Opinião e Análise

Ana Carolina Vidal

Marcelo Sequeira de Sousa

<p>As cláusulas de paridade de preço adotadas pela Booking.com e outras plataformas de reserva online de hotéis ou Online Travel Agencies (OTAs) geraram grande repercussão na última década perante autoridades da concorrência no Brasil e na Europa.</p>
<p>Esses precedentes ajudaram a moldar a dinâmica competitiva da oferta de acomodações na internet. Recentemente, o <a href="https://european-union.europa.eu/institutions-law-budget/institutions-and-bodies/search-all-eu-institutions-and-bodies/court-justice-european-union-cjeu_pt">Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)</a>, a mais alta corte do bloco, proferiu uma aguardada decisão sobre o tema. Resumimos a seguir as reviravoltas desse caso emblemático, e de interesse para o Brasil.</p>
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<h3>O início</h3>
<p>Em 2013, a autoridade da concorrência da Alemanha (Federal Cartel Office ou FCO) emitiu decisão contra a Booking.com pela utilização de cláusulas de paridade amplas nos seus termos e condições em relação a ofertantes de acomodação na plataforma (e.g., hotéis).</p>
<p>A cláusula impedia hotéis parceiros de oferecerem preços mais vantajosos em qualquer outro canal de vendas – seja próprio ou de terceiros, online ou offline – em comparação ao preço ofertado na Booking.com. O FCO entendeu que tais cláusulas restringiam a concorrência entre canais de venda.</p>
<h3>Cláusulas de paridade restrita: tentativa de compromisso</h3>
<p>A decisão do FCO desencadeou investigações semelhantes em vários países europeus. Em 2015, a Booking.com celebrou acordos com as autoridades de concorrência de França, Itália e Suécia, comprometendo-se a substituir a cláusula de paridade ampla pela paridade restrita.</p>
<p>Diferentemente da paridade ampla, a paridade restrita apenas impede hotéis parceiros de oferecerem preços mais vantajosos em canais próprios de venda na internet, mas permite que ofereçam preços melhores em outras OTAs e em canais de venda próprios offline. Contudo, na Alemanha, o FCO considerou que esse ajuste continuava a violar as leis de concorrência da UE e da Alemanha.</p>
<p>A Booking.com recorreu ao Tribunal Regional Superior de Düsseldorf, que em 2019 acolheu parcialmente seus argumentos. A corte entendeu que as cláusulas de paridade restrita constituíam uma “restrição acessória” necessária ao modelo de negócios da Booking.com, já que seriam essenciais para evitar o “efeito carona” — situação em que o hotel, de forma oportunista, se beneficia da visibilidade na OTA, mas não paga pelo serviço, ao direcionar a compra para fora da plataforma de intermediação — e, desta forma, assegurar uma remuneração justa pelos serviços de intermediação  prestados.</p>
<p>Em linhas gerais, para que uma restrição seja classificada como “acessória” e fique fora do escopo de aplicação da proibição do Artigo 101 (1) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), é necessário estabelecer, primeiramente, que a implementação da operação principal (no caso, do modelo de negócio da OTA) produz efeitos neutros ou positivos em relação à concorrência, e, em seguida, comprovar que a implementação do negócio seria impossível sem a restrição em questão.</p>
<p>Porém, já em 2021, o Tribunal Federal de Justiça alemão reverteu a decisão de Düsseldorf, rejeitando a classificação de tais cláusulas como 'restrição acessória'. O tribunal entendeu que não foi comprovado que as mesmas eram objetivamente necessárias para o modelo de negócio da Booking.com.</p>
<p>Diante desse cenário jurídico complexo, em 2020 a Booking.com iniciou uma ação no Tribunal Distrital de Amsterdã, tendo solicitado uma declaração de que as cláusulas de paridade estariam fora do escopo do Artigo 101 (1) do TFUE por configurarem uma “restrição acessória”. O Tribunal, reconhecendo a repercussão do caso em âmbito europeu, submeteu o questionamento para apreciação do TJUE.</p>
<h3>Decisão do TJUE</h3>
<p>No seu julgamento de 19 de setembro de 2024, o TJUE respondeu negativamente à questão apresentada. Embora o TJUE tenha reconhecido o impacto neutro ou até positivo das OTAs para a concorrência, concluiu que não foi demonstrado que as cláusulas de paridade, sejam elas amplas ou restritas, são objetivamente necessárias para a implementação do modelo de negócio das OTAs, nem proporcionais ao fim que pretendem alcançar. Ou seja, que não foi verificada uma ligação intrínseca entre a continuidade da atividade principal da OTA e a imposição de tais cláusulas.</p>
