Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Na manhã desta segunda-feira (21/3) em que a primavera se iniciou na América do Norte, o céu de Washington D.C. estava azul e ensolarado, mas o frio ainda reinava. Os primeiros raios de sol estavam luzindo sobre a cúpula do Capitólio, que subitamente dicou dourada. Ao lado, uma movimentação atípica para a hora começou na First Street, que separa o prédio do Congresso do <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/juizes-suprema-corte-eua-trabalharam-home-office-por-145-anos-14032022">edifício da Suprema Corte</a>. Diante da escadaria de mármore da corte constitucional, alguns militantes montavam um minipalanque, ajustavam um sistema de som e desempacotavam cartazes, bottons e camisetas, tudo sob as vistas atentas de seguranças do grande Palácio da Justiça. Um grupo de cantores negros de música gospel ensaiava lindos hinos religiosos.
Logo depois, um ruidoso grupo de estudantes de um tradicional Black College, com cerca de cem integrantes, subiu pela Constitution Avenue, passando ao lado do prédio do Senado (Russell Building), bradando entusiasticamente as palavras de ordem "Confirm KBJ". Eles dobraram à direita na First Street e se dirigiram ao prédio da Suprema Corte, para se reunir à manifestação em favor da confirmação, pelos senadores, da indicação de Ketanji B. Jackson para o cargo de Associate Justice naquele tribunal. Jackson, juíza federal com cerca de dez anos de experiência, é a primeira mulher negra indicada à excelsa corte desde sua instalação, em 1789.
A animação dos manifestantes era grande, alternando palavras de ordem, músicas e vivas, quando uma enorme picape preta e blindada se aproximou. Um senhor grisalho, acompanhado de sua assessora jovem e loira desceu, sendo imediatamente levado ao palanque. Era o senador de Illinois Dick Durbin, do Partido Democrata, presidente da <a href="https://www.judiciary.senate.gov/judge-ketanji-brown-jackson">Comissão Judiciária do Senado</a>, responsável por conduzir a sabatina. Ele fez um brevíssimo discurso, apoiando a indicação de Biden. Lembrou que a Suprema Corte já teve 115 juízes em sua história e que desses 108 eram iguais a ele: homens brancos. Defendeu que o órgão máximo da Justiça americana deveria espelhar a diversidade do país. E, referindo-se à indicada, acrescentou: “Se você quer ser a primeira, você tem que ser a melhor, e Ketanji Jackson é a melhor”. Foi ovacionado e posou para fotos com vários manifestantes.
Às 11 horas da manhã teve início a sabatina, no mesmo Russell Building que os alunos do Black College haviam contornado. O presidente Durbin repetiu o que havia discursado defronte à Suprema Corte e endossou de forma entusiástica a indicação de Jackson. Depois, passou a palavra ao vice-presidente da comissão, o veterano senador republicano de Iowa Chuck Grassley. Falando em nome de sua bancada, elogiou a trajetória pessoal da indicada, mas advertiu que a inquirição na sabatina será “ampla e dura”, apontando já as duas principais linhas de ataque da oposição: um suposto “dark money” de organizações de “extrema esquerda” que estariam apoiando KBJ e um pretenso ativismo judicial implícito em decisões da magistrada.
A comissão tem 22 membros, 11 de cada partido, e no primeiro dia cada um deles teve dez minutos para fazer suas declarações iniciais, ou seja, não houve inquirição propriamente. Todos os senadores republicanos trataram Jackson com gentileza, respeito e deferência, salientando que jamais repetiriam com ela o que os democratas fizeram com indicados por presidentes republicanos, como Robert Bork, Clarence Thomas e Neil Gorsuch, que foram atacados por aspectos de sua vida privada, vasculhada em mínimos detalhes. O senador Ted Cruz, do Texas, chegou a dizer que os republicanos não perguntariam à Ketanji detalhes sobre sua vida amorosa na adolescência ou se ela “gosta de cerveja”, numa alusão nada indireta a questionamentos semelhantes que os democratas fizeram a Gorsuch, indicado por Trump. Havia entre os senadores conservadores um certo clima de ressentimento e uma clara tentativa de demonstrar “superioridade moral” (que talvez não ocorresse se a reconhecida integridade ética e moral da juíza Jackson estivesse em causa por algum motivo...).
