Opinião e Análise

Daniel Becker

Frederico Boghossian Torres

Hana Mesquita

Na última terça-feira (30/03), foi sancionada a <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.129-de-29-de-marco-de-2021-311282132" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Lei nº 14.129/2021</a>, que tem, como objeto, a desburocratização do acesso pelo cidadão aos serviços públicos. Indo na esteira da Lei de Liberdade Econômica, a nova lei dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para consolidação do Governo Digital (GovTech). Embora a intenção de incrementar a eficiência dos serviços públicos seja muito bem-vinda, o art. 29, §3º<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, felizmente já extirpado do texto legislativo, representava um entrave à publicidade das informações e ao movimento do open data.
Ao impor uma espécie de taxa sobre os dados abertos no país, o dispositivo vetado autorizava que diversos órgãos públicos cobrassem pelo acesso a dados abertos e já catalogados. Considerando que o propósito da lei é justamente tornar o governo uma espécie de plataforma digital, a imposição deste pedágio (sic) soa, no mínimo, contraditória e, em última instância, nociva para a transparência e a democracia, já que não existe cidadania sem informação.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
O movimento do open data dialoga diretamente com o princípio democrático e encontra um dos seus fundamentos no conceito open knowledge. A definição de “aberto” diz respeito à liberdade de usar, reutilizar e redistribuir sem restrições. Quaisquer outras restrições tornariam o dado “fechado”, isto é, de conhecimento exclusivo para um grupo determinado. A noção de abertura enfatiza ainda a importância da usabilidade e do acesso a todo o conjunto de dados ou trabalho de conhecimento<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, valorizando a força da experiência compartilhada. Como se sabe, o acesso massivo a informações públicas permite o surgimento de insights muitas vezes invisíveis a olho nu, estimulando o diálogo intersetorial.  E, com a possibilidade múltiplos pontos de vista, podemos deixar de ser uma sociedade de pontos cegos.
<blockquote class="jota-article__eye">Em sua redação original, a Lei nº 14.129/2021 apenas reforçava a tradicional marginalização informacional vivenciada pela maior parte da população brasileira. Uma verdadeira e despudorada automatização do status quo.</blockquote>
Assim, o art. 29, §3º, ao condicionar o acesso a dados abertos ao pagamento de um valor determinado, cometeu dois graves erros.
Em primeiro lugar, a cobrança de taxa apresenta o potencial de sufocar a inovação tecnológica no país uma vez que, basicamente, instituiu-se um pedágio para APIs (Application Programming Interface), interfaces de programação de aplicação de fácil implementação. Na prática, a API permite que um computador se comunique diretamente com o outro e solicite dados, sendo, portanto, uma ferramenta de automação, pela qual um terminal solicita e recebe dados sem intervenção humana<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Grosso modo, uma API permite que sistemas distintos falem o “mesmo idioma”, sendo essenciais para a tão necessária interoperabilidade que viabiliza a interação entre distintas bases de dados.
A imposição da citada cobrança atenta contra os princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência. Caso o art. 29, §3º fosse mantido, startups, por exemplo, seriam financeiramente sufocadas e impedidas de concorrer com companhias consolidadas e financeiramente mais poderosas.
Não somente a liberdade econômica estaria ameaçada, como também o desenvolvimento científico, valor consagrado no rol de direitos fundamentais do art. 5º, da Constituição da República. A possibilidade de feedbacks populares quanto aos serviços prestados pelo Estado, que depende de acesso amplo aos registros públicos, é condição essencial não somente para a legitimidade do Poder Público como também para a garantia da sua atuação técnica e baseada em dados. Neste sentido, adotar o open data é garantir a potencialização dos princípios administrativos da impessoalidade e eficiência, valores que devem nortear a atuação do Estado (Constituição da República, art. 37).
Além disso, o dispositivo ignora completamente o que prevê a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei que possui tanto a inovação científica quanto a liberdade econômica como fundamentos (art. 2º, V e VI). Como novo marco normativo, a LGPD estabelece princípios que devem ser observados para a realização das atividades de tratamento. Entre os princípios nucleares da legislação, encontram-se a finalidade, necessidade e transparência (art. 6º, I, III e IV), que devem ser interpretados à luz da norma constitucional. Por sua vez, a Constituição da República consagra o princípio da publicidade da Administração Pública, de modo que o ordenamento jurídico estabelece como regra a publicidade, e não o sigilo.<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Tanto é que o próprio texto da LGPD não determina a ilegalidade do acesso à informação de processos judiciais e outro dados de natureza pública, mas, sim, impõe parâmetros para validar o tratamento de tais dados. Embora os dados de processos judiciais sejam reputados como dados pessoais, tal condição não altera seu caráter público. O §3º do art. 7º da LGPD reforça tal entendimento ao afirmar que “[o] tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização”. Em seguida, o § 7º do mesmo dispositivo é claro: não existe óbice em tratar dados públicos para uma finalidade distinta daquela que autorizou sua publicação, desde que se trate de uma finalidade lícita.
