Opinião e Análise

Cássio Casagrande

MICROPEÇA EM ATO ÚNICO
Entrevista de um jovem advogado recém-formado em direito para uma oportunidade de trabalho
JOVEM ADVOGADO: Bom dia, eu me inscrevi para essa vaga de advogado trainee anunciada no LinkedIn e fui chamado para uma entrevista.
SECRETÁRIA: Ah sim, o Dr. Arnado Pluto Crata já vai atendê-lo!
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Depois de duas horas de espera
ARNALDO PLUTO CRATA: Bom dia, meu jovem! Seja bem-vindo à firma Pluto Crata Advogados Associados. Já vi o seu currículo. Fantástico! Formado na UERJ! Três Monitorias! Fala inglês, francês e alemão! Estágios na Defensoria, Justiça Federal e Ministério Público do Estado! Formado com média final 9,8 e orador da Turma! Passou na OAB de primeira. Que maravilha! Vi que até já publicou artigos no Conjur e no JOTA. E ainda fez trabalho voluntário no Haiti! Perfeito, perfeito. Já está contratado.
JOVEM ADVOGADO: Mas, Doutor, e a entrevista?
ARNALDO PLUTO CRATA: Que entrevista? Não precisa de entrevista, com currículo desse não precisa de entrevista! Só queria ver se o senhor tem boa aparência, se é uma pessoa distinta, se não tem certos trejeitos, sabe? Não tem entrevista, já está contratado! Pode ir ao RH.
JOVEM ADVOGADO: Mas Doutor, nem conversamos sobre o salário, vale-transporte, essas coisas.
ARNALDO PLUTO CRATA: Salário? Vale-transporte? Mas que mentalidade pequena! Aqui não tem salário meu jovem! O Senhor está sendo admitido como sócio do escritório. O Senhor será o patrão de si mesmo. Receberá prolabore e participação nos lucros. E ainda terá estagiário ao seu dispor. Meus parabéns! Que grande conquista, assim tão jovem, 23 anos, não é?
JOVEM ADVOGADO: Sócio?? Como assim doutor?? Eu não tenho dinheiro para comprar cotas desta sociedade. Desculpe, deve ser engano. Achei que estavam oferecendo um emprego no LinkedIn. Deve custar caro ser sócio dessa firma de advocacia... Vi que são seis andares no prédio, dezenas de advogados, defendem causas no STJ e STF.  Sei que o senhor é um dos maiores advogados do estado, vi na internet que já foi agraciado com a Ordem do Mérito Judiciário pelo TJ. Não tenho capital para integralizar cotas e...
ARNALDO PLUTO CRATA (interrompendo): Capital? Que capital? O senhor não pagará cotas. Será um sócio de serviço. Em reconhecimento ao seu currículo, lhe daremos uma cota. Na verdade, parte de uma cota: 0,01%. É pouco, eu sei, mas com o tempo o senhor poderá comprar mais cotas... mais 0,01% a cada três ou quatro anos. Conhece o ditado? “De grão em grão a galinha enche o papo!"
JOVEM ADVOGADO: Parece bom, quer dizer, vou receber 0,01% do faturamento deste escritório, já deve render um bom dinheiro.
ARNALDO PLUTO CRATA: Calma meu jovem, não é bem assim. O senhor cursou Direito Empresarial, sabe que nos termos do art. 1.007 do Código Civil, a sociedade pode fixar critério distinto de participação nos lucros. Aqui aplicamos esse dispositivo. Há uma fórmula de pontos, consideramos vários elementos: sua dedicação, o rendimento da sua equipe, o número de dias de sol no ano, a taxa de juros do BC, a cotação das commodities na Bolsa de Nova York e o horóscopo chinês.
JOVEM ADVOGADO: O senhor pode me explicar melhor como funciona essa fórmula? Parece complicado, não? Depois que me associar, como faço para acompanhar a contabilidade da nossa sociedade, só para ter uma ideia de quanto vou ganhar?
ARNALDO PLUTO CRATA: Calma, meu jovem, que afoiteza! Essa fórmula é sigilosa – sigilo empresarial, o senhor deve ter estudado. E por enquanto será um sócio minoritário, a contabilidade só fica disponível para o Conselho de Administração.
JOVEM ADVOGADO: Mas quem integra o Conselho?
ARNALDO PLUTO CRATA: Eu, meu filho Arnaldo Pluto Crata Junior e meu neto Arnaldo Pluto Crata Neto.
JOVEM ADVOGADO: Mas não tem um artigo no mesmo Código Civil que diz que qualquer sócio pode ter acesso aos livros e...
ARNALDO PLUTO CRATA: Há controvérsias, há controvérsias. Calma, meu jovem, tudo ao seu tempo.
JOVEM ADVOGADO: Mas eu preciso ter uma ideia de quanto receberei, quero sair da casa dos meus pais, terei que pagar boletos.
ARNALDO PLUTO CRATA: Fique tranquilo, o senhor receberá um prolabore fixo e mais um “adiantamento de participação nos lucros”.
JOVEM ADVOGADO: Mas quanto dá isso em média?
ARNALDO PLUTO CRATA: Garanto que pelo menos R$ 2.500 por mês. Um valor expressivo para um jovem bacharel, não? E no final do ano tem o saldo de participação nos lucros. Ano passado, os recém-admitidos tiraram outros R$ 2.500 extras em dezembro! R$ 2.500 limpinhos! Maravilha, não?
JOVEM ADVOGADO: Isso é um 13º salário?
ARNALDO PLUTO CRATA: Claro que não, meu jovem, foi coincidência!
JOVEM ADVOGADO: E férias, tem férias?
ARNALDO PLUTO CRATA: Meu jovem, advogado não tira férias, já tem os dias do recesso forense. Férias é para juiz e membros do MP, que aliás tem 60 dias, um absurdo!
