públicos para as modalidades tradicionais em detrimento do mercado de competições de games.
À primeira vista parece uma discussão puramente ideológica para fins de destinação dos recursos públicos, embora o mercado de e-sports e streaming de jogos deva crescer 70% nos próximos quatro anos, de acordo com um relatório da Juniper Research. A projeção é que o mercado global de esportes eletrônicos movimente US$ 3,5 bilhões em 2025 ante US$ 2,1 bilhões atualmente<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Esse crescimento do mercado se dá pela evolução tecnológica e pelo aumento da conectividade doméstica, agora com <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/5g">5G</a> disponível, que possibilitou o desenvolvimento de novas formas de comunicação social com alterações nas formas de convívio e lazer. As competições que antes eram realizadas lado a lado em fliperamas ou lan houses passaram a ser em grupo, nascendo, inclusive, uma cybercultura própria com formas de linguagem, vestimentas e atributos peculiares.
Neste contexto, a modalidade evoluiu e se estruturou com a organização de campeonatos profissionais com participantes treinados e remunerados para este fim, inclusive com grandes patrocínios e grandes eventos que, quando comparado às modalidades esportivas tradicionais, só é superável, em termos financeiros e midiáticos, quiçá, pelo futebol, NFL e basquete.
Por isso, trata-se de uma análise rasa quando se distancia a modalidade eletrônica do conceito esportivo. É também uma atividade competitiva, com regras definidas, e realizada com alto desempenho físico e psíquico.
Em outras palavras, o esporte lato sensu é uma atividade competitiva que envolve esforço, sobretudo físico e emocional. Tanto no esporte tradicional quanto no eletrônico estão presentes habilidades motoras e a necessidade de inteligência emocional ou competitiva que requerem raciocínio veloz, adoção de táticas e estratégias de acordo com o nível e maturidade da competição. Enfim, o atleta de campo ou o cyberatleta precisam estar sempre aptos e em pleno funcionamento mental e físico para desempenhar.
E mais: o fato de esporte eletrônico fazer o uso de softwares com mecânicas gamificadas não tiram o caráter esportivo. Automobilismo é esporte? Tiro "esportivo" é esporte? Hipismo e Equitação são esporte? Como os praticantes dessas modalidades sabem, todos demandam preparação física e mental, treinamento contínuo e são baseados na busca da alta performance, da mesma forma que e-sports. O fato de o automobilismo fazer uso de automóveis, do hipismo depender dos cavalos e e-sports fazerem uso de programas de computador com mecânicas gamificadas não tira seu caráter esportivo. Pelo contrário: e-sports são uma das linhas de evolução do esporte, com uso de artefatos eletrônicos. Todas são atividades que incorporam competitividade, regras e objetivos bem definidos para superação de adversários, individual ou coletivamente.
Por outro lado, percebe-se uma grande confusão na sociedade em geral sobre o que são, primeiro, games e videogames – que podem até ser enquadrados nos setores de entretenimento e audiovisual – e o que representam os "esportes eletrônicos", ou, simplesmente, e-sports, que englobam as modalidades competitivas dos "games eletrônicos" e que, além de possuírem campeonatos e regras claras estabelecidas, também demandam estrutura e alto preparo dos praticantes de alta performance.
Apesar do assunto ser complexo, não há grande mistério. A resposta é clara e o público já decidiu: trata-se do mesmo gênero, mas espécies diferentes.
O que se percebe, portanto, é mais uma discussão ideológica e política do que de categoria, isto é, há uma percepção de resistência para que os esportes eletrônicos não entrem na divisão de recursos para esportes que demandam mais investimento de base e que não tem tanta atratividade de mídia.
Se isso não foi suficiente para superar a discussão, vejamos o que diz a nossa legislação nacional.
Esporte está conceituado no artigo 217 da Constituição Federal de 1988<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e na <a href="http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%209.615-1998?OpenDocument">Lei Federal 9.615/1998</a>, mais conhecida como Lei Pelé, que institui normas gerais sobre desporto. Por ironia, ou desconhecimento da ministra dos Esportes, a própria lei traz logo no seu primeiro artigo o reconhecimento dos desportos “informais”:
Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito. 
<ul>
<li> 1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.</li>
<li> 2º A prática desportiva não-formal é caracterizada pela liberdade lúdica de seus praticantes.</li>
</ul>
E mais: a lei reconhece também que o desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes manifestações, entre elas o desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer;
Contudo, não há, no Brasil, atualmente, uma legislação específica sobre esportes eletrônicos. Tramita, sem grandes avanços, o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131177">PLS 383/2017</a> e vários em âmbito estadual, como São Paulo, Amazonas, entre outros, que buscam trazer maior segurança jurídica ao setor e conceituar o e-sports, embora sofra grande resistência da comunidade, como dos praticantes profissionais dos famosos campeonatos de Free Fire e League of Legends, com receio da regulamentação engessar o mercado.
Enquanto a lei especial não prospera, o mercado adota a Lei Geral do Desporto nas relações jurídicas entre atletas e clubes, inclusive com entendimento jurisprudencial que a lei mais adequada para o e-sports é a Lei Geral do Desporto, além do Direito do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/43, CLT), Direito Civil (Lei 10.406/2002), Direitos Autorais (Lei 9.610/1998) e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018).
De toda forma, este mero dissabor da declaração da ministra gerará um espaço para essa discussão. É normal que no começo de qualquer trajetória haja uma resistência inicial de "incumbentes", dos grandes e consagrados do setor, até que os "desafiantes" ocupem seu espaço.
Agora, se a resistência é para que os esportes eletrônicos não entrem na divisão de recursos já escassos para esportes que demandam mais investimento de base e que não tem tanta atratividade de mídia, basta debater as regras e premissas. Não é necessário desqualificar o esporte eletrônico para que essa competição não aconteça.
O mercado de e-sports irá crescer, com ou sem incentivo público.
A questão é se cumprirá também o papel social que tem sido objetivo de projetos que usam esse caminho para tirar crianças e jovens de risco social, por exemplo. Ou se os atletas de e-sports terão e manterão, também, direitos que cabem a esportistas de outras modalidades. A ver os próximos capítulos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://olhardigital.com.br/2021/03/08/games-e-consoles/mercado-de-esports-crescera-70-em-quatro-anos/">https://olhardigital.com.br/2021/03/08/gameseconsoles/mercado-de-esports-crescera-70-em-quatro-anos/</a>. Acesso em: 25 jan. 2023.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a>  Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um.

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JOTA

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