Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Joana de N., 32 anos, foi contratada como médica obstetra em um grande hospital privado do Rio de Janeiro para fazer três plantões semanais de 24 horas, cada um remunerado a R$ 600. Embora desejasse ser admitida pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/clt">CLT</a>, no ato da contratação o hospital informou que a admissão só poderia ser feita na modalidade “pessoa jurídica” e para tanto Joana deveria constituir uma MEI, o que ela fez porque precisava desesperadamente de trabalho depois que seu marido ficou desempregado.
Os plantões eram realizados sob coordenação técnica, hierárquica e disciplinar de um coordenador médico contratado como empregado pelo hospital. No segundo ano de prestação laboral, Joana N. engravidou e quando sua gestação ficou aparente, o hospital decidiu “encerrar o contrato” com a sua “pessoa jurídica”.
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Ela procurou um advogado trabalhista experiente, com a finalidade de pedir reintegração no emprego, pois ao que sabia a Constituição protege a mulher grávida e a maternidade, assegurando estabilidade à gestante.
O causídico desaconselhou o ajuizamento de ação na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/justica-do-trabalho">Justiça do Trabalho</a> diante do <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/tendencia-de-stf-derrubar-decisoes-trabalhistas-sobre-pejotizacao-nao-mudou">entendimento do STF no Tema 725</a>, segundo o qual ela, sendo médica e recebendo cerca de R$ 7.200 mensais, é considerada uma trabalhadora “hipersuficiante”, fez uma escolha “esclarecida” e, portanto, não pode reivindicar os direitos sociais da Constituição, mesmo presentes os requisitos da relação de emprego previstos no art. 3º da CLT e a despeito do art. 9º da CLT estabelecer que o mascaramento de um contrato de trabalho não impede o reconhecimento do vínculo em juízo.
Isso porque, para certos iluministas ministros do Supremo, ao assinar um papel ela se transformou em uma empresa, e empresas não têm direitos sociais como garantia de emprego da gestante. Ela argumentou que vive no Rio de Janeiro e sua remuneração de R$ 7.200 pouco dá para pagar a mensalidade escolar do primeiro filho e o aluguel em Botafogo, mas o advogado lhe explicou que para o STF ela é uma profissional com grau superior e remuneração “expressiva”, estando o seu poder negocial em pé de igualdade com o hospital privado, que fatura dezenas de milhões de reais por ano.
Ela teria, para o STF, poder econômico equiparável ao de uma estrela da TV Globo ou a de um milionário jogador de futebol, o que a deixou incrédula. O advogado ainda lhe disse que se perdesse a ação trabalhista poderia ser condenada a pagar honorários advocatícios sucumbenciais ao hospital, na casa de dezenas de milhares de reais. Joana de N. não ajuizou a ação e viu seus direitos previstos na Constituição virarem letra morta.
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Maria do Amparo de O., 24 anos, recém-formada em direito, foi contratada para trabalhar em um grande escritório de advocacia de Porto Velho, sob regime jurídico de “advogada associada”. Recebia remuneração fixa de dois salários mínimos, sem participação em honorários, cumpria horário pré-estabelecido e não detinha poder de decisão quanto a aceitação de clientes do escritório.
Embora ela recebesse dois salários mínimos como advogada associada, outros advogados homens contratados para a mesma atividade e na mesma época, com idêntica experiência, eram remunerados em três salários mínimos. Maria recebeu investidas de seu chefe, um dos sócios do escritório, que fazia constantes comentários sexuais sobre o seu corpo, e lhe prometeu pagar quatro salários mínimos mensais caso ela aceitasse passar um fim de semana com ele em uma viagem para outra cidade.
Em razão do assédio sexual, Maria decidiu deixar o trabalho e procurou um advogado trabalhista. Ele desaconselhou o ajuizamento da ação, pois suas chances são praticamente inexistentes diante do entendimento do STF: ela não pode reivindicar vínculo de emprego na Justiça do Trabalho, pois sendo advogada fez uma “escolha esclarecida” ao celebrar o contrato e tem remuneração expressiva (conforme voto do ministro Luís Roberto Barroso na Reclamação 56.285, segundo o qual dois salários mínimos é uma remuneração “expressiva” para um advogado iniciante).
O advogado explicou ainda que sem o reconhecimento de vínculo de emprego não há como se postular equiparação salarial assegurada pelos artigos 7º inc. XXX,  e 461 da CLT e pela Lei 14.611/2023. Tampouco é possível reivindicar qualquer indenização na Justiça do Trabalho por danos materiais e morais decorrentes do assédio sexual, já que a trabalhadora era uma profissional com contrato de associação registrado na OAB, e “associados” mantêm relação civil de horizontalidade, não comportando a definição legal de assédio sexual que pressupõe uma relação de hierarquia. Maria do Amparo de O. não ajuizou a ação e viu seus direitos previstos na Constituição virarem letra morta.
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Cristhiane C. é uma profissional de informática contratada em Porto Alegre como MEI, pelo qual recebe remuneração de R$ 4.000 por mês fixos, para trabalhar em home office. Embora labore em sua casa, precisa estar à disposição da empresa contratante, com o computador logado entre 9h e 17h, com intervalo de uma hora. Está subordinada a um gerente de projeto, que cobra a execução de tarefas e reclama quando a profissional demora mais de dez minutos para responder uma mensagem no celular. Cristhiane sofreu grave violência doméstica de seu companheiro e em razão disso foi hospitalizada e não pôde trabalhar por uma semana. Precisou ainda mudar de casa diante de ameaças de morte do ex-marido e sequer pôde levar o seu computador.
Não obstante ela tenha reportado os fatos à empresa para a qual trabalhava, para esclarecer por que não estava podendo trabalhar e para pedir que lhe fornecessem um notebook e conexão de internet para retomar sua atividade, o seu contrato como “pessoa jurídica” foi terminado unilateralmente pelo tomador de serviços.
Ela procurou um advogado, pois o serviço social do hospital lhe informou que de acordo com a Lei Maria da Penha, ela teria direito à garantia de emprego. O advogado consultado, no entanto, desaconselhou o ajuizamento da ação na Justiça do Trabalho porque a Lei Maria da Penha só protege empregados sob regime da CLT e a autora era uma “pessoa jurídica”.
Disse-lhe que segundo a jurisprudência do STF, consolidada no Tema 725 e em Reclamações recentes, sendo ela uma profissional com curso superior e recebendo remuneração “expressiva”, o contrato formal prevalece sobre a realidade (teoria da “prevalência do poder negocial”, criada pelo doutrinador juslaboralista Gilmar Ferreira Mendes). Cristhiane C. não ajuizou a ação e viu seus direitos previstos na Constituição virarem letra morta.
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As mulheres trabalhadoras acima citadas são ficcionais e qualquer semelhança com fatos reais terá sido mera coincidência. As decisões do STF referidas, embora pareçam peças de ficção, são, no entanto, reais.

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JOTA

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