No final dos anos 1980, sindicatos de Chicago começaram a usar uma ratazana inflável em greves e manifestações por aumentos salariais. A ideia era retratar de forma caricatural empregadores inescrupulosos que infringiam leis trabalhistas ou se recusavam a negociar com os sindicatos.
Tudo começou quando um trabalhador militante do movimento sindical viu o anúncio de um novo material que então vinha ganhando popularidade no setor de propaganda: bonecos infláveis gigantes. Ele encomendou a confecção de uma ratazana cinzenta de aproximadamente 4 metros de altura, de boca aberta, ereta sobre as patas traseiras, em posição de bote e com expressão grotesca, capaz de assustar uma criança.
O boneco fez grande sucesso entre a classe operária de Chicago e não demorou para que os sindicalistas lançassem um concurso para dar nome à nojenta criatura de plástico. “Scabby the Rat” foi o vencedor. Em inglês, “scab” é o termo pejorativo para designar o fura-greve (a palavra, em seu sentido literal, signifique “sarna” ou “ferida”). E “rat” também é outra palavra usada para designar os trabalhadores contratados para substituir grevistas. A combinação ficou, de fato, perfeita, algo como “ratazana fura-greve”.
Ao longo dos anos 1990, a empresa que fabricou o “Scabby the Rat” original começou a receber encomendas de sindicatos de costa a costa, prosperando muito com o novo negócio do mascote macabro, adotado pelas mais variadas Unions dos EUA. A ratazana fura-greve triunfou e passou a ser um símbolo onipresente em campanhas sindicais, do Alabama ao Alasca. Como era de se imaginar, os patrões desde muito cedo mostraram seu desagrado em ser comparados à criatura repugnante, e em uma greve ocorrida em Nova Iorque, no ano de 2008, um empresário enfurecido esfaqueou um Scabby “até a morte”, isto é, até desinflá-lo completamente.
Isso não foi nada perto dos ataques que “Scabby the Rat” começou a sofrer nos tribunais administrativos e judiciais. Segundo o advogado trabalhista americano Moshe Marvit, de Pittsburgh, Pennsylvania, a ratazana inflável já foi objeto de 41 processos administrativos na National Labor Relations Board (NLRB) e 20 processos judiciais perante a Justiça Federal. Os questionamentos jurídicos foram levantados especialmente quando o “Scabby” passou a ser usado em piquetes e, mais recentemente, em boicotes públicos, tática muito usada pelos sindicatos americanos, quando trabalhadores marcham pelas ruas de uma cidade pedindo que consumidores deixem de comprar produtos de uma empresa que explora trabalhadores.
A National Labor Relations Act (1935), norma que regula a ordem sindical nos EUA, além da greve, autoriza a realização de piquetes e boicotes, mas sob certas condições. Não são permitidos aos sindicatos táticas de coerção, como ameaças, intimidações ou violências contra trabalhadores ou consumidores.
Empregadores começaram a sustentar perante as cortes federais que o uso do “Scabby the Rat” era um instrumento agressivo, intimidatório e difamatório, e como tal deveria ser considerado non protected speech, ou seja, nos termos da jurisprudência da Suprema Corte, não deveria ser garantido como uma forma válida de liberdade de expressão assegurada pela Primeira Emenda.
Ao longo das últimas duas décadas, as Cortes Federais de Apelação do Sexto e do Sétimo Circuitos rejeitaram em ao menos três ocasiões a argumentação patronal e mantiveram a sobrevida da “ratazana fura-greve”. As decisões reconheceram inicialmente que que o uso do “Scabby the Rat” constitui uma forma de discurso simbólico (symbolic speach), longamente protegido pela Suprema Corte, como nos casos Stromberg v. California (1931), em que se assegurou o uso em público de bandeira vermelha comunista, Tinker v. Des Moines (1969), no qual se afirmou a possibilidade de estudantes secundaristas protestarem contra a Guerra do Vietnã usando braçadeiras com o símbolo da paz e Texas v. Johnson (1989) no qual se entendeu como inconstitucional lei que criminalizava a queima ou destruição da bandeira nacional, dentre outros precedentes significativos.
Mais importante, quanto ao conteúdo do discurso, a Suprema Corte dos EUA tem jurisprudência desde a década de 1940 que considera como de interesse público a informação sobre conflitos laborais, protegendo assim o direito de sindicalistas em divulgar, por meio de cartazes e outros meios, dados sobre disputas trabalhistas, como fixado no precedente Carlson v. California, 310 U.S. 106 (1940). Na década de 1970, a Suprema Corte discutiu, inclusive, a constitucionalidade do emprego do próprio termo pejorativo “scab” em dissídios trabalhistas, considerando-o como protegido pela Primeira Emenda, ainda que esse tipo de linguagem pudesse ser considerado como “destemperado, abusivo ou insultante”, pois tradicionalmente faz parte da retórica sindical comum a tais ações – caso Letters Carriers v. Austin, 418 U.S. 264 (1974).
