Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Bessemer é uma cidadezinha de 26 mil habitantes na periferia de Birminghan, Alabama. É um dos lugares mais pobres e violentos dos Estados Unidos. A decadência começou nos anos 1980/90, quando as siderúrgicas da região fecharam as portas. O desemprego é alto e a taxa de crimes contra a pessoa é de 29,05 por mil habitantes (a média nacional é de 4,00 e a estadual de 5,11 por mil habitantes).  Foi nessa triste paragem do Deep South que a Amazon instalou no início do ano passado um gigantesco terminal de logística e distribuição, prometendo tirar o lugarejo do marasmo econômico e social, com a contratação de cerca de 6 mil empregados.
Os trabalhadores da região ficaram empolgados, sobretudo porque a Amazon paga, além de bons planos de saúde, um razoável salário base de U$ 15,00 por hora (o salário mínimo federal é de 7,25 e no Alabama não há mínimo estadual, ao contrário da maioria dos demais Estados). No entanto, logo veio a realidade: condições de trabalho duríssimas, sob ritmo intenso e frenético, monitorado por câmeras e chips acoplados ao uniforme; o tempo para ir ao banheiro é cronometrado, as cobranças contínuas pelo cumprimento de prazos são estressantes, ordens são transmitidas friamente por equipamentos eletrônicos, sem possibilidade de diálogo, turnos de trabalho são alterados ou prorrogados com aviso de menos 24 horas; empregados são despedidos por mensagem no celular quando questionam a rotina de trabalho, acidentes de trabalho evitáveis ocorrem devido a estafa, os galpões da empresa são quentes e abafados, ao ponto de alguns trabalhadores desmaiarem em dias mais tórridos (no norte do Alabama faz um calor do demônio durante o verão).
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Além disso, em meados do ano a COVID contaminou muitos empregados dentro da instalação; com a quarentena e as pessoas em casa, as encomendas aumentaram, a Amazon faturou alto e as cobranças por performance no trabalho se intensificaram ainda mais.  Empregados mais experientes que já trabalharam para empresas onde havia sindicatos organizados (indústria siderúrgicas e metalúrgicas), insatisfeitos com as precárias condições de trabalho na gigante do varejo, começaram a se mobilizar. O sonho parecia impossível: nenhum dos 800 mil empregados da Amazon em solo americano é sindicalizado, em razão de uma agressiva política antissindical da empresa, como também da alta taxa de rotatividade da sua mão-de-obra, o que dificulta a criação de laços de solidariedade laboral.
Nos Estados Unidos, a representação sindical é determinada por estabelecimento e os acordos coletivos precisam ser feitos em cada filial de uma grande empresa (“bargain unit”). Os trabalhadores precisam decidir, localmente, se querem ser representados por um sindicato determinado. Uma agência do governo federal, a National Labor Relations Board, promove uma eleição entre os trabalhadores, desde que pelo menos 30% dos empregados de um estabelecimento manifestam interesse preliminar em ser representados por uma entidade sindical. Caso metade mais um vierem a votar favoravelmente à sindicalização na eleição organizada pela NLRB, a empresa é obrigada a negociar um acordo coletivo com o sindicato representativo da categoria, que no caso da Amazon é o Retail, Wholesale and Department Store Union (Sindicato dos Trabalhadores no Comércio Varejista, Atacadista e em Lojas de Departamento).
O problema é que a legislação americana absurdamente permite que o empregador promova uma campanha antissindical entre os trabalhadores, para tentar convencê-los a votarem contra a sindicalização. Não é preciso muita imaginação para perceber que esta é uma porta aberta para os mais variados abusos patronais, que não raro usam as campanhas antissindicais para ameaçar e amedrontar os trabalhadores com demissão caso autorizem a representação sindical, difamar os sindicalistas e perseguir ou desligar lideranças que tentam organizar os empregados. Um exemplo claro disto é relatado no documentário “American Factory” (Indústria Americana), vencedor do Oscar em 2020.
