Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Você e eu provavelmente já comemos um chocolate cujo cacau foi cultivado, colhido e processado na Costa do Marfim. E, possivelmente, já degustamos um chocolate com gosto amargo de trabalho infantil e escravo, comum àquele “terroir”. O país da África Ocidental produz dois terços de todo o cacau do mundo e há fartos registros de que crianças e adolescentes foram sequestrados em países adjacentes e levadas a trabalhar como escravos em fazendas marfinenses que fornecem a matéria prima do chocolate para o mundo.
Seis cidadãos do Mali, hoje adultos, ajuizaram uma ação na Justiça Federal dos EUA contra as corporações Nestlé e Cargill, alegando que foram sequestrados quando eram crianças em seu país natal e traficados para trabalhar em plantações de cacau na Costa do Marfim, onde laboravam em longas jornadas e eram mantidos em situação servil, inclusive com restrições à sua liberdade de locomoção.
O objeto do pedido é uma indenização contra as empresas mencionadas, pelo fato de que as cacaueiras marfinenses integram a cadeia de produção das empresas com sede nos EUA, as quais financiavam e prestavam assistência técnica aos produtores africanos. Os advogados dos malinenses sustentavam que as corporações americanas, apesar de muitas evidências sobre violações aos direitos dos trabalhadores rurais, falharam em fiscalizar as condições em que o cacau comercializado era produzido.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A questão submetida à Suprema Corte na semana passada dizia respeito à jurisdição dos tribunais federais americanos para apreciar eventuais lesões praticadas por empresas americanas fora do território dos EUA. O tema é altamente relevante e sensível, já que no mundo globalizado do século XXI as empresas multinacionais têm sido cobradas no plano político sobre a “responsabilidade social” por suas cadeias de produção, especialmente quando no processo produtivo constatam-se graves violações a direitos humanos.
Muitas empresas globais têm buscado estratégias de compliance e certificação por blockchain de suas cadeias produtivas, porque, para além de sua presumida função social, não querem perder consumidores cada vez mais exigentes com a observância dos direitos humanos e da preservação do meio-ambiente.  Mas, quando tudo isso falha, como se dá a responsabilidade civil por essas violações na “supply chain” de grandes corporações, especialmente quando estão sediadas nos EUA?
As primeiras ações deste tipo no judiciário federal americano começaram pipocar nos anos 1980, quando advogados engenhosos desencavaram uma lei que, embora em vigor, estava esquecida nas velhas coleções empoeiradas de leis do início da República: a Alien Tort Statute, de 1789, permitia o ajuizamento perante a primeira instância da Justiça Federal de ações de indenização propostas por estrangeiros decorrentes de ações “cometidas por violação do direito das nações ou de tratado em que for parte os Estados Unidos”.
<blockquote class="jota-article__eye">Como se vê, a lei é ambígua e vaga, pois não estabelece se tais violações se referiam a atos ocorridos dentro do território dos EUA ou fora dele, muito menos define questões mais específicas sobre o alcance da responsabilidade civil (objetiva ou subjetiva, direta ou indireta). E, tampouco, se refere ao agente da violação, se cidadão dos EUA ou estrangeiro dentro do país, ou mesmo se a legitimação passiva se estenderia a empresas ou apenas a pessoas físicas.</blockquote>
Depois que a lei foi “redescoberta” pelos operadores do direito nos EUA (em um período, é claro, no qual a internacionalização da economia começava a se acentuar e que, em consequência, o debate sobre direitos humanos e supply chain ganhava força), dezenas de ações foram ajuizadas no judiciário federal dos EUA contra empresas americanas, por violações a direitos humanos ocorridas fora dos EUA. Muitos destes processos lograram grande sucesso e alguns casos começaram a ser levados à Suprema Corte, cuja jurisprudência, em geral, embora admitindo a validade da lei de 1789, passou a interpretá-la de forma cada vez mais restrita.
No precedente Sosa v. Álvarez-Machain (2004), a Suprema Corte admitiu a possibilidade de ações com base na Alien Tort Statue de 1789, desde que os fatos envolvessem normas internacionais “com conteúdo definido e aceitação entre as nações civilizadas”. O caso tratava de um mexicano sequestrado em seu país a mando da Drug Enforcement Aministration (DEA), por seguranças privados que o “abduziram” para dentro dos EUA, onde foi julgado e inocentado. Depois da absolvição criminal, propôs uma ação de indenização contra o sequestrador e órgãos da administração federal americana. Embora a Suprema Corte tenha declarado expressamente a validade da Alien Tort Act, elencou uma série de requisitos processuais específicos, os quais não estariam presentes naquele julgamento.
Depois, em Kiobel v. Royal Dutch Petroleum (2013), a Suprema Corte estabeleceu que há uma presunção geral contrária à aplicação extraterritorial do direito americano, ao rejeitar o processo contra uma multinacional estrangeira acusada de apoiar o regime militar da Nigéria na repressão a uma minoria étnica. Mais adiante, no caso Jesner v. Arab Bank (2018), a Suprema Corte rejeitou a possibilidade de ação contra o banco estrangeiro, pelo fato de que ele teria permitido transações financeiras de grupos terroristas em sua filial de Nova Iorque. Neste caso, entendeu-se que ações “extraterritoriais” só seriam possíveis caso o réu fosse cidadão ou uma empresa constituída nos EUA.
No caso julgado na semana passada, Nestlé v. Doe, a Suprema Corte entendeu que, embora as empresas rés estejam formalmente constituídas sob as leis dos EUA, e em tese poderiam ser processadas perante a Justiça Federal por cidadãos estrangeiros, não se estabeleceu no processo um liame fático concreto entre as ações empresariais praticadas nos EUA e o alegado trabalho escravo na Costa do Marfim.
Embora os juízes tenham se dividido quanto a ratio decidendi, especialmente quanto ao alcance da Alien Tort Act, prevaleceu o voto do Juiz Clarence Thomas no sentido de que uma mera alegação de que “as principais decisões operacionais” das empresas eram tomadas nos EUA não é suficiente para suscitar a aplicação extraterritorial do direito americano, que de qualquer forma seria inaplicável a esse tipo de conduta corporativa.
O julgamento da Suprema Corte evidencia como a Corte Roberts tem atuado quase sempre em favor dos interesses de grandes grupos empresariais em questões que envolvem direitos dos trabalhadores.  Embora a decisão possa parecer frustrante para grupos que defendem os direitos humanos e a responsabilização jurídica das grandes corporações pelas suas cadeias produtivas, a questão parece longe de estar pacificada na Suprema Corte:  os três juízes liberais (que também concordaram com a inexistência do liame fático de responsabilização direta in concreto), manifestaram o entendimento de que futuras ações poderiam ser admitidas caso haja demonstração de que as empresas são coniventes com violações semelhantes ou que praticaram atos de gestão diretamente relacionados aos abusos. Além desta ressalva dos três juízes liberais, surpreendentemente, o Juiz conservador Samuel Alito divergiu do voto de Thomas e entendeu que o processo contra a Nestlé e Cargill deveria prosseguir.
Ou seja, certamente haverá outros casos sobre violações de direitos humanos envolvendo empresas americanas no judiciário federal dos EUA que buscarão contornar os óbices de Nestlé v. Doe. Estrategicamente, o que os defensores dos direitos humanos podem aprender com esse caso é a importância de comunicar as violações às corporações multinacionais enquanto elas estão ocorrendo, de modo a oferecer, em juízo, padrões probatórios mais rígidos de responsabilidade civil por omissão.
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trabalho escravo

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JOTA

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