Opinião e Análise

Flávia Santiago Lima

Quem move as engrenagens jurídicas da Constituição? Em continuidade ao texto anterior sobre o sistema de justiça brasileiro, em que ofereci sugestões para compreensão das funções públicas (MPs, Defensoria e Advocacia Pública), nessa contribuição dirijo minhas atenções à advocacia e a instituição que lhe organiza: a Ordem dos Advogados do Brasil (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">OAB</a>).
É inegável o status privilegiado na Constituição Federal, que menciona 42 vezes os termos advocacia, OAB e Conselho Federal da OAB em seu texto, caracterizando as expectativas dirigidas aos bacharéis como agentes do processo democrático e da OAB “como um antitérmico na regulação, no controle e no diálogo entre os cidadãos e o Estado” (Simonetti; Carvalho Neto, 2023, p, 186).
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A confiança na “república dos bacharéis” (Da Ros; Ingram, 2019, p. 339) implica em números superlativos. Em outubro de 2023, contávamos com 1.370.476 de inscritos. Somos superados pela Índia (mais de 2 milhões de advogados), e próximos aos EUA (1,3 milhão de advogados), mas a maior proporção mundial: 1 advogado a cada 164 habitantes.
São cerca de1.800 cursos jurídicos autorizados no país, somando mais de 700 mil alunos matriculados (OAB Nacional), o que assegura a manutenção desse processo juristocrático a longo prazo, a despeito da tendência de queda do número de ingressos e eventuais abandonos/trancamentos de matrícula.
Neste universo, a OAB se destaca como a maior associação da sociedade civil brasileira (se fosse um estado soberano, estaria em 152º dentre os 193 países que compõem a ONU). Para compreender seu papel na nação de juristas, parte-se da constatação de Sadek (2002, p. 259), para quem o “papel e a atuação da OAB na nova ordem constitucional continuam um convite à espera de respostas”.
Neste sentido, proponho discutir o processo de construção e afirmação das diversas frentes de atuação da OAB na conjugação de sua atividade institucional com seu papel na consolidação do arranjo democrático, decorrente das previsões constitucionais (v.g. art. 133, CRFB) e da definição legal em seu Estatuto (Lei nº 8.906/1994), que afirma a entidade como um serviço público cuja finalidade é “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas” (art. 44, I).
O marco teórico, mais uma vez, é o neoinstitucionalismo, nas implicações entre ordem, continuidade e mudança política, de sorte que as transformações são um elemento presente nas instituições, em arranjos que repercutem no seu surgimento, reprodução e transformação (March; Olsen, 2006, p. 11).
A ideia de que a OAB equilibra duas vertentes em sua atuação, desde sua criação no Decreto 19.408/1930, é uma espécie de consenso entre os pesquisadores do tema (v.g. Motta, 2006). A despeito de tratar vagamente da instituição, estabelecendo que esta seria regida pelos estatutos votados pelo Instituto dos Advogados Brasileiros e aprovados pelo governo, o art. 17 fixou duas funções sempre presentes na sua atuação, como um “órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados”.
A dimensão corporativo-profissional, na defesa da categoria e do seu próprio fortalecimento institucional, às voltas com eventuais tentativas de conformação pelo Executivo e tensões em períodos autoritários para a viabilizar o exercício profissional, faz parte da trajetória da entidade. Esta, por sua vez, convive com outra importante dimensão, a representação dos interesses gerais da cidadania, como a proteção dos direitos individuais e coletivos, reforçada a partir da década de 70 (Motta, 2008, p. 29) e que encontrou seu ápice no inquestionável sucesso de suas demandas na CRFB-1988.
