Opinião e Análise

Vitor Maimone Saldanha

Daniel Becker

A atual revolução tecnológica está se demonstrando, dia após dia, mais concreta do que outras que já passaram pela história, e seria enfadonho repetir aquilo que o leitor já está cansado de ler. Contudo, a despeito de tudo e de todos, a prática jurídica ainda tem uma profunda dificuldade em ceder terreno à inovação. E é esse problema a que nos dedicamos no presente texto, traçando, para tanto, um paralelo com o processo de industrialização do Século XIX.
Inúmeros movimentos, no transcorrer da evolução humana, atuaram em diversas frentes para frear movimentos inevitáveis que alteraram profundamente o status quo. A revolução industrial, na sua busca pela transição dos modelos de negócios até então existentes, enfrentou a mobilização de grupos e sindicatos da época, contrários ao processo de automação da produção, já que alteraria os modelos artesanais predominantes na sociedade pré-moderna. Desse anarcoprimitivismo, sem dúvidas, o movimento mais conhecido é o ludista. Notório pela sua atuação enérgica, com a bandeira de um operário fictício chamado Ned Lud, estes ativistas passaram a praticar a sabotagem das máquinas de produção da ainda incipiente revolução industrial.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No entanto, esses “disjuntores de máquinas”, como ficaram lembrados os ludistas, foram caracterizados pela expressão “pointless, frenzied, industrial jacquerie”, porquanto a desordem desenfreada praticada por seus membros, potencialmente pautada pela destruição de máquinas, não surtiu o efeito esperado e, como sabemos, a revolução industrial, apesar de alguns aspectos negativos, gerou incalculáveis avanços para a sociedade. A título de ilustração, a superação da força bruta e do carvão permitiu que a população mundial saltasse de algumas centenas de milhões de pessoas, a partir da introdução do motor a vapor de James Watt em 1775, para mais de sete bilhões em menos de 250 anos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
E por que isso é relevante para nós? Em pleno Século XXI, o ambiente jurídico do Brasil segue impregnado com uma forte ideologia anarcoprimitiva. Alguns juristas e pessoas dentro de certas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dedicam-se a sufocar a introdução de tecnologia na prática jurídica e impedir a inovação na profissão. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-gritos-e-sussurros-28032018">Exemplos como as manifestações contra a implantação do processo eletrônico, que jamais impediram a sua expansão, e o vergonhoso chamado para protesto da OAB/RJ por SMS em 2019 contra a suposta “mediação sem advogados do TJRJ” são exemplos que ilustram bem o que se defende aqui</a>.
Os próprios tribunais têm sido refratários em relação à tecnologia, seja pela estagnação, seja por medidas reativas à inovação. Pode parecer surpresa para os advogados que não atuam no contencioso, mas, mesmo após mais de um ano de pandemia, diversas Varas se recusam a realizar audiências virtuais, deixando o julgamento dos casos para as calendas gregas. Quando o assunto é acesso à informação, a situação é ainda mais grave: <a href="https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/320926" target="_blank" rel="noopener noreferrer">diversos tribunais vêm limitando múltiplos acessos pelo mesmo advogado de casos de terceiros</a>, prejudicando o legal analytics e a jurimetria, sob o lacônico argumento de que isso estaria alinhado com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Com um inescondível neoludismo, ignora-se as bases legais do legítimo interesse (LGPD, art. 7º, IX) e do “exercício regular de direitos em processo judicial” (LGPD, art. 7º, IX), bem como o princípio da publicidade constitucional e legalmente assegurado.
E o que justifica esse neoludismo? Em primeiro lugar, há um receio genuíno — e legítimo, diga-se — de extinção de postos de trabalho.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim como os ludistas, alguns juristas, reacionários e avessos à inovação, atacam tais avanços fundamentados na premissa fantasiosa de que a tecnologia irá acabar com o mercado jurídico. Na verdade, o que há é um desconhecimento total de como a tecnologia pode ser um braço na evolução jurídica. O mercado sempre existirá; o que vai mudar em ritmo acelerado é a forma de entrega do serviço.</blockquote>
Sobre o tema, um estudo de Oxford, chamado The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation?, previu que, em 20 anos, 47% dos empregos nos Estados Unidos serão extintos. Dentro da mesma pesquisa, calculou-se que assistentes jurídicos ou paralegais possuem mais de 90% de chance de perderem seus empregos para algoritmos no curto espaço de duas décadas, isto é, até 2030.
