Opinião e Análise

Rodrigo de Oliveira Kaufmann

Gostaria de propor uma abordagem diferente quanto ao art. 113 do ADCT, artigo incluído pela Emenda Constitucional 95, de 2016, diante da linha de interpretação que vem sendo utilizada pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a>. Trata-se de boa oportunidade para refletir acerca das funções e das expectativas em torno do trabalho da jurisdição constitucional.
<h3>O art. 113 do ADCT</h3>
O citado dispositivo é atualmente debatido no contexto das ideias da “Constituição Financeira” e do “equilíbrio fiscal” e, nesse sentido, remeto o leitor ao excelente trabalho publicado no JOTA, no âmbito do Observatório, pelo professor Marcelo Casseb Continentino<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Segundo o art. 113 do ADCT “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro".
A <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm">Emenda 95/2016</a> é o resultado da aprovação da <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351&amp;fichaAmigavel=nao">PEC 241/2016</a>, proposta pelo próprio Poder Executivo ainda em 15.06.2016 e baseada em justificadas preocupações no restabelecimento da confiança e na sustentabilidade dos gastos e da dívida pública. Segundo a exposição de motivos daquela proposta (EMI 00083/2016 MF MPDG, de 15.06.2016) o “Novo Regime fiscal” “é essencial para recolocar a economia em trajetória de crescimento, com geração de renda e empregos. Corrigir o desequilíbrio das contas públicas é condição necessária para retirar a economia brasileira da situação crítica que Vossa Excelência recebeu ao assumir a Presidência da República”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
O “Novo Regime Fiscal” foi substituído pelo “Regime Fiscal Sustentável” trazido pela Emenda Constitucional 126, de 2022, e pela Lei Complementar nº 200, de 30.08.2023. Entretanto, o art. 113 do ADCT permaneceu incólume, permitindo que dele se extraia interpretação autônoma e independente, vinculada aos “valores” de responsabilidade fiscal e não mais ao específico regime que o condicionou em 2016.
Seu texto traria repercussão direta para os direitos fundamentais ou se limita a tratar de obrigação formal e institucional atinente exclusivamente aos temas fiscais e orçamentários?
O STF já apresenta conjunto de decisões acerca do citado artigo. Na ADI 6.102 e na ADI 5.816, por exemplo, assentou-se que o art. 113 do ADCT é de observância obrigatória para todos os entes federativos. Na ADI 6.357, decidiu-se por “afastar a exigência de demonstração e adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19”.
No RE 1.343.429, o pleno em julgamento virtual decidiu que, embora lei municipal tenha que ser declarada inconstitucional por não ter observado na fase do processo legislativo o art. 113 do ADCT, os efeitos dessa declaração seriam ex nunc em virtude de “relevante aspecto social beneficiando munícipes inseridos em contexto de especial vulnerabilidade” (tratava-se de lei que estabelecia isenção de IPTU).
Em outro caso (ADPF 968 MC), o tribunal decidiu, em um primeiro momento, que a “ausência de estudo de impacto orçamentário e a sobreposição de ações de órgãos públicos desautorizam a concessão de medida cautelar tendente a obrigar o Poder Executivo a aplicar recursos públicos” (caso que abordava a necessidade de adoção de medidas emergenciais de fomento à agricultura familiar).
O fato é que o dispositivo parece apresentar múltiplas dimensões para uma adequada interpretação, especialmente porque, embora estabeleça requisito de observância pelo legislador, poderá representar obstáculos injustificados a escolhas políticas dirigidas à diminuição do Estado e à garantia de reserva ou ampliação do espaço privado do cidadão livre à intervenção do Poder Público.
Não se discute que o impacto orçamentário de determinada política pública ou ação do Estado é elemento decisiva para sua adoção. E não é só uma questão de responsabilidade fiscal, mas, acima de tudo, de responsabilidade política e institucional do gestor público e das autoridades políticas.
