Opinião e Análise

Daniel Becker

Giovani Ravagnani

“A Ortodoxia Constitucional venceu o Direito 4.0”. Esta é a frase que o professor Lênio Streck postou quando o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a condenação do ex-presidente Lula. Sem entrar no mérito do julgamento, a declaração, por si só, nos faz pensar e repensar se vale a pena refutar as besteiras que ele vem, ao menos mensalmente, produzindo sobre inovação no setor jurídico. Mas, pela relevância da figura do acadêmico, é importante que as suas últimas afirmações sejam rechaçadas por quem entende do que está falando; afinal, Lênio Streck escrevendo sobre tecnologia e inovação é como o Cristiano Ronaldo palestrando sobre astrofísica. Neste texto, em benefício do tempo dos leitores, faremos nosso recorte sobre os comentários do professor a respeito do visual law e do legal design.
Lênio é um conservador radical. Conservador, porque deseja preservar o status quo do Direito, que na visão dele é algo a ser preservado. O antagonista do conservador é o inovador, aquele que muda a realidade, ora para o bem, ora para o mal, mas é naturalmente inconformado com as coisas como elas são. E as regras da experiência nos ensinam que a roda da história costuma esmagar os conservadores radicais.
Se se fala de inovação jurídica, é porque pessoas como o Lênio, que se vangloria de ser um dinossauro, ainda se fazem presentes no meio acadêmico. Por trás de uma bela técnica de escrita e um tom de luta pelo Direito, ele não consegue mascarar o seu inescondível desejo de criticar um movimento do qual não faz parte e que está relegando profissionais mesquinhos e ultrapassados para o fundo da gaveta.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Mas qual é a razão de ser do legal design e do visual law?
Grande parte da dificuldade em lidar com a catastrófica situação do Poder Judiciário no país encontra-se na semântica, isto é, na ausência de diferenciação entre acesso aos órgãos jurisdicionais e acesso à justiça. Este engloba o amplo acesso da população à informação jurídica.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O acesso à informação, decorrente do acesso à justiça, exige que o sistema jurídico seja de fácil navegação; a assimetria de informação jurídica, portanto, é a antítese do ideal do acesso à justiça. Já nos anos 80, o professor Kazuo Watanabe preocupou-se em definir o direito à informação jurídica como um dos pilares do acesso à justiça.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> A democratização do direito de acesso à justiça começa pela educação para a cidadania; cada cidadão deve ser conscientizado de todos os seus direitos, do modo e dos mecanismos para garanti-los.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Há não muito tempo, conhecer as decisões dos tribunais demandava uma ida a uma biblioteca ou o desembolso de generosas quantias para a obtenção de volumes dos ementários de jurisprudência. Se era difícil para os advogados (e ainda é), para os leigos, impossível. A assimetria de informação sempre foi intrínseca à atividade jurídica; há dois mil anos, o apóstolo Paulo de Tarso já recomendava que o povo se afastasse da justiça romana por não confiar nela (1 Coríntios 6).
O distanciamento da realidade, o formalismo exacerbado e o linguajar hermético e erudito são problemas antigos, mas, hoje, soluções novas e externas vêm sendo buscadas para a sua correção.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> O modelo gutemberguiano e a prática oitocentista estão sendo gradativamente substituídos pela internet e sua capacidade de reprodução massiva de informação.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">A ampla divulgação da informação jurídica online serve, entre outras funções, para desmistificar a lei<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e, assim, a rede mundial de computadores ocupa, de forma louvável, o espaço do anacrônico tripé do "papel-tinta-carimbo".<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> E é justamente aí que entram o legal design e o visual law para, tal como a internet, elevar o acesso à informação jurídica a um novo patamar, garantindo ainda mais acessibilidade ao seu destinatário final, que é o jurisdicionado.</blockquote>