Mas alguns dos senadores republicanos já mostraram que vão usar um arsenal pesado, ainda que despejem as suas bombas de forma cortês. Lindsey Graham, da Carolina do Sul, estava com sangue nos olhos e aparentemente enfurecido porque certos democratas boicotaram uma juíza negra liberal do seu estado. Prometeu muito gentilmente a Jackson que ela não terá vida fácil nesta semana. O jovem e articulado Josh Hawley, do Missouri, sem papas na língua, já indicou casos em que Jackson atuou e que o desagradaram: aplicação de pena mínima para indivíduos que divulgaram pornografia infantil na internet, sugerindo que a indicada é leniente com pedófilos. A artilharia mais pesada deverá vir da senadora fanaticamente trumpista Marsha Blackburn, representante do Tennessee, que já apontou os seus alvos: direitos dos transgêneros, questionamento do ensino do racismo estrutural nas escolas públicas, restrições a direitos durante a pandemia da Covid-19, garantismo penal e o propalado “dark money”...
Talvez um dos pontos mais vulneráveis de Ketanji seja o fato de que, ao visitar os senadores republicanos, tenha afirmado por duvidosa estratégia que não possui uma “filosofia constitucional” em particular, preferindo aplicar a lei. O que poderia ser uma demonstração de neutralidade passou a ser visto com desconfiança nesta bancada, pois na polarização política atual o juiz ou é um “originalista” ou um adepto da “Constituição viva”. A senadora Blackburn chegou a dizer, absurdamente a meu ver, que a indicada estava à deriva em matéria de filosofia constitucional e possivelmente poderia ter uma “agenda secreta”.
Do lado democrata, como era de se esperar, apenas confetes e serpentinas. O destaque foi o discurso autêntico e emocionado do senador afro-americano Cory Booker, de Nova Jersey, que como nenhum outro soube expressar o fato histórico que todos testemunhamos, destacando que a sabatina ocorre na mesma data da Marcha de Selma liderada por Martin Luther King, em 1965.
O que mais gostei da bancada democrata foi o senador Sheldon Whitehouse, de Rhode Island, que oportunamente lembrou que o “dark money” das grandes corporações é que já fez muitos juízes na Suprema Corte, enquanto nunca se ouviu falar que grupelhos irrelevantes de esquerda tenham sido decisivos em nomeações. O jovem senador Jon Ossoff, que venceu uma improvável eleição na Geórgia em 2020, mostrou em seu discurso notável talento para ser um dos grandes líderes políticos dos EUA. Guardem esse nome. O pitoresco ficou com o senador Alex Padilla, da Califórnia, que pediu vênia ao presidente da sessão para discursar em espanhol por três minutos, num claro ato de propaganda eleitoral. E ainda ganhou um “muchas gracias” de Durbin.
Depois das apresentações iniciais dos senadores, a Comissão Judiciária do Senado ouviu duas testemunhas apontadas por KBJ, o juiz federal aposentado Thomas Griffith, indicado pelo republicano Ronald Reagan, e a professora Lisa Fairfax, da Universidade da Pensilvânia. O primeiro, salientando sua independência política, testemunhou a competência profissional de Jackson, e a segunda, amiga  de Ketanji há mais de 25 anos, afirmou a solidez de seu caráter. Ambos arrancaram lágrimas da indicada e de seus familiares, e neste momento a sabatina ficou parecida com um reality show, como sói acontecer nesses momentos, seja qual for a orientação ideológica do futuro juiz.
Por fim, a escolhida de Biden fez um breve discurso de apresentação, repetindo muito do que já havia dito na cerimônia da Casa Branca. Mais do que palavras, ficou evidente que Ketanji B. Jackson tem um carisma extraordinário, para o qual contribuem seu sorriso espontâneo, natural e contagiante. É uma grande oradora, premiada por esse talento em sua vida escolar. Mostrou serenidade, humildade e confiança. Quando ouviu o testemunho de sua melhor amiga, segurou as lágrimas discretamente. Louvou as grandes personalidades do direito que a inspiraram, especialmente a líder de direitos civis Constance Motley.  KBJ dedicou a maior parte do seu discurso ao que os americanos mais gostam: declarar amor ao país, a Deus e à família. Pouco falou sobre suas concepções judiciais, além dos tradicionais chavões de respeito à ordem jurídica e ao ideal de justiça igual para todos. Enfim, o primeiro dia foi apenas um aquecimento. O jogo de verdade começa nesta terça-feira (22).

WhatsApp Image 2022-03-22 at 09.50.57

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Senadores republicanos, com cortesia, mostram suas armas

Sabatina de Ketanji B. Jackson à Suprema Corte: Dia 1

Senadores republicanos, com cortesia, mostram suas armas no 1º dia da sabatina de Ketanji B Jackson, indicada à Suprema Corte dos EUA