A National Labor Relations Board (NLRB), agência administrativa encarregada de julgar conflitos sindicais, vinha seguindo o entendimento pacífico das cortes federais sobre o “Scabby the Rat”, tendo inclusive se pronunciado nesse sentido em um caso de 2011. No entanto, durante a administração Trump, o governo preencheu cargos vagos no board da agência com integrantes pro-business, e um deles, o procurador-geral do órgão, resolveu perseguir a ratazana fura-greve, recomendando que a agência revisasse seu posicionamento, afirmando que a figura da ratazana de plástico era “confrontacional”, “assustadora” e “ameaçadora”, com capacidade para afugentar clientes das empresas que sofrem ações sindicais, além dos limites permitidos pela lei. Um escritório local da NLRB acabou admitindo um processo para revisão, ao argumento de que se tratava de um caso diferente dos precedentes judiciais e administrativos anteriores, pois envolvia um “secondary picketing”, isto é, um “piquete secundário”, proibido pela lei, no qual sindicalistas pressionam empresas que não estão diretamente envolvidas na disputa laboral, mas mantém negócios com o empregador dos grevistas.
O caso ocorreu no Estado de Indiana, onde a companhia Lipper Components estava exibindo seus produtos em uma grande feira comercial. Sindicalistas queriam denunciar a Lipper por fornecer equipamentos a outra empresa que não negocia com o sindicato. Para chamar a atenção do público, inflaram o apavorante “Scabby” no parque de exposições. A companhia alvo do protesto alegou que a tática era um piquete secundário proibido e, além disso, denunciou a conduta como abusiva, pois o terrível roedor inflável representaria uma coerção ilegal, já que sua imagem era ameaçadora e tinha a intenção de desencorajar o público a visitar o seu estande.
O caso se tornou tão emblemático para a defesa da liberdade de expressão da classe trabalhadora que a American Civil Liberties Union (ACLU) apresentou um briefing no processo, uma espécie de amicus curiaeadministrativo, defendendo que o precedente de 2011 fosse mantido, com base na jurisprudência constitucional da Suprema Corte e dos tribunais federais.
O colegiado de cinco membros da NLRB julgou o caso na semana passada e entendeu que a presença do “Scabby the Rat” no parque de exposições em Indiana não chegava a caracterizar um “piquete secundário”, sendo um mero protesto público organizado legitimamente pelo sindicato, cuja legalidade já foi reconhecida pela Suprema Corte no julgamento DeBartolo v. Florida Gulf Coast Buiding and Construction Trades Council (1988). Assim, a conduta se enquadrava no mesmo precedente administrativo de 2011 que havia decidido pela legitimidade do uso do “Scabby the Rat”.
Até mesmo dois dos juízes administrativos indicados por presidentes republicanos concordaram que o protesto sindical estava protegido pela liberdade de expressão, apesar de terem feitos ressalvas sobre a abrangência do precedente de 2011. Eles mencionaram, em seu voto conjunto concorrente, que a Suprema Corte já afirmou o direito de discurso confrontacional em termos inclusive mais ofensivos, como nos casos em que se considerou constitucionalmente protegido a queima da bandeira (Texas v. Johnson (1989)), a queima da cruz (Virginia v. Black (2003)) e manifestação pública contra a homossexualidade (Snyder v. Phelps (2011)).
Assim, após esta decisão, no que depender do sistema de justiça americano, “Scabby the Rat” terá vida longa.
***
A decisão administrativa proferida no caso da ratazana inflável pode ser acessada no site da NLRB, pelo número do processo: 371 NLRB no. 8 International Union of Operating Engineers, Local Union no. 150, a/w International Union of Operation, proferida em 21 de julho de 2021.
Você pode ler a petição de amicus brief da ACLU em defesa do “Scabby the Rat” neste link.
“Scabby the Rat” se tornou tão popular entre os sindicalistas americanos que hoje possui até uma conta no Twitter, com mais de dez mil seguidores. Você também pode segui-lo aqui. A conta divulga notícias sobre lutas sindicais e questões trabalhistas nos EUA.
A empresa do Illinois que concebeu o “Scabby the Rat” original é a Blue Sky Balloons and Search Lights, Inc.. Além da ratazana fura-greve, eles também produzem gatos gordos esganando um trabalhador e porcos gananciosos contando dinheiro. Os produtos, por razões compreensíveis, não estão disponíveis na Amazon, mas podem ser encomendados diretamente no site da companhia. Dependendo do tamanho, os modelos podem custar até oito mil dólares.