Embora tenha apoiado, num primeiro momento, o regime militar (1964-1985), a OAB assumiu nas décadas seguintes uma postura de reprovação branda e, ao final, de reprovação pública (Curi, 2008, p. 49). Em trabalho anterior, salientamos como a OAB desempenhou um importante papel na resistência, focado inicialmente na defesa das prerrogativas dos advogados que defendiam presos políticos (Lima; Vasconcelos, 2014, p. 130), mas posteriormente ampliou suas pautas para o respeito aos direitos humanos, reestruturação da democracia e reforma judicial, como definido nas V e VI Conferências Anuais da OAB (Rio de Janeiro, 1974 e Salvador, 1976).
A posse de Raymundo Faoro, ferrenho crítico do então governo, na Presidência do Conselho Federal em 1977, ratificou o papel de oposição, ao lado de outras entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Associação Brasileira de Imprensa. Como causa ou consequência, a postura da OAB nos anos 70 foi acompanhada de revezes, com a perseguição de advogados (sequestros, torturas e impedimento do exercício pleno de suas funções) e da própria instituição (atentados, tentativas de podar a sua autonomia, como a submissão de suas contas ao Tribunal de Contas da União (TCU) e a cobrança de imposto sindical, em adição ao pagamento das anuidades (Motta, 2008, p. 6).
Acumulado capital político nos esforços contra o regime militar e no apoio à redemocratização, com sua sede recém-instalada em 1986 no Distrito Federal, era de se esperar que a OAB se convertesse num importante agente na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, que contava com 40,14% de bacharéis em direito entre seus membros. As estratégias de mobilização da OAB variaram: oitiva de advogados como especialistas nas audiências públicas, proximidade com importantes constituintes, como Nelson Jobim e Bernardo Cabral, mas também pela criação de um Bureau por Márcio Thomaz Bastos, que formulou relevantes propostas para a apreciação da ANC.
Referidas propostas, que não se limitavam aos interesses corporativos dos advogados, tiveram significativa acolhida, como o controle externo parlamentar das contas dos poderes públicos, a ação de inconstitucionalidade por omissão e os impedimentos para a magistratura (Guerra; Couto, 2018, p. 90). Outras demandas, como a criação do Conselho Nacional de Justiça e de um Tribunal Constitucional, foram frustradas. Contudo, chama a atenção um importante dado, exposto por Márcio Thomaz Bastos: “O art. 5º da Constituição, que cuida dos direitos, foi escrito por nós. É o que a Ordem apresentou, a OAB apresentou, e foi literalmente” (2012, p. 14).
O sucesso da OAB no processo constituinte foi coroado com a singular posição assegurada aos advogados (art. 133), participação da OAB em concursos públicos para provimento de cargos, possibilidades de acesso aos tribunais (quinto constitucional, STJ) e na legitimidade específica do Conselho Federal (CFOAB) para propositura de ações no controle de constitucionalidade concentrado (art. 103, VI, e § 1º, CRFB), como representante da sociedade civil. Em resumo: “a Ordem foi uma das principais construtoras da abertura democrática, mas igualmente foi por ela construída” (Motta, 2008, p. 29).
Na ordem constitucional pós-1988, a Ordem consolidou seu espaço no debate jurídico e político brasileiro, com uma série de vitórias legislativas e jurisprudenciais.
A aprovação da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia) traçou os rumos para a profissão, assegurando sua independência, prerrogativas e princípios éticos, contemplando a multiplicidade de vínculos de trabalho na iniciativa privada e setor público, para além da clássica visão da advocacia como uma profissão liberal. Mais recentemente, a promulgação da Lei 14.365/ 2022 promoveu alterações no Estatuto da Advocacia e nos Código de Processo Civil e Penal, ampliando a defesa oral, aumentando as punições ao desrespeito às prerrogativas dos profissionais, regulamentando a figura do advogado associado, assegurando a autonomia contratual interna dos escritórios de advocacia e reforçando as regras para estabelecimento dos honorários nos termos da legislação civil.