Essa premissa, de tão importante, foi expandida, por exemplo, com a adoção da exigência de “análise de impacto regulatório”, prevista no art. 5º da Lei 13.874, de 20.09.2019 (a chamada lei da liberdade econômica), para fins de adoção de e regulações interventivas. Também já tive a oportunidade de defender que a mesma premissa fosse adotada pelo próprio STF em suas decisões mais ativistas, de forma a verificar previamente o impacto regulatório e orçamentário de eventuais julgados que determinassem providências executivas ou o cumprimento de políticas públicas dirigidas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A dimensão, portanto, da responsabilidade fiscal do art. 113 do ADCT com a necessidade de se estimar impacto orçamentário quando de uma nova lei que preveja ações do Poder Executivo não é aqui o ponto de preocupação. Ao contrário, essa é certamente uma evolução institucional e republicana na forma como se elabora leis no Brasil, até porque novas ações do Estado significam mais intervenção na vida do cidadão e, por isso, precisam ser avaliadas com rigor. Dessa forma, parece-nos livre de problemas a parte do artigo relativa à “criação ou alteração de despesas obrigatórias”.
<h3>Lei que estabelece 'renúncia de receita'</h3>
A questão, entretanto, se altera quando o dispositivo fala de “renúncia de receita” e, por isso, projeta menos intervenção do Estado na esfera de liberdade das pessoas.
Nesses casos, indaga-se acerca do “benefício” criado por lei para determinadas pessoas, grupos ou setores que significariam “renúncia de receita”, o que poderia levar a problemas relacionados à aferição dos critérios de razoabilidade adotados na lei ou à eventual violação ao princípio da isonomia. Essa hipótese é bastante comum em matéria tributária, quando o Congresso reduz a carga tributária para determinadas cadeias ou grupos. Uma decisão política de alívio ao bolso do brasileiro ou de um setor da economia é uma regalia ou uma benesse?
Parece equivocado tratar redução da intervenção do Estado mesmo que para determinados setores, especialmente na via tributária, como uma espécie de “benefício”. Ocorre que cobrar tributos não é um “direito” do Estado, mas apenas um consectário de seu poder de império, uma restrição à liberdade do cidadão tolerada na medida da lei.
Quando o Congresso aprova uma lei que resulta em “renúncia de receita”, está apenas reduzindo o tamanho dessa intervenção, prestando uma homenagem – por assim dizer – aos motivos seminais determinantes do nascimento do constitucionalismo e aos direitos fundamentais tomados em seu sentido de não-intervenção (1ª geração).
Nesses casos, é aplicar mal o art. 113 do ADCT, a determinação de suspensão de lei que represente “renúncia de receita”, redução de carga tributária ou diminuição de providências de intervenção na esfera privada porque não houve laudo específico quanto às estimativas de impacto orçamentário ou financeiro<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Renúncia de receita aprovada pelo Poder Legislativo se resolve no âmbito do orçamento com a necessária redução dos gastos públicos, realocação de recursos e diminuição da “máquina” estatal, medidas a serem adotadas pelo Executivo. Parece evidente que a Administração Pública não detém uma espécie de “direito adquirido” ao orçamento ou a uma receita, direito esse que seria oponível contra o cidadão especialmente diante de lei discutida e aprovada.
Parece, inclusive, que essa premissa elementar de que o Congresso tem como atribuição política também dispor acerca de espaços de “renúncia de receita” está no âmago desses julgados do STF que criam exceções a uma interpretação reducionista do art. 113 do ADCT, tal como ocorreu no RE 1435499, quando se deu efeito ex nunc à declaração de inconstitucionalidade.
A Constituição Liberal não é uma fase superada do constitucionalismo, mas sim um pilar atual para o seu correto entendimento, e isso não quer dizer que a essa noção não se deva somar também as ideias de Constituição Social, de Constituição Democrática, de Constituição Republicana etc. O mesmo se deve assumir em relação à jurisdição constitucional.
<h3>O caso da ADI 7.633 e o 'diálogo institucional'</h3>
Em abril de 2024, o ministro Cristiano Zanin concedeu, em parte, medida cautelar na ADI 7.633, proposta pelo presidente da República, para suspender a eficácia dos arts. 1º, 2º, 4º e 5º da Lei 14.784/2023 sob a alegação de não demonstração de cumprimento do art. 113 do ADCT.
A citada ADI trata de atos normativos que alteraram e prorrogaram regras específicas de incidência da contribuição previdenciária patronal (a chamada “desoneração” da folha, prorrogada até 31 de dezembro de 2027). A premissa adotada nessa decisão é de que o artigo do ADCT criou uma espécie de obrigação capaz de gerar a suspensão da lei (por inconstitucionalidade formal) aprovada sem a estimativa do impacto orçamentário, mesmo nos casos de “renúncia de receita”.
