Opinião e Análise

Saul Tourinho Leal

O regimento interno do STF dispõe, no caput do art. 96, que “em cada julgamento a transcrição do áudio registrará o relatório, a discussão, os votos fundamentados, bem como ‘as perguntas feitas aos advogados e suas respostas’, e será juntada aos autos com o acórdão, depois de revista e rubricada”. O § 1º diz: “Após a sessão de julgamento, a Secretaria das Sessões procederá à transcrição da discussão, dos votos orais, bem como das ‘perguntas feitas aos advogados e suas respostas’”. Por fim, o parágrafo único do art. 124: “Os advogados ocuparão a tribuna para formularem requerimento, produzirem sustentação oral, ou ‘responderem às perguntas que lhes forem feitas pelos ministros’”.
São comandos que reproduzem outras edições do regimento interno e que estão em vigor há meio século, mas não tinham, até agora, ganhado toda a sua potência.
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Isso mudou. Dia 18 de outubro de 2023, o presidente do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">Supremo Tribunal Federal</a>, ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luis-roberto-barroso">Luís Roberto Barroso</a> – que tem uma consistente e festejada formação acadêmica nos Estados Unidos – inaugurou uma nova dinâmica de julgamentos realizados em sessão plenária. Agora, datas serão agendadas apenas para as sustentações orais e, em data posterior, o tribunal deliberará acerca do caso.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> No momento das sustentações, ministros e ministras poderão formular indagações aos advogados e advogadas que estiverem sustentando. A dinâmica passa a ser mais dialógica.
Essa metodologia se comunica melhor com o que há no resto do mundo. Na África do Sul, o advogado tem dez minutos para expor seus argumentos sabendo que, a partir daí, será cordialmente interrompido pelos julgadores da Corte Constitucional sempre que dúvidas ou quaisquer colocações oportunas vierem à mente.
Em 1997, a Corte Constitucional sul-africana julgava o caso Soobramoney v Minister of Health, um marco acerca das formas de concretização do direito à saúde. Questionamentos e respostas entre o procurador do Estado e o juiz da Corte, Albie Sachs, deram a impressão de que a discussão se tornava mais acirrada. Quem recorda o episódio é o próprio Albie Sachs: “Lembro-me vividamente de uma altercação entre mim e o advogado sobre esta questão. Fiz-lhe a seguinte pergunta: ele queria dizer que alguém que morasse nas montanhas poderia ir a juízo e dizer que queria água de torneira, mesmo que o dinheiro gasto para atender sua reivindicação particular pudesse ser usado para fornecer água a dez mil pessoas moradoras nas planícies abaixo?”.
O procurador respondeu de forma inapropriada. Ele disse que o argumento do juiz Albie Sachs não passava de um “argumento emocional”. O juiz não se intimidou e mostrou que, na arena dos debates, é a força do melhor argumento que há de triunfar.
“Não, propus, fazia parte da promoção do melhor uso de recursos escassos para efetivação de direitos sociais e econômicos. E perguntei eu, se somente os indivíduos que tiverem os cotovelos mais pontudos (e os melhores advogados) devem conseguir casa, água e eletricidade, e além disso, a Constituição deve ser interpretada de forma a conferir a cada juiz de cada tribunal o direito e o dever de decidir quem deve ter acesso prioritário a bens sociais escassos?”, rememora Albie Sachs.
O procurador replicou que sim, “se os indivíduos em questão estiverem abaixo do nível de existência compatível com a dignidade, seus direitos estavam sendo violados”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Nos Estados Unidos, essa tradição é bem mais longeva. Na década de 1920, Charles Evans Hughes, que havia sido juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos – e para lá voltaria como Chief Justice – afirmou que a sustentação oral, nesse modelo, ajuda os julgadores a “separar o joio do trigo” e que, na maioria dos casos, “a impressão que um juiz tem ao final de uma defesa oral conduz a sua posição final”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Essa interação pode reclamar dos juízes e juízas do Supremo maior abertura para a reconsideração de seus votos. Está aí mais uma valia da mudança e há exemplos históricos nesse sentido. Estreando a sua bem-sucedida carreira de advogada, Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos, ocupava a tribuna numa Corte inteiramente masculina, quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento e disse: “A palavra ‘mulher’ não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos”. Disse isso para silenciá-la. Em vão. Ruth respondeu, de improviso: “Nem a palavra ‘liberdade’, Excelência”. Ganhou o caso.