A posição da OAB também foi reforçada no âmbito do STF, com o reconhecimento da legitimidade universal para o controle de constitucionalidade “contra qualquer ato normativo”, independentemente do requisito da pertinência entre o seu conteúdo e o interesse dos advogados” (ADI 3/DF); sua confirmação como “um serviço independente, de feitio único”, de “natureza jurídica sui generis”, pois “não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas” (ADI 3.026/DF) e da constitucionalidade da exigência de aprovação prévia no Exame de Ordem para o exercício da advocacia (art. 8º, IV, da Lei 8.906/94) (RE<a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3773044"> 603.583</a>), além da exigência (prevista nos arts. 34, XXIII e 37 da Lei 8.906/1994) da adimplência como requisito de alistabilidade e elegibilidade nas eleições internas da OAB (embora a norma que caracteriza o não pagamento de anuidades, multas e serviços como infração disciplinar e motivo de suspensão profissional tenha sido declarada inconstitucional (ADI 7020/DF).
Além de configurar a instituição, o STF também se converte num importante foro para a projeção da relevância da OAB como voz constitucional da sociedade civil, por não estar sujeita ao filtro da pertinência temática e demais requisitos impostos às confederações sindicais e entidades de classe com âmbito nacional. Os dados coletados sobre essa atuação, embora abranjam períodos distintos e estabeleçam critérios de classificação diferentes, trazem informações reveladoras sobre esse papel.
Para Vinny Pellegrino (2021, p. 107) que avaliou 322 ações propostas pelo CFOAB de 1988 a 2020, há um “total de 70 ações de interesse corporativo (21,74%)” (...) “contra 252 ações de interesse geral/nacional (78,26%)”, com uma alta taxa de sucesso, prevalecendo o julgamento de mérito e o resultado procedente ou parcialmente procedentes (101 ações), com apenas 37 julgadas improcedentes.
Mesmo na seleção das ações de interesse geral, Gomes et. al. (2014, p. 93) informam prevalecer um critério de fortalecimento da própria OAB, com a preferência por temas que possam assegurar visibilidade, “em contextos políticos favoráveis, de ampla discussão nacional, de forma a consolidar frente à população a sua imagem de protetora dos direitos e garantias individuais e coletivos”. Deste modo, a atuação geral reproduziria uma lógica de manutenção dos espaços conquistados e acréscimo de legitimidade, na proteção da advocacia e na representação constitucional da sociedade civil.
Resta saber como esse complexo equilíbrio entre trajetória consolidada e novidades desejadas será viabilizado nos próximos anos, diante de uma profissão em constante transformação, como mostram os dados coletados no 1º Estudo Demográfico da Advocacia Brasileira (Perfil ADV). O estudo indica que a advocacia nacional é composta por maioria feminina (51,43%) e está distribuída em diversas faixas etárias: 29,09% (acima de 51 anos), 23,07% (entre 41 a 50 anos), 28,70% (de 31 a 40 anos) e 19,14% (até 30 anos), com prevalência da denominada “Jovem Advocacia”, formada por advogados com menos de 5 anos de inscrição na OAB, que corresponde a 29,49% dos seus quadros.
A despeito da massificação, a advocacia permanece composta por ampla maioria branca (64,67%), enquanto os negros somam 33,32%, amarelos 1,56% e indígenas, 0,47%, o que revela as dificuldades de acesso à profissão. Por fim, desigualdades e distinções estão caracterizadas no padrão remuneratório: 64% dos advogados ganham até R$ 6.600/mês (34% até R$ 2.600) e apenas 5% ganham mais de R$ 26 mil, de modo que se pode afirmar que diversas classes sociais exercem a mesma profissão, compartilhando uma entidade, mas também disputando seus espaços.
Assim, além da conciliação entre um perfil corporativo e institucional, já presente na história da OAB, o desafio é contemplar as diversas expectativas e necessidades dos advogados e advogadas, assegurando igualdade e representatividade, como caminho para concretização da sua missão constitucional.
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estatua da justiça

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JOTA

As engrenagens do sistema de justiça no pós-1988 – parte 2

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