Regulação e Novas Tecnologias

Coaf 3.0: na vanguarda do retrocesso

Exclusão de exchanges de sistema do órgão pode travar combate à lavagem de dinheiro no setor dos criptoativos

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Crédito: José Cruz/Agência Brasil

No último dia 30 de agosto, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) comunicou que, a partir de 5 de setembro deste ano, as corretoras de criptoativos (ou como são mais conhecidas, exchanges) não poderiam mais contar com a funcionalidade do Sistema de Controle de Atividades Financeiras (Siscoaf) para reportarem transações suspeitas[1]. Antes de entrarmos na análise dos impactos desta medida, explicaremos de maneira breve o contexto desta habilitação parcial, em caráter experimental, que as exchanges possuíam até o impedimento.

Há alguns anos, empresas conectadas à Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto) buscaram a padronização de práticas de conduta e de prevenção a lavagem de dinheiro no âmbito do mercado cripto. Mencione-se que as exchanges não estão incluídas dentro do rol das pessoas obrigadas prevista na Lei de Lavagem (a Lei 9.613/98), mas muitas delas reconhecem a importância da segurança para atração de players que buscam conformidade e diligência com questões de governança e conduta. A partir de então, a instituição lançou seu próprio código de conduta e autorregulação, alinhada às principais práticas internacionais.

Este movimento surge nos quadros de um mercado preocupado com a contenção de crimes relacionados à lavagem de dinheiro neste segmento. Em 2020, impulsionada por estudos publicados (SRUR, 2020)[2] e voltados para este tema, a ABCripto trouxe, no manual de prevenção à lavagem de dinheiro, algumas orientações sobre a implementação de boas práticas pelas corretoras.

Dentre os passos básicos, destacava-se a requisição ao Coaf para realização do cadastro no Siscoaf. Com isso, a exchange ganhava uma habilitação limitada, mas que servia como um canal direto com o órgão, entre outras funcionalidades (como a consulta a lista de pessoas expostas publicamente (PEPs), verificação de conformidade com normas, etc.). A partir do cadastro no Siscoaf e suas possibilidades, as exchanges podiam integrar às suas boas práticas algumas as políticas de KYE (Know your Employee), KYP, (Know your Partner), KYC (Know Your Client), KYT (Know Your Transaction), pois era possível registrar e identificar colaboradores (prática vinculada à noção de KYE), parceiros comerciais (vinculada à noção de KYP) e clientes (vinculada à noção da política KYC).

Para esta última, a verificação de antecedentes se traduz como um de seus principais recursos. Tal verificação pode ser realizada de maneira simplificada por meio da avaliação de situação cadastral na Receita Federal e, também, consultando antecedentes criminais, protestos e a situação econômico-financeira. Contudo, o meio mais detalhado e criterioso, leva também em consideração as listas de PEPs, bem como “possíveis expulsões da administração federal e inscrições em lista de inabilitados em instituições financeiras — além de avaliações em listas de sanções ao financiamento do terrorismo (ONU, EU, OFAC, etc.)”[3].

Outra política importante de mencionar e que integra o conjunto de esforços das exchanges na busca pela prevenção contra crimes de lavagem de dinheiro e outras práticas ilícitas, vincula-se a noção de Know Your Transaction (KYT), cuja premissa principal é a Recomendação n° 20 do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi)[4], que afirma o seguinte: “Se uma instituição financeira suspeitar ou tiver motivos razoáveis para suspeitar que os fundos sejam produtos de atividade criminosa ou estejam relacionados ao financiamento do terrorismo, ela deveria estar obrigada, por lei, a comunicar prontamente suas suspeitas à unidade de inteligência financeira (UIF)”. Ou seja, aqui os esforços direcionam-se no sentido de comunicar a ocorrência de operações suspeitas. E o canal por onde esta ação se dava era via Coaf, dado seu protagonismo no monitoramento e registro de atividades suspeitas de lavagem de dinheiro.