É brilhante e louvável que se adote em uma velocidade cada vez maior recursos visuais e ilustrativos para promover a democratização da informação jurídica, como a “utilização de desenhos a fim de transformar informações jurídicas complexas em fluxogramas e apresentações gráficas de fácil assimilação” ou “a criação de cartilhas de orientação acerca das etapas procedimentais, com uma complementar interface adequada do sítio eletrônico do respectivo tribunal”.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Mas vamos ao que interessa. A seguir, selecionamos alguns trechos do professor para refutá-los de forma organizada.
A sua crítica começa na escolha do termo “legal design”. Para ele, “<a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/senso-incomum-dr-legal-design-explica-sentenca-judicial-facilita-tudo" target="_blank" rel="noopener noreferrer">o nome já não poderia ser em inglês em um país de analfabetos. Síndrome de caramuru pesadíssima</a>.” Eis o primeiro sinal de que estamos lidando com um manifestante de escrivaninha. Será que Lênio Streck não sabe que designer é uma profissão de centenas de milhares de brasileiros? E mais: será que ele não usa, no seu dia a dia, palavras como e-mail, internet, deletar, acessar etc.? Fique com seu grito de Anauê, professor.
Seguimos: “[d]ireito é uma disciplina com especificidades. O porteiro do prédio nada sabe sobre isso. Ele não cursou a faculdade. Assim como o jus-designer não entende as coisas da Psicanálise. Nem da Medicina. Compreende?” E mais. “A desmoralização da advocacia chegou a esse ponto em que juízes fazem legal designer ou visual law para ‘comunicar’ o que decidiram? É como se na Medicina o exame médico fosse ‘desenhado’ para o paciente, dispensando-se a palavra do médico.” Até aqui, Lênio Streck.
Das duas, uma. Lênio, por ingenuidade ou oportunismo, confunde manifestamente técnico e destinatário da técnica – porque o porteiro, enquanto porteiro, de fato não dominará todas as nuances da linguagem e da ciência jurídicas, mas, enquanto cidadão, destinatário de direitos e possuidor de deveres, deve ser capaz de acessar a justiça e compreender adequadamente os fatos do direito ligados à sua vida.
Ou pior. O professor, em um momento no qual inclusão é da ordem do dia, simplesmente diminui o porteiro e o coloca em uma condição humana à parte. A sua pretensa manifestação explosiva é, na verdade, implosiva. Sendo a segunda opção, ele precisa se renovar moralmente, mas, nas palavras de Karl Jaspers, se “ele é capaz de fazê-lo e como o fará é assunto exclusivo seu, é difícil de avaliar de fora.”<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Mas não é sobre a sua aporofobia que esse texto se dedica. O leigo — e aqui incluímos qualquer um que não tenha formação jurídica — pode e deve conhecer o básico da ciência jurídica; afinal, o básico, questões de família, consumo e trabalho, é o que representa 99% das demandas do país. É o Brasil real, que fica bem longe da torre de marfim.
A falácia do espantalho utilizada aqui é que ninguém, absolutamente ninguém discute que o outro 1% continuará sendo discutido dentro de uma satrapia acadêmica. Mas é fato que só um “<a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-27/senso-incomum-vamos-aceitar-desmoralizacao-direito-advogado-quando" target="_blank" rel="noopener noreferrer">idiota, néscio ou mentecapto</a>” (sic) acredita que para cuidar da saúde mental ou física é preciso ser um doutor em psicanálise ou medicina. Como sabemos que o adversário não é nem idiota, néscio ou mentecapto, concluímos que este ponto não passa de mera rebeldia de sua parte.
