Opinião e Análise

Tais Carmona

Ricardo Freitas

Santamaria Nogueira Silveira

Embora os 3 pilares <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/esg">ESG</a> (boas práticas ambientais, sociais e de governança) dialoguem entre si e estejam interconectados, cada um vem performando diferentemente. Assim temos uma consolidação do pilar “E” à frente, seguido pelos pilares “G” e “S”. O último, relativo ao capital humano, detém o poder de impactar as organizações de forma ainda não dimensionada, talvez por isso mesmo seja reconhecido como o pilar mais complexo do espectro ESG.
O pilar “S” envolve muitas frentes de atuação para as corporações, resultando em uma aderência mais lenta. Assim sendo, os direitos humanos podem servir de fio condutor para as diferentes práticas que as empresas devem adotar no sentido de reduzirem riscos, ganharem previsibilidade, adesão dos stakeholders e estarem em conformidade com o pilar social.
O jurista Fábio Konder Comparado explica que os direitos humanos têm um pressuposto bem simples: “aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo”, implicando em um esforço de educação e autoeducação para todos.[1] Um ponto de partida pode vir da adequação das metas empresariais aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU – principalmente os ODS que tratam da erradicação da pobreza, boa saúde e bem-estar, igualdade de gênero, emprego digno e crescimento econômico e redução das desigualdades – para alcançar a sustentabilidade em 2030.
Mas um mapa mais detalhado está presente nos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, estruturado sob três pilares: proteger, respeitar e reparar. A proteção cabe ao Estado, o respeito envolve as empresas voluntariamente no sentido de incorporar esses princípios e coibir qualquer tipo de abuso em suas atividades, e a reparação está voltada a criar uma proteção para as vítimas. Os dispositivos contidos nos Princípios têm um caráter de soft law, ou seja, não possuem a força da norma legal (hard law). Portanto, não constituem um instrumento juridicamente palpável, com responsabilização das empresas, mas apenas estimula os atores envolvidos a aderirem e atingirem um ecossistema corporativo mais equilibrado, em consonância com a agenda ESG.
A diretora do <a href="https://pt-br.facebook.com/businessandhrwg">USP Business and Human Rights Working Group</a>, Victoria Vitti de Laurentiz, no balanço de uma década desse instrumento norteador, considera que “as empresas estão bastante desorientadas em relação ao que significa uma real adoção dos princípios orientadores, traduzindo apenas a redação deles para compromissos éticos ou códigos de conduta que, do ponto de vista prático, não geram nenhum tipo de impacto social positivo. É preciso conferir maior clareza a quais direitos humanos, quais violações, quais circunstâncias de responsabilidade solidária, de fato, serão alvo de consideração por um marco nacional de empresas e direitos humanos no Brasil".[2]
Enquanto o país não conta com um marco de direitos humanos para as empresas, a adesão aos padrões de direitos humanos da ONU em toda a sua cadeia produtiva pode fazer avançar o pilar “S”, contemplando  todos os stakeholders da organização: profissionais, acionistas, clientes, fornecedores, parceiros negociais e comunidade.
Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU passaram a integrar o ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 9.571/2018[3], abrangendo algumas das principais práticas corporativas relativas ao pilar “S”, como assegurar “condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, com remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança”. (art.7º).
A questão da remuneração justa na esfera corporativa vem ganhando importância dentro do cenário ESG em todo o mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, de acordo com a Just Capital[4], organização sem fins lucrativos que monitora e classifica empresas de acordo com suas políticas trabalhistas consideradas mais justas nos quesitos de salário e de tratamento aos trabalhadores, afirma que o tema está em primeiro plano para o público americano quando se trata de desempenho ESG. Há até quem profetize que as relações trabalhistas estão mudando e que o salário tende a ter um vínculo com a saúde financeira dos empregados.
A diversidade e a inclusão dos talentos de uma empresa também estão contempladas pelo Decreto, quando propõe o combate à desigualdade e à discriminação contra mulheres, negros, LGBTQIA+, PCDs e outros grupos minorizados.