Como se pode concluir, a LGPD é capaz de conciliar harmonicamente o interesse público (critério para se solucionar o aparente conflito entre acesso à informação e proteção de dados) e a finalidade, princípio orientador para as atividades de tratamentos de dados. Mais que isso, o art. 7º, §7º também fornece a chave para impedirmos os abusos, já que deixa clara a existência de tratamentos de dados públicos de caráter ilícito ou abusivo, diferenciando tais operações daquelas que utilizam as informações públicas para finalidades lícitas e ancoradas nos fundamentos da LGPD, quais sejam, a liberdade econômica e o desenvolvimento técnico e científico.
No tocante ao interesse público, o <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-311282311" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações</a>, em suas razões de veto ao art. 29, §3º, afirmou que: “(...) a propositura contraria o interesse público por dispor em termos abstratos sem maiores detalhamentos sobre a possibilidade de cobrança de valor de utilização da base, com chance de soluções díspares a depender do órgão ou poder que o aplicar, além de criar o risco de privar determinados segmentos do uso de base, por ausência de condições financeiras.”
Nesse aspecto, o princípio do interesse público é frontalmente violado, visto que o art. 29, § 3º, enseja tratamento desigual. A redação do dispositivo, ao não colocar limites quanto a quem pode ser cobrado, atingiu a todos indistintamente<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Vale lembrar que não são apenas grandes organizações dotadas de vastos recursos que buscam o acesso a dados públicos, mas também organizações da sociedade civil, jornalistas, pesquisadores e startups. São justamente estes atores que fomentam o debate público, e promovem inovação e o desenvolvimento tecnológico do país.
Para se concretizar o projeto do open data, é preciso construir novos sistemas que sejam eficientes, responsivos, legíveis e interoperáveis, bem como criar mecanismos legais que facilitem o desenvolvimento dessas tecnologias. Suspeitamos que a cobrança ao acesso, travestida de forma de custeamento, tratava-se de um escudo quanto aos olhos ativos da cidadania, já que o “pedágio” para o acesso a dados colocava em risco o princípio da transparência e fragilizava a nossa democracia, na medida que restringia o acesso à informação.
Bem-vindo, então, o veto, que vai ampliar a capacidade de escrutínio público e participação popular. Um país como o nosso, marcado por um histórico autoritário e pouco simpático à transparência, não pode se dar o luxo de restringir o acesso a dados públicos à burocracia, e assim tolher as inovadoras sugestões e criações trazidas pela população.
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<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O dispositivo vetado possuía a seguinte redação: “§ 3º  É facultada aos prestadores de serviços e aos órgãos e entidades públicos que tenham por objeto a execução de serviços de tratamento de informações e o processamento de dados, em relação a dados abertos já disponibilizados ao público e devidamente catalogados de acordo com o inciso XI do § 2º deste artigo, a cobrança de valor de utilização, no caso de acesso tipicamente corporativo ou institucional, contínuo e com excessiva quantidade de usuários e de requisições simultâneas, com grande volume de dados e com processamento em larga escala.”
<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Molloy JC (2011) The Open Knowledge Foundation: Open Data Means Better Science. PLoS Biol 9(12): e1001195. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.1001195
<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: <a href="https://mitsloanreview.com.br/post/dados-abertos-e-o-pedagio-do-governo-digital">https://mitsloanreview.com.br/post/dados-abertos-e-o-pedagio-do-governo-digital</a>. Acessado em 01 de abril de 2021.
<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> DIAS, JOELSON; CAMPOS, SARAH. Da cultura do sigilo rumo à política da transparência – a Lei de acesso à informação. VALIM, Rafael (coord.). Acesso à informação pública. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p, 73.
<a href="applewebdata://A93C4F45-3506-405B-B007-275EC881DB97#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>  Disponível em: <a href="https://mitsloanreview.com.br/post/dados-abertos-e-o-pedagio-do-governo-digital">https://mitsloanreview.com.br/post/dados-abertos-e-o-pedagio-do-governo-digital</a>. Acessado em 01 de abril de 2021.

LGPD

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JOTA

O veto do art. 29, §3º, é promissor para a inovação, o desenvolvimento tecnológico e a livre iniciativa

Contra a gentrificação dos dados públicos

O veto do art. 29, §3º, é promissor para a inovação, o desenvolvimento tecnológico e a livre iniciativa