E o ataque à democratização da informação jurídica continua. “Quer fazer marqueting? Ok. Mas não fica bulindo com o Direito. Não façam isso. Por favor. Quer fazer tik tok para explicar o ECA para ignorantes? Ok. Mas não me diga que isso é "coisa do Direito". Não é coisa do Direito? O que é coisa do Direito? O dia a dia da população e a pauta dos tribunais passam longe de sua bibliografia e nem por isso ela é tratada como alienígena, ficção ou autoajuda.
O Direito está onde está a sociedade. Se a sociedade está no TikTok, ali também vai estar o direito. Mas não é só. Se o TikTok ou qualquer outra plataforma funcionar como um canal para disseminar informação e conscientizar a população sobre direitos, pode ter certeza de que o conteúdo será mais “coisa do Direito” do que o seu livro sobre hermenêutica. “[F]açam um visual law do meu ‘Verdade e Consenso”. Não, professor, pode esperar sentado.
Aqui, vemos o professor Lênio Streck como um nefelibata: “<a href="https://www.conjur.com.br/2021-jun-03/senso-incomum-sociedade-incivil-direito-40-algoritmos-sequestram#:~:text=Como%20jur%C3%A1ssico%20que%20acredita%20nos,essa%20%C3%A9%20a%20palavra%20fulcral.&amp;text=E%20desde%20que%20n%C3%A3o%20se%20deixe%20o%20Direito%20de%20lado." target="_blank" rel="noopener noreferrer">como jurássico que acredita nos dois mil e quinhentos anos de filosofia, continuo pensando que bons juízes e bons servidores dependem, isso sim, de estudo e compreensão sobre o Direito. Epistemologia, essa é a palavra fulcral</a>.” Delírio ou oportunismo argumentativo? Para entender o mundo real, é preciso conhecer o Fórum Regional de Bangu no Rio de Janeiro, a Vara Única de Quixadá no Ceará ou fazer uma audiência de custódia em Ferraz de Vasconcelos. São nesses locais, e não na Alexandria ptolomaica, que se constrói o consenso sobre o Direito em nosso país.
Para Lênio Streck, portanto, se a realidade não corresponde ao seu conceito, pior para a realidade. A má notícia para ele é que as pessoas – ou ao menos a maior parte delas; excepcionados séquitos organizados em herméticos circuitos acadêmicos – não estão nem aí para o Direito. As pessoas não querem a arquitetura, elas desejam construções belas, úteis e sólidas; a população não quer soldados ou policiais, mas segurança. Portanto, independente da forma, o importante é garantir o acesso à justiça aos cidadãos.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Esses herméticos circuitos acadêmicos, dos quais Lênio Streck, sem dúvidas, é mascote, são um circo muito, mas muito antigo e bem-sucedido que dá emprego para alguns ociosos que de outra forma não teriam qualquer serventia em sociedade. Seus textos ou chamadas às armas contra a inovação no Direito são um rouco grito neoludista.
Nada disso é novo. Voltaire, em sua obra Zadig ou o Destino, narra uma divertida história sobre a proibição na lei de Zoroastro sobre comer grifos, que leva os sábios, que compuseram dezenas de volumes sobre o tema, a discutirem por uma eternidade sobre o inócuo dilema de como cumprir o preceito... se os grifos sequer existem. Zadig, o protagonista da história, arremata “[s]e houver grifos, não os devemos comer; se não os houver, muito menos os comeremos; e assim, de qualquer modo, obedeceremos todos a Zoroastro”.
Qualquer semelhança não é mera coincidência. Se o Direito não encarar o jurisdicionado como um usuário e colocar este usuário no centro de toda a sua ciência, seguiremos discutindo qual é o melhor tempero para cozinhar grifos, à revelia da chamada vontade luciferina de Goethe, para quem “a cortesia do filósofo é a clareza”. E Lênio Streck seguirá vendendo livros. Mas, felizmente, nas palavras do próprio, “<a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/senso-incomum-dr-legal-design-explica-sentenca-judicial-facilita-tudo" target="_blank" rel="noopener noreferrer">[o] homem simplificador venceu</a>.” Sim, ótimo, uma maravilha. Agora, adeus, Lênio!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Participação e processo. São Paulo: Ed. RT, 1988, p. 128.
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JOTA

Alguns apontamentos em defesa do visual law e do legal design

Adeus, Lênio!

coluna regulação e novas tecnologias: alguns apontamentos em defesa do visual law e do legal design