Opinião e Análise

Cássio Casagrande

<p>As últimas indicações presidenciais ao STF têm sido acompanhadas com lupa pela imprensa e pelos atores políticos; assim que um nome é anunciado, corre-se atrás de seu currículo, e os mais espertos vão ao Lattes para ver se o potencial ministro é mestre ou doutor.</p>
<p>A <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/kassio-nunes-marques-toma-posse-como-ministro-no-stf-05112020">indicação de Nunes Marques</a> foi bastante ilustrativa desta atitude: sendo um juiz pouco conhecido fora da Justiça Federal de Brasília, logo soube-se que tinha defendido tese em Portugal, mas uma pesquisa mais minuciosa redundou em acusações de plágio e desonestidade acadêmica, que lhe causaram tormentas na sabatina senatorial.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a></p>
<p>Desde a primeira Constituição republicana, se exige que nossos juízes constitucionais tenham “notável saber jurídico”, cuja avaliação é deveras subjetiva. O Senado da República não tem sido muito rigoroso nesse escrutínio, pois ao que recordo somente um nome até hoje foi reprovado por não cumprir o requisito, o do Dr. Barata Ribeiro – pois que era “doutor” por ser médico reputado, jamais tendo pisado os degraus de uma faculdade de Direito. Bem, assim, vamos e venhamos, ficou fácil de examinar a sapiência jurídica daquele candidato, que na sua época se notabilizou por receitar banhos de mar terapêuticos para aplacar certas moléstias, e por isso é até hoje reverenciado em Copacabana, pela homenagem que a Princesinha do Mar lhe presta, com a designação de seu nome a uma das mais barulhentas e animadas avenidas do bairro.</p>
<p>Certo é que há em nosso STF acadêmicos de alto gabarito, como os ministros Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin, cujo “notável saber jurídico” dispensava até mesmo uma consulta ao Lattes. Outros, no entanto, tinham na época da indicação um currículo, digamos, mais magro; e houve até alguns que correram a alimentá-lo com artigos e palestras que tinham sido esquecidas em suas gavetas. Fato é que a tentativa de examinar o notável saber jurídico à luz de feitos acadêmicos é algo recente no Brasil, pois tiveram assento em nosso STF juristas de escol que não eram necessariamente professores ou acadêmicos, o último deles sendo o grande ministro Celso de Mello.</p>
<p>Nos Estados Unidos, a titulação acadêmica é completamente irrelevante para se examinar se um indicado à Suprema Corte possui cabedal jurídico necessário ao exercício da relevante função. Para se ter uma ideia, em seus 230 e tantos anos de atividade, apenas dois Justices tinham mestrado (Sherman Minton e Lewis Powell) e apenas um – o atual juiz <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/neil-gorsuch-o-triunfo-conservadorismo-02022017">Neil Gorsuch</a> – detém o título acadêmico de doutor. Ou seja, juízes de alto gabarito acadêmico são quase uma excrecência na história da corte constitucional americana (que, no entanto, contou alguns talentosíssimos professores não titulados em pós-graduação).</p>
<p>Não é difícil compreender esse fenômeno. Como lembra o saudoso professor John Merryman, a Civil Law é uma tradição jurídica em que o Direito é desenvolvido por doutrinadores nas universidades, enquanto na Common Law o desenvolvimento jurídico é atribuído aos juízes na construção de decisões judiciais paradigmáticas. Ou seja, em nossa tradição, o jurista é um professor, enquanto que na tradição subjacente ao direito americano, o jurista é um juiz. Nos EUA, professores não gozam de prestígio de jurista pelo simples fato de terem uma carreira acadêmica, mesmo que de destaque. Aliás, sequer é necessário possuir mestrado para seguir a própria carreira de professor universitário.</p>
<p>Além disso, pesa o fato de que, no sistema constitucional americano, não há nem mesmo uma exigência formal de “notável saber jurídico”, pois esse requisito não consta do art. III da Constituição dos EUA, que fixa as balizas para a nomeação à Suprema Corte. Ao longo da história, inclusive, vários juízes foram nomeados sem sequer terem cursado uma faculdade de Direito, pois haviam aprendido o ofício como rábulas. O juiz Stanley F. Reed, nomeado por Franklin Delano Roosevelt e que ocupou uma cadeira naquele egrégio tribunal entre 1938 e 1957, foi o último a exercer o cargo sem ter obtido um grau de bacharel.</p>
<p>Ainda que a Constituição americana não exija formalmente o requisito do notável saber jurídico, ele acabou sendo imposto pelas práticas do Senado e, sobretudo, porque a American Bar Association (equivalente à OAB) passou, desde os anos 1960, a “avaliar” os indicados, atribuindo-lhes um determinado conceito, o que se revelou decisivo para que alguns dos candidatos fossem derrubados – ou para que acabassem retirando o seu nome, a fim de evitar constrangimentos. A avaliação da ABA, porém, caiu em certo descrédito depois que a corporação atribuiu um conceito baixo a Robert Bork, que, indicado por Reagan em 1987, acabou rechaçado na sabatina do Senado. Bork era um jurista de credenciais intelectuais inquestionáveis, mas extremamente conservador. Na época, acusou-se a ABA, que então tinha orientação liberal, de usar critérios políticos na avaliação.</p>
<p>De toda forma, a “trajetória acadêmica” não é de todo indiferente nos EUA, mas em outro sentido. O que conta decisivamente é a <em>alma mater</em> dos candidatos, isto é, se ele estudou Direito em uma faculdade de elite. Para se ter uma ideia, todos os juízes da Suprema Corte nomeados nos últimos 40 anos haviam estudado em Harvard ou Yale. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/amy-coney-barrett-analise-nova-face-suprema-corte-30102020">Amy Coney Barrett</a>, graduada na prestigiosa Universidade Católica de Notre Dame, em Indiana, quebrou a sequência ao assumir o cargo, em 26 de outubro passado, como a última indicada por Donald Trump.  Antes dela, Sandra Day O’Connor, nomeada em 1981, havia se graduado na também elitista Universidade de Stanford, na Califórnia.</p>
<p>A proliferação desenfreada de cursos de pós-graduação na área do Direito no Brasil – e as circunstâncias por vezes obscuras com que se pode obter um título doutoral – deve servir de alerta para que o requisito constitucional do notável saber jurídico seja examinado pelo Senado com lentes que vão além das pompas e circunstâncias da academia.  A história e o direito comparado nos mostram que o alto saber jurídico não é prerrogativa exclusiva de professores.</p>
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Suprema Corte Amy Coney Barrett

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JOTA

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Nos EUA, a titulação acadêmica é completamente irrelevante para se examinar a indicação de um juiz à Suprema Corte