Levando em conta a evidente importância em torno do Coaf, até então, na operacionalização das aludidas denúncias pelas exchanges, considera-se que a exclusão das provedoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs, exchanges) do sistema por elas utilizados para notificação de operações suspeitas inviabiliza o empenho no combate à lavagem de dinheiro no setor dos criptoativos, que ainda aguarda regulação (por meio do PL 4401/2021, que se encontra em pauta na Câmara). Há um visível retrocesso quanto a um mecanismo que já havia alcançado efetividade, isto é, que já se mostrava proativo e com aderência pelas corretoras no Brasil. A medida se mostra na contramão da tendência internacional do segmento cripto, que vem primando por políticas bem estruturadas de prevenção à lavagem de dinheiro.

Recorde-se que, como foi possível observar, a autorregulação do mercado criptoativos avançou consideravelmente, mostrando, inclusive, sua consistência mediante os mecanismos de combate a prevenção contra lavagem de dinheiro. A iniciativa do Coaf coloca abaixo um fluxo de políticas de compliance já bem estabelecido, deixando um espaço vazio sobre a agência neste tipo de situação. Pergunta-se, então: a qual canal recorrer?[5] A legislação neste sentido será sensível às práticas de conformidade já realizadas? Estabelecerá diretrizes possíveis e viáveis? Enquanto o tema não recebe respaldo legal, até que haja avanço desta pauta no legislativo (que é sabidamente moroso), o gap deixado pelo Coaf traz muitas incertezas e imprime uma mensagem negativa ao mercado, que espera o regramento adequado a partir da aprovação do projeto de lei.

Por fim, vale mencionar que o PL 4401/21 previa, na versão aprovada pelo Senado, o cadastro no Siscoaf e a existência de inscrição ativa perante o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica como requisitos para obtenção da licença temporária a ser outorgada para as PSAVs em funcionamento no país, até a efetiva adequação legislativa[6]. Entretanto, após a última e recente revisão, pelo deputado relator do referido PL na Câmara dos Deputados, este trecho fora retirado, deixando, ao menos por enquanto, de ser requisito prévio para obtenção da licença temporária. É, portanto, bastante provável que a medida ora sob análise esteja conectada com esta alteração no curso do PL 4.401/21 e que o entendimento que — esperamos — venha a ser positivado, no sentido de tornar obrigatório, definitivamente, o cadastro e reporte ao COAF para todas as PSAVs.


[1]Ver notícia: Coaf exclui exchanges de sistema relacionado a notificações de lavagem de dinheiro (cointelegraph.com.br)

[2] Cite-se “Spring 2020 Cryptocurrency Crime and Anti-Money Laundering Report”, de junho de 2020, que analisou a relação entre lavagem de dinheiro e o segmento de criptoativos” (apud SRUR, 2020).

[3] Critérios mencionados no artigo: Criptoativos: Três passos básicos para as Exchanges - IPLD

[4] Criptoativos: Recomendações do GAFI - IPLD

[5] Embora o COAF tenha mencionado em seu Informe que “manifestações em geral podem ser amplamente encaminhadas ao Coaf, independentemente de habilitação para o uso do Siscoaf, por meio da plataforma Fala.BR, acessível pelo site https://falabr.cgu.gov.br/ (...), o canal geral está longe de ser apropriado para este tipo de comunicação de natureza sensível e que possuí diversas variáveis. Ou seja, nos parece óbvio que a medida trará desincentivo às comunicações voluntárias e servirá de alicerce para aqueles que optam por não realizar comunicações de situações atípicas.

[6] Emenda n° 5 ao Projeto de Lei nº 4.401, de 2021 “Art. 9º. Parágrafo único - As prestadoras de serviços de ativos virtuais que estiverem em atividade na data da publicação desta Lei poderão continuar a exercê-la enquanto não proferida decisão final acerca do processo de autorização pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública Federal definido em ato do Poder Executivo, desde que estejam regularmente cadastradas no Sistema de Controle de Atividades Financeiras, para fins de cumprimento da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), da Secretaria da Receita Federal do Brasil, cumprindo a legislação fiscal brasileira, especialmente mas não limitado ao reporte das transações na forma da Instrução Normativa nº 1.888, de 2019, sob pena de indeferimento da autorização a que se refere este artigo.”logo-jota