Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Na semana que passou, o assunto que galvanizou a opinião pública americana não foi a guerra na Ucrânia, a alta dos combustíveis ou a sabatina da juíza Ketanji Jackson para a Suprema Corte, que se inicia hoje.  O tema que dominou as conversas por aqui foi um só: a decisão inesperada do Senado de esticar o horário de verão para os doze meses do ano, de modo que na prática todos terão que acordar mais cedo de janeiro a dezembro, em troca de um punhado extra de horas de sol no fim da tarde.  Os favoráveis e contrários a essa decisão estão mais divididos do que os que defendem e condenam o aborto; e os antagonistas não seguem linhas partidárias, havendo democratas e republicanos em ambos os lados da trincheira.
A contagem precisa das horas e o estabelecimento de horário oficial não foi tema de legislação na maior parte da história dos EUA, se considerarmos sua existência desde a chegada do Mayflower nas areias massachusettsianas de Plymouth. As pessoas se guiavam e organizavam seus negócios pelo sol ou pelo badalar das igrejas (que também seguiam o sol, na verdade). Assim, naturalmente, o tempo variava de localidade a localidade, entre condados de um mesmo estado e, obviamente, entre os vários estados.
Mas esse sistema se mostrou disfuncional e incompatível com o progresso do capitalismo, sobretudo a partir da revolução do transporte ferroviário. No dia 10 de maio de 1869, na cidade de Promontory (Utah), as linhas de trem das costas oeste e leste foram unidas e a ligação transcontinental dos EUA se completou.  As empresas (e os passageiros) precisavam saber a que hora exata partiria uma composição, e em que hora local chegaria em seu destino. Então as companhias ferroviárias entraram em ação e padronizaram a hora e os fusos horários nos Estados Unidos, criando as quatro zonas que estão em vigor até hoje: Eastern, Central, Mountain e Pacific.
A “hora ferroviária” (railroad time) passou a regular todos os negócios, inclusive as atividades e reuniões da administração pública. Em março de 1918, o Congresso aprovou a Standard Act Time, tornando lei nacional a prática “privada” dos fusos. Foi uma decisão muito traumática do ponto de vista federativo, pois retirou a autonomia dos governos locais para determinar o próprio ritmo temporal de sua vida quotidiana, o que violentou as mais básicas e fortemente arraigadas noções de self-government, sobre as quais é fundada a democracia americana. Como ocorre frequentemente, o capitalismo falou mais alto.
Logo depois que a hora oficial foi adotada, em razão da participação dos EUA na Primeira Guerra Mundial, o governo Woodrow Wilson implementou de forma pioneira o que conhecemos como horário de verão, para economizar energia no esforço de guerra. Aliás, o horário de verão nos EUA não se chama propriamente “horário de verão”, mas sim “daylight saving time”, e sequer começa no verão, mas poucos dias antes do início da primavera, e vai até princípios de novembro. A medida seria renovada durante a Segunda Guerra Mundial e, a partir do governo Lyndon Johnson, as duas mudanças anuais de relógio se tornaram permanentes, conforme previsto pelo Uniform Time Act de 1966.
Como a questão é polêmica do ponto de vista federativo, a lei federal permite que os estados façam o “opt out” e permaneçam na hora padrão. Alguns deles fizeram ou ainda fazem essa opção, e antes desta lei de 1966 havia inclusive aqueles que deixavam a questão a ser decidida pelos condados – e pode-se imaginar o caos que daí advinha, das viagens aéreas aos horários da escola em cidades vizinhas. Outros estados, como a Califórnia, simplesmente já aprovaram o horário de verão “eterno”, para todo o transcurso do ano. Em síntese, a hora oficial nos EUA é uma bagunça.
A iniciativa do Senado em oficializar o horário de verão para todo país supostamente foi tomada porque as duas mudanças anuais do relógio seriam prejudiciais à saúde e à economia (há estatísticas que documentam aumento de acidentes de trânsito e de trabalho nas semanas seguintes à alteração do relógio). Além disso, os senadores alegam que a maioria dos eleitores simpatizaria com a ideia e a medida representaria economia de energia. Mas nada disso é certo, pois em muitos estados mais frios os pais não querem que as crianças sigam para a escola quando ainda está escuro, e acreditam que os alunos acabam dormindo menos do que deveriam, afetando sua concentração.
Também há estudos que contradizem a opinião convencional de que o daylight saving time gera economia de energia, pois, afinal, se você mora na costa iluminada da Flórida pode ser ótimo sair do trabalho com o dia claro, praticar atividades ao livre ou encontrar os amigos para tomar uma margherita, poupando energia no escritório ou em casa. No entanto, se você mora nos cafundós de Iowa e não tem muito o que fazer durante o verão, possivelmente vai para casa mais cedo e com muito calor às cinco da tarde, vai simplesmente ligar o ar condicionado na potência máxima enquanto toma o seu uísque com uma pedra de gelo gigante.
A questão também divide setores econômicos. Alguns deles, como a associação nacional das lojas de conveniência, se opõe, por acreditar que seus clientes, ao sair do trabalho com o dia claro, vão para outros lugares que não as lojas de conveniência. Já a associação de bares e restaurantes é a favor por motivos óbvios, por crer que o dia claro ao fim do expediente é convidativo para um drink ou um hambúrguer.
Esse debate um tanto pitoresco é bastante interessante para se observar como é difícil construir decisões democráticas nos EUA, dada a pluralidade de interesses federativos e de grupos econômicos e políticos antagônicos. A decisão do Senado foi tomada em momento de distração com a Guerra da Ucrânia, por voto de liderança, sem um debate consistente em torno da questão. Creio que, justamente em razão da dificuldade de consenso em matéria afetada pela geografia continental do país e pelos variados interesses sociais e econômicos envolvidos, a medida não passará na Câmara.

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JOTA

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