Neste ano, o Brasil promulgou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, mas o país precisou de casos de racismo impactantes – como o assassinato de João Alberto Freitas, espancado e asfixiado por seguranças de um supermercado em Porto Alegre, no ano passado – para que o PDL 861/17 tramitasse com mais rapidez no Legislativo e cumprisse os requisitos para viabilizar o <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.932-de-10-de-janeiro-de-2022-373305203">Decreto 10.932/2022</a>[5], no qual está manifesta a concordância do Brasil em lutar contra todas as formas de racismo e pelos direitos das populações vulneráveis.
A convenção tem força de lei constitucional e está em vigor contra todo tipo de opressão racial, inclusive aquelas que ocorrem no âmbito privado de organizações. Toda pressão deve ocorrer, também, para que o Brasil alinhe suas políticas públicas contra o racismo, assim como ocorreu com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que resultou na Lei Maria da Penha, que serviu de inspiração para iniciativas contra a violência doméstica dentro das corporações.
A Convenção 9.571/2018 também é explícita quanto aos compromissos sociais da empresa na proteção de seus stakeholders, ao estabelecer que deve “agir de forma cautelosa e preventiva, nos seus ramos de atuação, inclusive em relação às atividades de suas subsidiárias, de entidades sob seu controle direito ou indireto, a fim de não infringir os direitos humanos de seus funcionários, colaboradores, terceiros, clientes, comunidade onde atuam e população em geral”( artigo 6º,I).
No caso das comunidades atingidas pela ação de uma empresa, ainda há lacunas na legislação brasileira, mas há projetos em tramitação, como o que estabelece a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2201532">PL 2788/2019</a>), que servirá de resposta aos casos paradigmáticos do rompimento das barragens de rejeitos em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. As questões envolvendo a cadeia de mineração têm amplitude global e apontam para a necessidade do controle de riscos sociais, econômicos e ambientais e cumprimento de metas ESG que façam o atual legado das mineradoras ser revertido positivamente.
O Business and Human Rights Resource Center (BHRRC)[6], entidade independente que promove os direitos humanos nas empresas e acompanha mais de 10 mil corporações, divulgou pesquisa na qual registra acusações contra mais de cem empresas de mineração, especialmente de minerais de transição (manganês para as turbinas eólicas ou o lítio, cobalto e níquel para as baterias EV) por violação a uma série de direitos humanos.
A mesma entidade vem expondo o tema da mineração em terras indígenas brasileiras, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/mineracao-terras-indigenas-atropela-constituicao-28022022">matéria polêmica que está em análise no Congresso Nacional</a> e deve ser votada em breve. O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que prevê o direito dos povos indígenas e tribais de serem consultados antes da adoção de medidas jurídicas, políticas e econômicas pelo Estado nacional que afetem seus interesses e sua cultura.
Além da mineração, o fator “S” tem um peso grande dentro do agronegócio, principalmente porque é um dos setores que mais emprega no Brasil (17,3 milhões). Nesse caminho das commodities, os pilares ESG são fundamentais e já existe uma preocupação ambiental crescente do produtor rural, mas o fator “S” ainda não recebeu igual atenção.
No ano passado, parte das 1.937 pessoas resgatas pelas autoridades em situação de escravidão contemporânea foram encontradas em fazendas e usinas. O art.7º, III, do Decreto 9.571 contempla o compromisso das empresas com a política de erradicação de trabalho análogo à escravidão ou escravidão moderna, que consiste em pessoas obrigadas a trabalho forçado, servidão por dívida fraudulenta, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Nos últimos 26 anos, desde que o Brasil reconheceu perante a ONU a persistência do trabalho escravo no país, 57 mil pessoas foram resgatadas.
A sede da ONU tem um memorial às vítimas da escravidão – a Arca do Retorno, que ainda não chegou ao seu destino porque são muitas as formas contemporâneas de escravidão, envolvendo mais de 40 milhões de vítimas em todo o mundo, presentes em países em desenvolvimento e desenvolvidos e que, segundo a OIT, geram lucros a seus exploradores de US$ 150 bilhões/ano.
