Opinião e Análise

Jean Marc Sasson

Vivenciamos, atualmente, um período inédito na Humanidade. A pandemia do novo coronavírus vem catalisando processos sociais e alçando a sociedade à uma nova realidade digital a ser interpretada à luz do modelo 6D’s de Peter Diamandis<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. 
Segundo este modelo, a “digitalização” está transformando os processos físicos em digitais, quando produtos, serviços, a comunicação e tudo mais que se possa imaginar está indo para esta nova dimensão. A “decepção” compreende o período em que o avanço exponencial não é percebido, visto que, nas primeiras etapas, o crescimento progressivo não gera impactos significativos. Quando a dimensão exponencial começa a demonstrar seus efeitos, atingimos a “disrupção” ou ponto da virada, quando o novo modelo prepondera e o modelo anterior passa a cair vertiginosamente. A “desmonetização” é o desaparecimento dos resquícios físicos do antigo modelo e a queda brusca dos custos relacionados com a prestação do serviço ou do produto em questão. Passados esses estágios, o que se constata é a “democratização”, o acesso mais universalizado do produto ou serviço objeto do novo modelo.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato" rel="attachment wp-att-291327"><img class="size-medium wp-image-291327 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/11/jota-pro-poder-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Diante desta nova realidade digital e da atual polarização política, é preciso compreender os novos paradigmas da participação popular nas decisões públicas, justamente por ser um dos principais pilares do Estado Democrático de Direito que norteia a governabilidade, contém abusos e ilegalidades do Poder Público e incute responsabilidade cívica nos cidadãos.
Como se sabe, a democracia participativa não se restringe à eleição dos governantes pela população. Também é exercida através da interação social das decisões públicas que envolvem direta ou indiretamente os interesses individuais ou transindividuais, é realizada com a fiscalização social da gestão da res pública e concretizada na medida em que os cidadãos, antes meros destinatários das políticas públicas, transformam-se em protagonistas das estratégias governamentais.
<blockquote class="jota-article__eye">Neste condão, a participação popular, mais que mero elemento orientador do Estado Democrático de Direito, é elemento constituidor de sua legitimidade.</blockquote>
Em um mundo de pós-verdade<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e inundado de Fake News<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a legitimidade está alicerçada na existência um espaço público democrático e participativo, independente da esfera estatal, onde serão realizadas as interações sociais.
A bem da verdade, o diálogo e o convívio social já não estão mais restritos aos espaços públicos presenciais – no sentido Lefebvriano<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> - sendo exercidos, tanto ou mais, em canais digitais, sobretudo, em redes sociais e videoconferências.
Com a profusão de ferramentas tecnológicas que possibilitam a interação social sem restrição geográfica – há iniciativas internacionais, como na Islândia, que adotam as Civic Techs<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, aplicativos que permitem a participação dos cidadãos nas decisões governamentais -, já se pode cogitar a possibilidade de virtualização da participação popular, como aperfeiçoamento dos instrumentos trazidos pela Constituição Federal de 1988, sendo os mais relevantes o Sufrágio Universal (voto, Referendo e Plebiscito), a Ação Popular, a Iniciativa Popular e a Audiência Pública.
Com efeito, qualquer cidadão está apto a ajuizar Ação Popular e apresentar projeto de lei ao Legislativo em formato eletrônico. Contudo, os processos de digitalização do Sufrágio Universal e da Audiência Pública encontram-se, ainda, na fase da “decepção” do modelo 6Ds. Nesta etapa é oportuno examinar o status de maturação destes processos e questionar se poderão substituir ou, ao menos, prevalecer frente à modalidade presencial, quando passará à fase da “disrupção”.
Em relação ao Sufrágio Universal, recentemente, o <a href="about:blank">Tribunal Superior Eleitoral</a> (TSE)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> publicou edital para identificar empresas e tecnologias que possam desenvolver um sistema de votação online, desde que garantidos o sigilo do voto, mecanismos de auditoria e a identificação do eleitor por biometria ou reconhecimento facial, permitindo, assim, que os cidadãos aptos a votar o façam de qualquer lugar através do computador, tablet ou smartphone.
Ainda que seja uma possibilidade remota, o Sufrágio Universal virtual se mostra necessário na medida em que é crescente o índice de abstenção nas eleições realizadas na última década, cenário agravado neste ano pela pandemia, embora não sopesada a descrença da população na classe política.
As eleições municipais de 2020, teve, até então, o maior índice de abstenção dos últimos 20 anos com 23,1% de abstenção em todo o país no primeiro turno e 29,1% no segundo turno. Em 2012, o índice foi de 16,4%, em 2014 de 19,4%, em 2016 de 17,6%, e, em 2018, de 20,3%<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Noutro giro, a Audiência Pública virtual já é realidade no âmbito dos três Poderes. Senão vejamos:
<ul>
<li>A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) prevê a participação presencial ou à distância em audiências públicas no art. 36 da IN nº 154/2020;</li>
<li>A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) prevê a audiência pública virtual no art. 15 da Resolução Normativa nº 242/2010;</li>
<li>A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) prevê o auxílio de tecnologias de informação e comunicação para a realização de audiências públicas e reuniões participativas, conforme estabelece o art. 29 da Resolução DG/ANTT/MTPA nº 5.624/2017;</li>
<li>O Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) editou a Resolução nº 494/2020, que autoriza a realização de audiências públicas virtuais nos processos de licenciamento ambiental federais, enquanto perdurar a situação de calamidade pública decorrente da pandemia do COVID-19;</li>
<li>A Diretoria de Licenciamento Ambiental do IBAMA editou o Procedimento Operacional Padrão nº 06/2020, definindo os conceitos de participação pública virtual e de audiência pública virtual;</li>
<li>O Instituto do Meio Ambiente do Estado de Alagoas editou a Instrução Normativa nº 01/2020 que institui a Audiência Pública virtual nos processos de licenciamento ambiental estadual;</li>