O caso, de fato, representava uma enorme divergência política entre o Poder Executivo e Poder Legislativo quanto à manutenção da chamada “desoneração” da folha, providência que inegavelmente contribuiu nos últimos anos para novas contratações e manutenção dos empregos no Brasil.
A Lei 14.784/2023, que prorrogou os “benefícios fiscais” da Lei 12.546/2011, foi desafiada com a edição da MP 1.202/2023 que revogou dispositivos da Lei 12.546/2011 e posteriormente foi alterada pela MP 1.208/2023. Nesse caso específico, como visto, a “renúncia de receita” sequer poderia ser classificada como uma surpresa ou uma espécie de “bomba no orçamento”, já que existia desde 2011.
Ao final da decisão, exortou-se os Poderes para a oportunidade “do necessário diálogo institucional”.
Em julgamento de referendo do plenário, houve pedido de vista do ministro Luiz Fux em 07.05.2024. Em nova decisão de 17.05.2024, o ministro Zanin, “com o objetivo de assegurar a possibilidade de obtenção de solução por meio do diálogo interinstitucional voltado a superar os afirmados vícios presentes na Lei nº 14.784/2023”, atribuiu efeito prospectivo à decisão proferida em 25.04.2024 de forma a somente gerar eficácia no prazo de 60 dias, decisão essa referendada pelo plenário virtual em 05.06.2024. Houve ainda prorrogação do prazo para os efeitos prospectivos para se iniciar a partir de 11.09.2024 após nova decisão monocrática, agora do vice-presidente do tribunal.
O fato é que houve o tal do “diálogo institucional” e, nesta semana, o plenário do Senado aprovou o substitutivo do senador Jaques Wagner (PT-BA) ao projeto que trata do regime de transição para o fim da <a href="https://www.jota.info/tributos/apos-derrota-no-senado-governo-deve-insistir-em-alteracoes-no-jcp-22082024">desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia</a>. O atendimento do acordo entre Poderes se deu com a aprovação do PL 1847/2024 que cria regime de graduação: desoneração integral em 2024 com a retomada gradual da tributação a partir de 2025, de forma a “reduzir o impacto na arrecadação de tributos”. Em 2025 a alíquota será de 5%, em 2026, de 10% e em 2027 de 20%.
É difícil compreender o que de bom esse desenlace trouxe: o precedente do STF (i) ajuda a normalizar a tese de que a arrecadação de tributos é um valor constitucional, (ii) consolida a ideia de que desoneração ou redução da carga tributária é um privilégio indevido da sociedade civil, de pessoas ou de setores, (iii) reforça a tese de que a tal da “estimativa de impacto orçamentário” em caso de lei que estabeleça “renúncia de receita” é obrigação material cujo descumprimento pelo Legislativo vicia a lei de inconstitucionalidade, (iv) incentiva o discurso de demonização de quem é “beneficiário” da desoneração e (v) incentiva a gastança pública com base na desculpa do “equilíbrio fiscal”, uma vez que não obriga o Executivo a cortar na própria carne ou realocar recursos no caso de renúncia de receita estabelecida pelo Legislativo.
A se confirmar esse cenário na Câmara, é suficiente nos orgulharmos do tal do “diálogo institucional” forçado pelo STF a partir da interpretação do art. 113 do ADCT quando o seu único efeito direto foi aumentar a carga tributária do setor privado e – por que não afirmar claramente – da população brasileira?
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/constituicao-financeira-equilibrio-fiscal-e-interpretacao-do-art-113-do-adct-25052024">Constituição Financeira, equilíbrio fiscal e interpretação do art. 113 do ADCT - JOTA</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1468431&amp;filename=PEC%20241/2016">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1468431&amp;filename=PEC%20241/2016</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.conjur.com.br/2020-ago-30/observatorio-constitucional-supremo-tribunal-federal-politicas-publicas-responsabilidade/">https://www.conjur.com.br/2020-ago-30/observatorio-constitucional-supremo-tribunal-federal-politicas-publicas-responsabilidade/</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> É o que parece ser hoje o entendimento do STF: ADI 5.816, relator Ministro Alexandre de Moraes; ADI 0.674, relatora Ministra Rosa Weber; ADI 6.152, relator Ministro Edson Fachin; ADI 6.080, relator Ministro André Mendonça.

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JOTA

Uma oportunidade para refletir acerca das funções e das expectativas em torno do trabalho da jurisdição constitucional

O art. 113 do ADCT e a Constituição Liberal

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