O papel dos parceiros comerciais também é destacado pelo Decreto 9.571/2018, no artigo 6º, VIII. As corporações devem exigir as mesmas práticas e compromissos voltados aos direitos humanos das empresas terceiras. Daí, a importância do papel preventivo, como sugere a criação, na França, da Lei Due Diligence de Direitos Humanos (devoir de vigilance)[7], que estabelece para as empresas transnacionais o dever de vigilância, de prevenir riscos sociais – entre outros – em suas operações.
A lei foi inspirada nos Princípios Orientadores das Nações Unidas para as Empresas e motivada pelo desastre ocorrido em abril de 2013, em Bangladesh, onde um prédio (Rana Plaza) desabou e causou a morte de mais de 1.000 empregados, envolvendo subcontratados de empresas europeias. A Lei Due Diligence atinge subsidiárias e parceiros negociais das empresas francesas fora do seu território. Por isso, duas transnacionais francesas com atuação no Brasil estão sofrendo ações judiciais: uma rede de supermercados por suposta aquisição de carne ligada ao desmatamento na Amazônia e uma petrolífera, por danos ambientais.
Compromissos vs. práticas tende a ser um dos dilemas centrais do pilar “S” para as organizações e em um mundo globalizado é possível divisar que caminhamos para a formatação de um novo contrato social, no qual todos os stakeholders devem ser contemplados pelos interesses das empresas. A biofarmacêutica Gilead Sciences é um bom exemplo disso. Inicialmente acusada de cobrar um preço exorbitante pelo antiviral Remdisivir, indicado para o tratamento contra a Covid-19, abriu mão da patente do remédio para mais de 100 países em desenvolvimento até que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declare o fim da pandemia.[8]
Em suma, o pilar “S”  apresenta um desafio a ser vencido pelas corporações, porque coloca em xeque políticas e práticas organizacionais que vieram se sofisticando ao longo de décadas, para muito além dos códigos de conduta. Este cenário está em consonância com a frase do filósofo italiano Norberto Bobbio sobre o labirinto da história: “Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la, devemos procurá-la nós mesmos”.[9]
Essa é a dificuldade de encontrar o caminho para o pilar “S”, uma vez que mais importante do que descobrir a saída é saber quais caminhos não trilhar, como a desconexão com os stakeholders, discriminação e intolerância étnico-racial, disparidades salariais, ausência de mulheres em conselhos administrativos, falta de segurança de dados, privação de segurança, saúde e qualidade de vida para os trabalhadores, distanciamento das comunidades onde a empresa está inserida etc. Essa lição, contudo, vem sendo aprendida, em maior ou menor grau, pelas corporações mundo afora porque cresce a importância e impacto do pilar “S” sobre a reputação e imagem das empresas, ou seja, sobre os seus ativos intangíveis.
<hr />
[1] CHAUI, Marilena et al. Direitos Humanos E. São Paulo: Brasiliense, 1989.
[2] Disponível em <a href="https://sites.usp.br/iearp/principios-de-direitos-humanos-dificilmente-sao-aplicados-em-empresas/">https://sites.usp.br/iearp/principios-de-direitos-humanos-dificilmente-sao-aplicados-em-empresas/</a>
[3] Disponível em <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm</a>
[4] Disponívelem em <a href="https://justcapital.com/">https://justcapital.com/</a>
[5] Disponível em <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.932-de-10-de-janeiro-de-2022-373305203">https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.932-de-10-de-janeiro-de-2022-373305203</a>
[6] Disponível  em <a href="https://www.ohchr.org/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf">https://www.ohchr.org/documents/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf</a>
[7] Disponível em <a href="https://www-legifrance-gouv-fr">https://www-legifrance-gouv-fr</a>.
[8] Disponível em <a href="https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/15/laboratorio-cede-direitos-para-127-paises-receberem-antiviral-contra-o-novo-coronavirus.ghtml">https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/15/laboratorio-cede-direitos-para-127-paises-receberem-antiviral-contra-o-novo-coronavirus.ghtml</a>
[9] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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JOTA

Lição vem sendo aprendida porque cresce a importância sobre a reputação e imagem das empresas

Direitos humanos apontam caminhos norteadores para o pilar &#8216;S&#8217;

Direitos humanos apontam caminhos norteadores para o pilar 'S'

Lição vem sendo aprendida mundo afora porque cresce a importância do pilar “S” de ESG sobre a reputação e imagem das empresas