Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Quando faltavam 11 meses para o término do seu segundo mandato, Barack Obama indicou para a Suprema Corte o juiz federal Merrick Garland, na vaga aberta com o falecimento do conservador Antonin Scalia. Os republicanos tinham, então, o controle do Senado por pequena margem, e o então presidente nomeou Garland porque este era um liberal bastante moderado, que poderia quebrar a resistência de alguns republicanos mais centristas.
Mas o plano deu errado. Sob o comando de Mitch McConnell, velha raposa política e então presidente do Senado, a indicação de Obama sequer foi apreciada, sob a alegação (estapafúrdia) de que seria mais prudente aguardar a manifestação da vontade do eleitorado nas eleições presidenciais de 2016, na qual Trump despontava como favorito. O resto da história é sabido. Os republicanos venceram a eleição, e tomaram a vaga na Suprema Corte para si, nomeando o juiz Neil Gorsuch para o cargo. Depois, em 2020, quando a juíza Ruth Bader Ginsburg faleceu poucas semanas antes das eleições presidenciais, os republicanos esqueceram a regra informal que haviam criado em 2016 e correram para aprovar o nome de Amy Barrett a toque de caixa.
Quando Joe Biden ganhou a eleição, indicou Merrick Garland para o cargo de procurador-geral dos Estados Unidos (United States Attorney General), o mais alto cargo na estrutura do Departamento de Justiça do Poder Executivo federal, responsável não apenas por defender judicialmente a administração, mas também por ajuizar ações penais em nome do governo federal. O posto é, aproximadamente, uma mistura das funções que no Brasil são divididas entre o advogado-geral da União e o procurador-geral da República.
A designação foi uma espécie de prêmio de consolação para a bela carreira de Merrick Garland. Por uma ironia do destino, ele é agora o homem responsável por decidir se Donald Trump será ou não processado criminalmente por sua participação nos atos de 6 de janeiro de 2021 que resultaram na invasão do Capitólio e na morte de integrantes do sistema de segurança do Poder Legislativo. Esse “plot twist” poderia sugerir que Garland, que viu sua vaga para a Suprema Corte escorrer entre os dedos devido à chicana do Partido Republicano, poderia estar com sangue nos olhos e sede de vingança.
Mas a realidade é bem diferente, e muitos democratas acreditam (ou temem) que o procurador-geral, pela sua natureza prudencial e apaziguadora, somente processará Trump se houver uma prova irrefutável e incontornável da participação do ex-presidente na rebelião de 6 de janeiro, um “smoking gun”, como se diz por aqui.
Até o momento, não há uma investigação formal contra Trump no Departamento de Justiça do governo federal. Por se tratar de uma invasão, com atos de depredação e homicídios cometidos contra e dentro da sede do Poder Legislativo, a investigação vem sendo conduzida por uma comissão especial de inquérito composta por parlamentares da Câmara dos Representantes (House), com poderes semelhantes aos das nossas CPIs. Tal como ocorre no Brasil, a comissão pode produzir material investigativo e apresentar um relatório conclusivo, mas não dispõe do poder de impor sanções ou propor ações penais, que são privativas da Procuradoria federal, nesse caso.
A comissão de inquérito que investiga a invasão do Capitólio já ouviu mais de mil testemunhas e está em fase final de andamento; o seu relatório final deverá ser apresentado e encaminhado em breve para as mãos de Garland, a quem caberá tomar uma das seguintes providências: indeferir liminarmente o dossiê por não vislumbrar elementos que caracterizem em tese um crime de competência da Justiça Federal; determinar novas investigações e diligências e, ao final, ajuizar ação penal ou arquivar o procedimento por falta de elementos de prova consistentes. A decisão não é meramente “técnica”, pois no sistema de justiça dos Estados Unidos a promotoria, em qualquer grau, tanto no nível estadual como no federal, tem certa margem de discricionariedade política para ajuizar uma ação penal.
Mesmo sob aspectos técnicos, haverá elementos de subjetividade a serem apreciados por Garland. A comissão parlamentar do 6 de janeiro já demonstrou que a negativa de Trump em reconhecer o resultado das eleições foi um fator decisivo a motivar a rebelião dos seus seguidores, que marcharam sobre o National Mall no dia da homologação do pleito pelo Congresso. Mas sua participação direta na cadeia de responsabilidades que levaram ao trágico desfecho é um elemento sujeito à ampla avaliação da “culpa” em sentido penal.
Outra linha bastante forte na comissão de investigação é omissão do presidente derrotado, que, mesmo ciente de que o ato em seu apoio degringolara para a violência, nada fez de imediato para conter sua turba e evitar o trágico desenlace. Porém, provar relação de causa e efeito entre inação e fato dela decorrente é muito mais difícil do que provar o nexo causal entre ação e consequência.
Quanto à discricionariedade política, pesará na decisão de Garland o fato de que em novembro haverá eleições de midterm para o Congresso, e uma ação penal contra Trump pode atiçar a militância cada vez mais radicalizada do movimento MAGA que tomou conta do Partido Republicano, para a qual o ex-presidente é retratado como um perseguido político pela administração dos democratas.
Por outro lado, caso decida por não processar o ex-presidente, o procurador-geral será acusado pelos seus próprios partidários de fraqueza e de não reprimir atos atentatórios ao regime democrático, condescendendo, de forma indireta, com comportamentos intoleráveis em um Estado de Direito, que deslustrariam sua respeitada biografia. Merrick Garland possivelmente nunca imaginou que a Espada de Dâmocles lhe pesaria sobre a cabeça.

damocles

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Em ironia do destino, futuro do ex-presidente dos EUA está nas mãos do procurador-geral, Merrick Garland

Trump poderá ser processado pelos atos de 6 de janeiro?

Em ironia do destino, futuro do ex-presidente Donald Trump está nas mãos do procurador-geral dos EUA, Merrick Garland