Opinião e Análise

Cássio Casagrande

A recente revelação de condições de trabalho análogas à escravidão, em um setor aparentemente moderno da vinicultura gaúcha, causou bastante indignação à sociedade brasileira. Como era de se esperar, os beneficiários dos frutos do labor da mão de obra degradante correram a afirmar que “não tinham conhecimento” dos fatos, empurrando a responsabilidade para a empresa terceirizada que agenciou e controlava diretamente os trabalhadores.
Em tempos de “responsabilidade social do empresariado”, “due diligence” e “ESG”, é difícil engolir as escusas patronais, sempre suscitadas em casos vexatórios que tais. Não é possível que os vinicultores não tenham tido o menor cuidado em saber quem eram os trabalhadores, de onde vinham e em que condições estavam colhendo e transportando suas uvas. Ao negar sua responsabilidade direta, quando processadas em ações civis públicas, empresas autuadas por trabalho degradante invariavelmente seguem essa mesma linha e apelam à tese da “responsabilidade subsidiária”, jurisprudência consagrada pelo Tribunal Superior do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tst">TST</a>) na Súmula 331, de frágil consistência doutrinária, diga-se.
A responsabilidade subsidiária, como se dessume da própria etimologia da expressão, pressupõe que o ônus essencial da gestão da mão de obra é do contratante imediato, ainda que o trabalho se dê, fisicamente, dentro das instalações do tomador de serviços. Algumas poucas decisões da Justiça do Trabalho contornaram a súmula em casos de trabalho análogo à condição de escravo, decretando a responsabilidade solidária naquela circunstância específica, mas essa jurisprudência, além de rara, ainda é incipiente e não foi sufragada pelo TST, havendo insegurança jurídica em torno da tese (como exemplo, processos 0010474-36.2016.5.18.0004 do TRT18 e 001345-20.2010.5.01.0050 do TRT2).
Debate semelhante foi travado nos EUA durante os anos 1990, quando um episódio espantoso e paradigmático levou a um maior rigor nos casos de cadeias de produção que se beneficiam de trabalho degradante ou análogo à escravidão. Trata-se do caso “El Monte”, referência a uma cidade da Califórnia, ocorrido em 1995, onde mais de 70 trabalhadores tailandeses trazidos ilegalmente aos EUA, a grande maioria do sexo feminino, eram mantidos literalmente em cárcere privado, dentro de uma confecção de roupas do tipo sweatshop, onde viviam e trabalhavam por mais de 16 horas diárias, com má alimentação e péssimas condições de higiene. Os trabalhadores não tinham liberdade de movimento e a edificação em que eram mantidos tinha, inclusive, muros altos e arame farpado. O pagamento era de US$ 0,69 a hora, sem direito a horas extras ou descanso semanal.
Mais chocante para a opinião pública, na época, foi saber que as roupas produzidas pelos tailandeses escravizados na sweatshop eram compradas por grifes bastantes conhecidas dos americanos e vendidas em grandes malls e shopping centers. O caso foi desvendado, então, pela Procuradoria do Trabalho do Departamento de Relações Industriais do Estado da Califórnia. Curiosamente, o departamento era chefiado na época por Julie Su, nomeada na semana passada por Joe Biden para o cargo de Secretária do Trabalho do Department of Labor do governo federal, equivalente ao Ministério do Trabalho.
Após a descoberta, e para além das sanções administrativas e penais impostas pelo governo da Califórnia, uma ONG daquele estado que defendia imigrantes asiáticos (Asian Pacific American Legal Center) ajuizou uma ação coletiva na Justiça Federal contra todas as empresas da cadeia de produção, inclusive aquelas que encomendavam as roupas confeccionadas pelos tailandeses, a preços bastante abaixo do mercado. De forma engenhosa, os advogados da entidade invocaram uma lei anticorrupção dos anos 1970, a Racketeer Influenced and Corrupt Organizations (Rico) para defender a responsabilidade solidária de toda a cadeia de produção. As 11 companhias processadas, temendo a dura aplicação desta lei, entraram em acordo para pagar aos trabalhadores cerca de US$ 4 milhões.
A partir de então, o próprio governo federal, na época liderado por Bill Clinton, acabou encampando a tese e orientando os procuradores federais a invocar a norma em casos de trabalho degradante ou análogo à escravidão, o que fez com que as empresas americanas passassem a examinar com muito mais cautela suas cadeias de produção.
A repercussão desse caso foi tamanha que o próprio Congresso, em 1999, editou uma lei sobre trabalho escravo contemporâneo, deixando de exigir, para sua caracterização, o cerceio físico da liberdade. Além disso, a norma (The Victims of Traficking and Violence Act) também criou um novo tipo de visto, a ser outorgado para trabalhadores imigrantes trazidos ilegalmente para trabalhar nos EUA em regime de exploração, sem direitos trabalhistas, de modo que estes trabalhadores estrangeiros possam permanecer legalmente no país até o fim dos processos em que litigam para receber seus haveres. Anteriormente à norma, esses trabalhadores poderiam ser deportados imediatamente após uma ação fiscal.
Da mesma forma que ocorreu nos EUA, o Congresso brasileiro deveria elaborar normas mais duras de responsabilização solidária das empresas que se beneficiam, ainda que indiretamente, do trabalho escravo. A responsabilidade subsidiária, ou, ainda, a mera criminalização da conduta, como se tem visto nas últimas décadas, parece insuficiente a evitar casos como o que ocorreu em algumas das mais renomadas produtoras de vinhos da Serra Gaúcha.

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JOTA

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