![estado de direito](https://images.jota.info/wp-content/uploads/2023/05/lula-forum-de-governadores-stf-20230109-0277.jpg)
Na coluna de hoje, convidamos Letícia Kreuz, professora substituta de Direito Constitucional da UFPR. Atualmente, a convidada pesquisa temas relacionados a democracia e eleições, com ênfase em desnaturação constitucional, erosão democrática e reformas constitucionais. No texto, buscamos um diálogo com a filósofa belga Chantal Mouffe, em “O regresso do político” (1993), sobre a imperatividade do retorno ao político para a efetivação do Estado democrático de Direito.
Na introdução do livro, Mouffe critica uma defesa feita no início da década de 1990 de que democracias liberais venceram e, nesse sentido, a história havia acabado. Em sua crítica, a autora afirma que os defensores da corrente do “fim da história” anteveem o fim da política e sua substituição pelas forças do direito e da razão universal. Assim, eles se esquecem (ou são “incapazes de compreender”) a relevância do antagonismo e do poder para a política democrática. De forma quase profética, que dialoga com o objeto desta coluna, a filósofa afirma que:
Quando, como é o caso hoje, a democracia liberal é cada vez mais identificada com o ‘capitalismo democrático liberal realmente existente’, e sua dimensão política é restrita ao estado de direito, existe o risco de que os excluídos possam se juntar a movimentos fundamentalistas ou serem atraídos por formas anti-liberais e populistas de democracia. Um processo democrático saudável exige um conflito vibrante de posições políticas e um conflito aberto de interesses. Se [tal conflito] faltar, pode facilmente ser substituído por um confronto entre valores morais não negociáveis e identidades essencialistas. (p. 6)
Interessante observar que Mouffe previu a possibilidade de “excluídos” fortalecendo movimentos fundamentalistas e manifestações anti-liberais. Quando se observa o crescimento de grupos antidemocráticos no Brasil, no entanto, é necessário compreender que esta “exclusão” não condiz com a marginalização social ou política — um aspecto que tratamos no texto de lançamento desta coluna.
Talvez a categoria que melhor explique estes “excluídos” que se voltam ao fundamentalismo no caso brasileiro seja o “deslocamento” (retratado no contexto estadunidense por Wendy Brown em “Nas ruínas do neoliberalismo”), na medida em que grupos que advogam por valores “tradicionais” passam a combater e reagir a pautas antagônicas às suas crenças, muitas vezes religiosas e culturais. Por entenderem que a defesa de questões relacionadas ao feminismo, aos direitos da população LGBTQIA+, ao movimento negro, ao movimento indígena, entre outras manifestações vistas como “de esquerda”, setores conservadores reagem como se o objetivo destes grupos fosse o de aniquilar o modo de vida “tradicional” — e, assim, inviabilizam o debate político, concentrando na disputa moral e na lógica amigo-inimigo os diálogos públicos.
Os atos golpistas de 8 de janeiro são consequência da crença nessa vertente, produtos de um paradoxo construído no cerne da antipolítica: a criminalização das funções políticas, dos sujeitos que ocupam tais cargos, o ódio ao espaço representativo do político e, por outro lado, a “mitificação” de um político de carreira, com mais de três décadas de mandatos eletivos.
A destruição física dos espaços políticos é a tentativa de destruição simbólica da política — e não só dela, mas também das representações que se relacionam com “o inimigo”, no caso, os setores tidos como progressistas. Não por acaso elementos de valor artístico e histórico foram furtados ou destroçados. Arte e história são “antagonistas” do conservadorismo fundamentalista e, portanto, merecem facadas, chutes, golpes de martelo.
O desenrolar da história, no entanto, é implacável. Enquanto o 8 de janeiro foi um atentado à política, o 9 de janeiro foi uma tentativa de fazê-la renascer das cinzas. Ao convocar os 27 governadores e os chefes dos Poderes constituídos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu uma imagem emblemática: de braços dados, representantes de variadas ideologias políticas caminharam pela Praça dos Três Poderes; assim, simbolizando o espaço público (a praça) e a união dos diferentes órgãos do Estado em torno da sobrevivência da democracia constitucional.
Os governadores não estavam ali na condição de aliados do presidente — ninguém afirmaria que Romeu Zema (Novo), Tarcísio de Freitas (Republicanos) ou Ratinho Junior (PSD) são alinhados ideologicamente com Lula. A importância do dia 9 de janeiro está justamente nisso. Retornando Chantal Mouffe, a democracia saudável exige um conflito vibrante de posições políticas e um conflito aberto de interesses, mas não comporta manifestações pela destruição, física ou simbólica, do espaço democrático.
Ao levar adversários políticos a Brasília e caminhar ao lado deles em defesa do Estado democrático de Direito, Lula contribuiu diretamente para o retorno da política ao seu lugar de destaque.
Não há democracia possível sem o embate no campo político e o conflito de ideais e de visões de mundo. Esse retorno vem se mostrando presente até mesmo dentro do governo, com posições adversariais entre a base governista, ministros e até mesmo entre membros do Partido dos Trabalhadores e do governo. Para citar alguns exemplos, o novo arcabouço fiscal e a possível exploração de petróleo na foz do rio Amazonas são embates públicos entre importantes nomes da agenda política nacional. A despeito de críticas oportunas nesse ponto, especialmente quanto à prometida agenda ambiental do governo federal, é salutar que o debate político tenha retomado os holofotes, tanto na esfera institucional quanto jornalística. Sinal de que a política está, lentamente, regressando.