<p>Especificamente, o TJUE observou que as cláusulas de paridade ampla podem de fato reduzir significativamente a concorrência entre diferentes plataformas de reservas de hotéis, além de potencialmente excluir operadores de menor porte e dificultar a entrada de novos participantes. Já as cláusulas de paridade restrita, embora consideradas menos prejudiciais à concorrência e voltadas a mitigar o risco de efeito carona, não aparentavam ser essenciais para a implementação da operação.</p>
<p>O tribunal destacou que, embora tais cláusulas possam mitigar riscos de efeito carona e gerar ganhos de eficiência, ou até mesmo assegurar o sucesso comercial das plataformas de reserva online de hotéis,  isso não é suficiente para classificá-las como “restrições acessórias”, exceção à aplicação do artigo 101 (1) do TFUE.</p>
<p>No entanto, ainda que tais argumentos não sejam considerados na análise de aplicabilidade do artigo 101 (1) do TFUE, eles podem ser apreciados no contexto da análise no âmbito de aplicação do artigo 101 (3) do TFUE, que prevê isenções para certos acordos que tenham componentes restritivos à concorrência mediante a verificação dos seguintes pressupostos caso a caso:</p>
<ul>
<li>contribuem para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou econômico (ganhos de eficiência);</li>
<li>consumidores se beneficiam de uma parte equitativa do lucro resultante;</li>
<li>restrições são essenciais à consecução desses objetivos; e</li>
<li>não elimina a concorrência relativamente a parte substancial dos produtos em causa.</li>
</ul>
<p>A análise com base no artigo 101(3) do TFUE envolve um processo de balanceamento fático entre os efeitos pró-competitivos e anticompetitivos. Os benefícios para o mercado, como a promoção da eficiência, inovação ou bem-estar do consumidor, devem prevalecer sobre as restrições à concorrência impostas pelo acordo.</p>
<h3>Precedente brasileiro</h3>
<p>No Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CADE">Cade</a>) adotou uma postura mais flexível em relação às cláusulas de paridade adotadas por OTAs do setor hoteleiro. Em 2018, o Cade encerrou uma investigação sobre as práticas da Booking.com, Expedia e Decolar.com mediante a celebração de acordos mediante as quais as OTAs se comprometeram a pôr fim às cláusulas de paridade ampla, embora mantivessem o direito de aplicação de cláusulas de paridade restrita.</p>
<p>O Cade reconheceu que as cláusulas de paridade restrita representavam um ponto de equilíbrio, na medida em que resguardavam as OTAs dos riscos de efeito carona dos hotéis ao mesmo tempo que conferiam maior soberania aos hotéis sobre seus preços e condições comerciais por permitir que oferecessem preços diferentes em seus canais de venda offline (balcão de reservas, agências de turismo físicas e canal de atendimento telefônico) e em outras OTAs.</p>
<h3>Afinal, proibido ou não?</h3>
<p>Ao determinar que as cláusulas de paridade, amplas ou restritas, não podem ser classificadas como restrições acessórias para fins de não aplicação da proibição constante do artigo 101 (1) do TFUE, a decisão do TJUE, à primeira vista, parece representar uma clara vitória para o FCO e para ofertantes de acomodações. No entanto, a realidade é mais complexa.</p>
<p>O TJUE não proibiu totalmente o uso de cláusulas de paridade; ao contrário, possibilitou sua apreciação no âmbito de aplicação da isenção sob o Artigo 101 (3) do TFUE, desde que se possa provar que são essenciais para garantir ganhos de eficiência à OTA, demonstrando que os efeitos negativos decorrentes da restrição não superam os efeitos positivos à concorrência.</p>
<p>Assim, a decisão do TFUE demonstra ceticismo em relação às cláusulas de paridade restrita, que é aceita em diversos países, mas deixa em aberto a possibilidade de sua justificação. O ônus da prova recai sobre as OTAs. Dessa forma, para a Booking.com, a decisão da TJUE não é favorável, e o debate quanto à aceitabilidade da cláusula de paridade restrita continuará a ser realizada caso a caso.</p>


uniao europeia

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JOTA

Tribunal de Justiça da União Europeia analisou caso envolvendo plataformas de reserva online de hotéis

Principal tribunal europeu aponta ceticismo com cláusulas de paridade restrita

Recente decisão do principal tribunal europeu sobre Booking.com aponta ceticismo também com cláusulas de paridade restrita