Tropicalizando este estudo, nos parece bem evidente a sua conclusão: a ponta das operações jurídicas está de fato em risco. Contudo, isso não é de hoje. Simples aplicações tecnológicas como o processo eletrônico e as audiências virtuais, por exemplo, reduziram significativamente uma antes muito numerosa classe de profissionais: a dos correspondentes jurídicos, que, hoje, perderam grande parte das atividades para o software.
Por outro giro, há o negacionismo tecnológico. Ancorados e afetados por um profundo viés do status quo, os advogados tendem a se considerar imunes à disrupção. Para eles, o direito, enquanto ciência social, nunca irá sucumbir às tecnologias emergentes aplicadas ao universo jurídico. Para ilustrar, nada melhor do que algumas histórias, baseadas em fatos chocantemente reais.
Em 1929, <a href="https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI298546,91041-O+Judiciario+e+a+tecnologia" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença datilografada sob o fundamento de que o uso da máquina poderia antecipar a sua publicidade</a>. Mas não é só por aqui. Nos anos 90, o professor escocês Richard Susskind defendia a ideia de que o e-mail seria a principal forma de comunicação entre advogados e clientes; por conta desta afirmação, ele quase foi expulso da Law Society of England and Wales sob a acusação de que estaria acabando com a reputação da classe e violentando o sigilo profissional da advocacia.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Evoluir e inovar é necessário até mesmo para a legitimação da profissão. Os advogados não sucumbirão às máquinas, mas, sim, ao mercado, caso não estejam preparados para atender à dinâmica de seus clientes que já abraçaram a nova revolução industrial.  A notícia ruim para os otimistas radicais é que ferramentas de mera extração de dados não são mais suficientes, assim como sistemas processuais eletrônicos já não mais servem para camuflar a estagnação tecnológica do mercado. É preciso ir além. O mercado jurídico não pode mais ser considerado um mercado neofóbico. O stack jurídico precisa ser mais completo que somente ferramentas de edição de textos e aplicativos de envio de mensagens eletrônicas.
Precisamos, de forma urgente, capacitar a todos, não só advogados, considerando que os seus clientes irão, na grande maioria, migrar, assim como a sociedade, para modelos e produtos baseados em tecnologia, seja ela pontual, como ferramenta, seja ela na modelagem de negócios. Um excelente exemplo é o brilhante trabalho que vem sendo realizado há quatro anos pela <a href="https://ab2l.org.br/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Associação Brasileira de Lawtechs &amp; Legaltechs (AB2L)</a> de consolidação, conscientização e publicização da importância da adoção de tecnologia por escritórios, departamentos jurídicos e entes públicos. Da mesma forma, devemos comemorar, mas aqui com cautela, <a href="https://www.conjur.com.br/2021-abr-15/curso-direito-contar-direito-financeiro-digital" target="_blank" rel="noopener noreferrer">a obrigatoriedade de inclusão da disciplina de “Direito Digital” nas grades curriculares da graduação em Direito</a>. Como isso se dará na prática? Uma excelente pergunta. Seguimos acompanhando.
E, nesta tarefa de aproximação, precisamos que os operadores do direito se comportem como construtores de pontes entre o universo jurídico e o ambiente técnico. Não é preciso que o advogado aprenda a programar, por exemplo; mas é preciso que ele saiba que existe uma programação que codifica o conhecimento jurídico em prol dos próprios advogados.
Devemos entender para criticar o que essa revolução tecnológica proporcionará a nós, juristas. Aceitar que o mecânico e o repetível estão no seu fim. Caso contrário, teremos o mesmo destino que os cavalos na revolução industrial: <a href="https://www.humanesociety.org/sites/default/files/archive/assets/pdfs/hsp/soaiv_07_ch10.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">uma redução de 90% do período de 1900 até 1960</a>. A boa notícia, para os otimistas e pessimistas, é que a capacidade criativa, a inteligência emocional e a percepção humana da realidade nunca serão substituídas por máquinas - ou pelo menos até embarcarmos em uma viagem sem volta para a inteligência artificial superior. Mas isso é assunto para outro texto.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRYNJOLFSSON, Erik; MCAFEE, Andrew. A segunda era das máquinas: trabalho, progresso e prosperidade em uma época de tecnologias brilhantes. Rio de Janeiro: Alta Books, 2015. p. 7.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SUSSKIND, Richard; SUSSKIND, Daniel. The Future of the Professions. Oxford: Oxford University Press: 2015, p. 3.

jurídico

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JOTA

Como uma vez disse Mark Twain, a história não se repete, ela rima

Contra o neoludismo e o anarcoprimitivismo jurídico

Como uma vez disse Mark Twain, a história não se repete, ela rima