<blockquote class="jota-article__eye">A Amazon é conhecida por desenvolver campanhas antissindicais extremamente agressivas e o fato de que nenhum sindicato tenha conseguido representar seus trabalhadores em suas centenas de estabelecimentos fala por si só.</blockquote>
A gigante do comércio eletrônico chegou a desenvolver um vídeo para seus gerentes, instruindo-os a identificar e conter lideranças trabalhistas em suas unidades. Quando o material veio a público, o escândalo foi tão grande que a empresa passou a dizer que não mais o usaria. O vídeo vergonhoso pode ser visto <a href="https://www.youtube.com/watch?v=uRpwVwFxyk4" target="_blank" rel="noopener noreferrer">neste link</a> (chamo a atenção para o trecho “não somos contra o sindicato, mas tampouco somos neutros”).
O vídeo pode ter sido abandonado como material de instrução, mas as táticas antissindicato continuam a pleno vapor em Bessamer. A empresa tem reunido pequenos grupos de quinze trabalhadores, para “convencê-los” das “desvantagens” em se sindicalizar. Alegam que os empregados terão que pagar altas contribuições compulsórias para os sindicatos previstas em acordos coletivos.
A alegação é falsa. Embora a legislação federal (e a jurisprudência da Suprema Corte) autorize a cobrança vinculante de contribuições sindicais (“agency fees” ou “dues”) em empresas privadas para evitar os “free riders”, os Estados podem excepcioná-las e esse é o caso do Alabama, governado há muito tempo por políticos conservadores com legislação antisindicato (“right to work State”). Há testemunhos de que os gerentes da filial dizem que o dinheiro das contribuições será desviado pelos sindicalistas para comprar carros luxuosos e pagar refeições em restaurantes caros. Esses gerentes certamente não estão contando aos trabalhadores que empregados sindicalizados da indústria do transporte e logística (uma das principais áreas de atuação da companhia) ganham 34% a mais do que os não sindicalizados.
As táticas de repressão ao movimento sindical da Amazon têm funcionado muito bem até agora em todo o país, mas a votação no Alabama pode abrir uma fissura no casco da corporação, por três motivos. O primeiro é que os trabalhadores, na maioria negros (a região tem alta densidade de afrodescendentes), estão muito insatisfeitos com as péssimas condições de trabalho e com o tratamento pouco amistoso que têm recebido das chefias. As reivindicações tem sido apresentadas pelas lideranças trabalhistas como uma luta por direitos civis, ingrediente com forte apelo mobilizador naquela comunidade. Várias mulheres negras estão à frente do movimento.
O segundo fator é que a NLRB, em razão da pandemia, determinou que a votação seja feita pelo correio, o que dificulta a pressão das chefias sobre os trabalhadores no local de trabalho durante a votação. A Amazon recorreu administrativamente da decisão, perdeu e agora seus advogados pretendem acionar o judiciário (Trump também não queria que os eleitores votassem pelo correio, e isso certamente não é uma coincidência).  Como observou de forma irônica um comentarista da CNBC, “uma das razões pela qual a Amazon ficou tão popular nesse ano é porque as pessoas querem fazer tudo de casa pelo computador e pelo correio, mas a empresa não quer que os seus trabalhadores votem dessa forma.”
A terceira variável que pode alterar o rumo da organização dos trabalhadores da Amazon é evidente: mudou o inquilino na Casa Branca. O Partido Democrata e Joe Biden estão apoiando a causa dos trabalhadores da Amazon. O Presidente do Retail, Wholesale and Department Store Union, Stuart Appelbaum declarou que esteve reunido com um assessor graduado de Biden, assegurando que o governo federal considera a sindicalização na planta de Bessemer um passo fundamental na revitalização dos sindicatos americanos.
Se os trabalhadores votarem pela sindicalização no Alabama, será difícil para a Amazon conter o ímpeto da mobilização nos demais Estados. Essa é uma disputa altamente simbólica:  trabalhadores pobres e negros de um dos lugares menos desenvolvidos dos EUA contra Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo. Que seja uma luta de Davi contra Golias.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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JOTA

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