JOVEM ADVOGADO: Mas o senhor nunca tira férias?
ARNALDO PLUTO CRATA: Na verdade, passo três meses em Paris todo verão. Detesto o calor. Administro o escritório pelo celular enquanto passeio pelo Jardim de Luxemburgo.
JOVEM ADVOGADO: E qual horário de trabalho tenho que cumprir?
ARNALDO PLUTO CRATA: Que horário? Não tem horário. É totalmente flexível, pode até trabalhar de casa dois dias por semana. Já disse, agora o senhor é patrão! Basta cumprir os prazos e executar tarefas que o sistema do escritório lhe assinalar. Nada que não possa ser feito em 12 horas de trabalho por dia e um outro fim de semana.
JOVEM ADVOGADO: Puxa Dr. Pluto Crata, muito obrigado, como o senhor é generoso! Nunca pensei que pudesse me tornar sócio de um grande escritório assim tão rapidamente! Meus pais nem vão acreditar.
Dois anos depois
ARNALDO PLUTO CRATA: Bom dia, meu jovem! Infelizmente, não trago boas notícias... Nossa sociedade chegou ao fim...
JOVEM ADVOGADO: O que aconteceu? O escritório vai fechar?
ARNALDO PLUTO CRATA: Claro que não, o escritório vai muito bem, obrigado. Porém, a carteira de clientes da sua equipe vai mal. Creio que vocês não se empenharam o suficiente. Como você deve saber, perdemos o banco Kripto Fikto. Então precisamos reduzir nosso pessoal. Seus serviços não são mais necessários. Passar bem.
JOVEM ADVOGADO: Como assim? Eu sou um sócio, só posso ser excluído por falta grave e precisa de uma assembleia para me desligar, conforme determina o art. 1.030 do Código Civil.
ARNALDO PLUTO CRATA: (rindo com a mão sobre sua barriga proeminente): Hahahahahaha, temos uma cláusula no contrato social que dispensa isso. Está desligado, meu jovem! Passar bem!
JOVEM ADVOGADO: Mas como? Isso não é possível, Dr. Pluto Crata, o senhor está me tratando como um empregado, está me despedindo!
ARNALDO PLUTO CRATA: Então vá procurar os seus direitos meu jovem! Vá procurar os seus direitos hahahahahaha!
JOVEM ADVOGADO: Pois vou sim! Amanhã mesmo vou contratar um advogado trabalhista e ajuizar uma ação na Justiça do Trabalho! Vocês disseram que eu era um sócio, mas me trataram durante todo esse tempo como empregado e agora me mandam embora sem mais nem menos! Vou pedir vínculo na Justiça do Trabalho! Vou pedir tudo, férias, décimo terceiro, horas extras, FGTS...
ARNALDO PLUTO CRATA: Vínculo? CLT? Hahahahaha! Não pode mais! Não pode mais! Jovem, não acompanha a jurisprudência do Supremo? Não pode mais questionar isso na Justiça do Trabalho! Hahahahaha!
JOVEM ADVOGADO: Duvido! Duvido! Isso seria totalmente absurdo, está na Constituição, art. 114, cabe à Justiça do Trabalho resolver conflitos decorrentes das relações de trabalho!
ARNALDO PLUTO CRATA: Hahahahaha! Está desatualizado, jovem! O STF interpretou diferente, disse que o que está escrito na Constituição não está escrito! O Supremo tem a última palavra, então... se disse que não está escrito, então não está escrito, apesar de estar escrito! Entendeu? Hahahahaha! Não estudou o livro do Barroso sobre interpretação e aplicação das normas constitucionais? Que lástima, hahahaha!
JOVEM ADVOGADO (chorando): Não é possível, não é possível! O senhor está mentindo! E o princípio da primazia da realidade?  Eu estudei isso na faculdade, todos os doutrinadores o mencionam!
ARNALDO PLUTO CRATA (gargalhando às lágrimas): Hahahaha! Esse princípio não existe mais! Foi substituído pelo “princípio da primazia da liberdade negocial”!
JOVEM ADVOGADO (com voz embargada): Não pode ser, esse princípio não existe, nenhum doutrinador fala disso!
ARNALDO PLUTO CRATA: De fato, aqui você tem parcial razão. Esse princípio não existia – até ontem! O Gilmar Mendes acabou de inventá-lo. Se não acredita, leia o voto dele na Reclamação 66.335. Garoto, deve saber que o ministro Gilmar é doutrinador e magistrado ao mesmo tempo, então ele pode criar um princípio e citar a si próprio! Quem sabe um dia você chega lá também. Mas, por enquanto, “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Enfim, meu caro, advogado sócio não pode mais questionar o vínculo, e a tese, aliás, é do próprio Barroso, tese do Barroso! Se tiver dúvida, consulte a Reclamação 56.285. Quer discutir com o Barroso, jovem advogado? Quem é você para discutir com o Barroso? Presidente do STF! Se o Barroso disse, está dito! A Constituição é aquilo que o Barroso diz que ela é! Última palavra! Última palavra! Hahahahaha!
JOVEM ADVOGADO (aos prantos): Mas, mas, isso não é certo, justo e legítimo – nem constitucional! (e se retira com o rabo entre as pernas, enxugando as lágrimas).
(TRISTE) FIM

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JOTA

Ou como a carreira promissora de um jovem advogado foi abreviada pelo STF

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