Os exemplos pululam na história. O Chief Justice John Roberts, dos Estados Unidos, certa feita anotou algo que merece a nossa atenção. Disse ele: “Minha principal conclusão depois de um ano estando do outro lado do balcão é que o debate oral é terrivelmente importante”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Acerca desse modelo mais cooperativo, tem-se também Ruth Bader Ginsburg a dizer: “o melhor argumento, na sua melhor parte, é a troca de ideias sobre o caso, um diálogo ou discussão entre o tribunal e o advogado”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Entre nós, esse diálogo é o próprio dever de cooperação previsto no Código de Processo Civil, no art. 6º, que diz: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.
É claro que a mudança pode esbarrar no medo do novo, mas, para isso, há remédio. Em Israel, há dois muros opostos na entrada do edifício-sede da Suprema Corte. O primeiro foi erguido com rochas de Jerusalém. O outro, é claro, liso e macio. Ficam frente a frente e representam o diálogo entre tradição e modernidade. Um se alimenta do outro e, canalizando reciprocamente essa energia, há a escadaria de três lances que liga a base ao topo do prédio, sendo a responsável pela interconexão entre o tradicional e o moderno.
Deve haver na Suprema Corte líderes capazes de operarem essa correlação de forças, funcionando como uma escadaria que, partindo de baixo, toca o ápice das potencialidades transformadoras do tribunal, mantendo harmônicas as distinções inerentes à nossa pluralidade e equilibrando o tradicional com o moderno.
Recentemente, o STF estava debruçado, já nessa nova metodologia, sobre as sustentações orais do chamado “caso das Testemunhas de Jeová”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, quando o ministro Flávio Dino indagou à patrona que ocupava a tribuna, a advogada Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro – sem dúvida, uma das mais brilhantes do nosso tempo: “E, eu indago à senhora, a senhora pode vender seu rim? A senhora pode vender sua córnea? A senhora pode colocar um anúncio na internet ‘estou vendendo meu rim’, ‘estou vendendo minha córnea?’ Por que que eu faço essa pergunta de colisão radical aos direitos fundamentais? Para lhe dizer que o caso não é tão simples quanto aparenta”.
A advogada respondeu: “É porque não há o direito fundamental de gerar lucro a partir da alienação do corpo. Mas eu tenho o direito fundamental de professar a minha crença e de me autodeterminar segundo a crença que eu professo. Então talvez a comparação, sei que foi no limite, esgarçando fundamento, mas talvez a comparação não revele a sinceridade, a honestidade e a centralidade”.
Debates como esse passam a fazer a história da jurisdição constitucional da forma mais nobre possível, por meio daquilo que eleva a humanidade: a discussão cordial – mesmo que assertiva – sobre questões essenciais à comunidade, a partir de parâmetros objetivos como os comandos constitucionais e os precedentes da Suprema Corte.
A história da humanidade tem sido assim, feita entre raízes e cometas, ambos necessários, mas com propósitos distintos. Coube à gestão do presidente Luís Roberto Barroso ser a passagem segura que opera com sabedoria a correlação de forças entre a tradição e a modernidade no que diz respeito à metodologia das sustentações orais no plenário do Supremo Tribunal Federal.
Temos mais processos tramitando no STF do que boa parte das Cortes do mundo. Temos mais juristas do que a maioria das nações. Há uma juventude repleta de talento forjada em moot courts espalhada em todo o país. Esses jovens estão prontos para assumir a grave responsabilidade de consolidarem essa mudança não apenas para as presentes, mas, especialmente, para as futuras gerações.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A nova metodologia foi iniciada no julgamento da ARE 1.309.642, que analisa a constitucionalidade de regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sachs, Albie. Vida e Direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva/IDP, p. 168.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Charles Evans Hughes, The Supreme Court of the United States, 61, 63 (1928). Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument, David C. Frederick, 2003, West.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a>Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument, David C. Frederick, 2003, West, p. 3.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ginsburg, Remarks on Appelate Advocacy, 50 S.C. L. Rev. At 569. Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument, David C. Frederick, 2003, West.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> RE nº 979.742 (Rel. Min. Luís Roberto Barroso), Tema 952: “Conflito entre a liberdade religiosa e o dever do Estado de assegurar prestações de saúde universais e igualitárias”. RE nº 1.212.272 (Rel. Min. Gilmar Mendes), Tema 1069: “Direito de autodeterminação dos testemunhas de Jeová de submeterem-se a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão da sua consciência religiosa”.

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JOTA

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