<li>O Conselho Estadual do Rio de Janeiro editou a Resolução nº 89/2020 que permite a realização de Audiência Pública remota no bojo do processo de licenciamento ambiental estadual;</li>
<li>O Poder Judiciário, simbolizado pelo Supremo Tribunal Federal, adotou o sistema virtual para realizar as sessões de julgamentos através de videoconferência3;</li>
<li>O Ministério Público do Estado do Pará promoveu audiência pública virtual para debater o funcionamento da rede de apoio às mulheres em situação de violência<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>;</li>
<li>A Câmara dos Deputados permite a participação popular pela internet em audiências públicas de suas comissões parlamentares<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>;</li>
</ul>
Embora a utilização seja crescente em todas as esferas do Poder Público, há, ainda, quem defenda a ilegitimidade das Audiências Públicas virtuais por restringir acesso à parte da população, especialmente, às comunidades que carecem de infraestrutura digital e aos “analfabetos digitais”, aqueles que não possuem conhecimento de como utilizar qualquer tecnologia. Contudo, tal argumento não merece prosperar. Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, três em cada quatro brasileiros acessam a internet, o equivalente a 134 milhões de brasileiros.
Ora, não importa se a Audiência Pública é presencial ou não, até porque a essência deste instrumento de participação popular, tal como descreve a sua etimologia originária do termo latino “audire” que significa ouvir, é garantir que comentários, sugestões ou críticas a determinado projeto ou decisão política sejam sempre submetidas ao crivo da coletividade. Desta forma, a modalidade virtual não só garante, mas amplia as possibilidades de participação. E para o quarto da população que não dispõe de acesso à internet ou não saiba fazê-lo, incumbirá ao Poder Público franqueá-lo através de ambientes (presenciais) que ofereçam acesso e orientação.
Neste interim, apesar de ser um fenômeno relativamente novo, já é possível vislumbrar elementos capazes de otimizar o mecanismo presencial, como, por exemplo: (i) possibilidade de extensão dos prazos para manifestações de forma extemporânea às audiências, o que, por si só, já melhoraria a qualidade da participação e da assimilação das informações apresentadas; (ii) possibilidade de amplificação da publicidade e transparência por ferramentas digitais antes restritas ao edital de convocação e à ata de audiência pública presencial; (iii) potencial de melhoria da eficiência e celeridade do processo decisório público; e (iv) capacidade de ampliação da participação de cidadãos de todo o país que não mais necessitariam custear o deslocamento e alimentação para o acompanhamento presencial.
Note que em nenhum momento a realização da Audiência Pública virtual – e vale o mesmo argumento para o Sufrágio virtual - foi justificada por razões de saúde pública. Defendemos esta modalidade como medida de eficiência da administração pública<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, motivo suficiente para subsidiar a sua permanência mesmo após o fim do isolamento social decorrente da pandemia.
De toda sorte, o cenário é promissor ao vivenciarmos verdadeira revolução da participação popular nas decisões públicas. O tempo e as inovações não param e uma nova realidade, em plena revolução industrial 4.0, aponta no horizonte, carregando consigo novos desafios de um mundo completamente conectado e digital que precisam ser compreendidos coletivamente.
Afinal, o sucesso coletivo de uma Nação não é concebido pela ausência ou omissão e, sim, através do engajamento cívico e da participação de todos os cidadãos em prol do fortalecimento da Democracia.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> DIAMANDIS, Peter H., Bold: How to Go Big, Create Wealth and Impact the World (Exponential Technology Series), Ed. Simon &amp; Schuster, 2015;
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pós-verdade. Acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Notícias falsas é um termo novo, ou neologismo usado para se referir a notícias fabricadas. O termo fake news originou-se nos meios tradicionais de comunicação, mas já se espalhou para mídia online. Este tipo de notícia, encontrada em meios tradicionais, mídias sociais ou sites de notícias falsas, não tem nenhuma base na realidade, mas é apresentado como sendo factualmente corretas;  Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pós-verdade. Acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> O sociólogo francês Henri Lefebvre em seu livro de 1968 Le droit à laville definiu o direito à cidade como um direito de não exclusão por parte da população das qualidades, benefícios e melhorias da vida urbana, vinculando a participação cidadã ao processo de construção da cidade. Para Lefebvre, a vida na cidade se baseia na diversidade e na coexistência dos diferentes, pressupondo encontros e confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos, inclusive no ponto de vista ideológico e político, dos modos de viver, dos “padrões” que coexistem na cidade (LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001; p. 22);
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> https://fia.com.br/blog/civic-technology/; acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>https://olhardigital.com.br/noticia/tse-vai-testar-sistema-de-voto-online-pelo-celular-ou-computador/108549; acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/11/30/especialistas-analisam-abstencao-recorde-nas-eleicoes-de-2020; acessado em 03.12.2020;
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a>  https://www2.mppa.mp.br/noticias/promotores-de-justica-realizam-audiencia-publica-virtual.htm; acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> https://www2.camara.leg.br/transparencia/servicos-ao-cidadao/participacao-popular/audiencias-interativas; acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/brasil-tem-134-milhoes-de-usuarios-de-internet-aponta-pesquisa; acessado em 17.11.2020;
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> "Impõe à Administração Pública direta ou indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social" (MORAES, A. de. Direito Constitucional. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2004).

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JOTA

Audiência pública virtual como medida de eficiência da Administração Pública

Direito Ambiental 4.0 – Participação Popular Virtual

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