Para um observador brasileiro da área do Direito, causa um verdadeiro choque assistir o Comitê Judiciário do Senado dos EUA em ação no processo de sabatina da indicada à Suprema Corte, por dois motivos. O primeiro é perceber como nossos senadores, quando desempenham idêntico papel, se mostram intelectualmente despreparados e juridicamente desqualificados para o exercício desta que é uma das mais importantes funções constitucionais da câmara alta.
Nos EUA, quase todos os integrantes desta comissão são graduados em notáveis escolas de direito, com prática jurídica consistente. São advogados tarimbados, ou com trajetórias na promotoria, magistratura ou procuradorias públicas. Todos entendem de direito constitucional e conhecem razoavelmente o funcionamento e a jurisprudência da Suprema Corte. O segundo fato que destoa de nosso contexto nacional é o nível de preparação para a sabatina e o grau rigoroso – por vezes, brutal – de escrutínio a que o indicado é submetido durante as sessões.
Devido à alta qualificação dos senadores e ao rigor e profissionalismo da sabatina senatorial, acompanhá-la é uma aula espetacular de sociologia da vida americana e de direito constitucional. O segundo dia de exame de Ketanji B. Jackson foi uma demonstração desse fato. As assessorias altamente gabaritadas dos senadores leram todas as palavras que a juíza Jackson escreveu ou proferiu em público nos últimos 30 anos. Isso inclui artigos do tempo de estudante, palestras para variadas audiências, manifestações exaradas em vários cargos públicos e na advocacia privada e, sobretudo, suas 570 decisões judiciais, que foram escrutinadas com lupa. Os republicanos o fizeram com o intuito de questionar suas concepções jurídicas e políticas, buscando provas de ativismo, leniência com criminosos ou uma suposta “hidden agenda”. Os democratas buscaram elementos a demonstrar sua coerência, integridade, respeitabilidade e compromisso com a letra da lei.
No segundo dia da sabatina, os senadores republicanos mais extremados jogaram pesado. Lindsey Graham surpreendeu ao começar por perguntar a religião da candidata (que dada à sua discrição na matéria, ninguém sabia ao certo). Ela respondeu que era protestante não denominacional. Em seguida, o senador da Carolina do Sul perguntou se ela teria isenção para julgar um católico, ao que ela respondeu afirmativamente, declarando que sua convicção religiosa não importava quando vestia a toga. Depois, prosseguiu indagando com que regularidade Ketanji frequentava a igreja, e ela se recusou a responder por se tratar de questão de natureza privada e íntima. Graham disse que concordava com ela e que não se importava sobre isso, nem sobre sua religião ou isenção, pois estava certo de sua sinceridade quanto à separação entre esfera pública e privada. Disse que só fez essas perguntas para demonstrar o quão aberrante, a seu ver, teriam sido questionamentos semelhantes que democratas fizeram à profundamente católica Amy Coney Barrett, na sabatina anterior.
Depois deste showzinho político, partiu para o ataque no que realmente importa: questionou a atuação de Ketanji como defensora pública e advogada privada em favor de detentos em Guantánamo, destacando trechos de suas petições em que criticava duramente o governo federal, então encabeçado por George Bush filho. A arguição foi dura e a indicada deu sinais de tensão, mas sem perder a têmpera. Respondeu, como era de se esperar, ressaltando que estava exercendo uma atribuição da Sexta Emenda (direito a advogado e julgamento justo) e que suas opiniões pessoais não se confundem com as manifestações em defesa de clientes.
O arsenal mais pesado, no entanto, veio do senador Ted Cruz. Com a ajuda de cartazes, atacou a indicada por dois flancos: disse estar convencido que ela apoiava a “critical race theory”, a partir de uma palestra que ela proferiu anos atrás na Universidade de Michigan e de que ela seria leniente com criminosos acusados de consumir pornografia infantil, pois em casos que ela julgou as penas teriam sido extremamente leves. Foi o momento mais tenso da sabatina, visível no semblante da inquirida. O tema do ensino da CRT (para nós, racismo estrutural) mexeu com os brios de Jackson, pois o senador questionou seu papel como conselheira de uma escola privada fundada nos tempos de segregação para apoiar alunos negros, na qual seriam recomendados livros que sugeririam que crianças brancas inevitavelmente têm comportamento racistas. Foi o único momento em que a juíza federal, normalmente serena e contida, mostrou leve alteração de voz, o que se mostrou compreensível dado o nível insidioso do questionamento.
As acusações de que Ketanji aplicaria penas leves a condenados por consumir material de pedofilia na internet foram repetidas também por outros senadores republicanos, especialmente por Josh Hawley, do Missouri, que foi cruel e extremamente demagogo na questão. A senadora Hirono, do Havaí, demonstrou facilmente a demagogia do colega, ao apresentar dados de que as penas aplicadas por Jackson para tais crimes estavam dentro da média nacional e, mais, que um juiz federal indicado por republicanos e apoiado pessoalmente por Hawley para a vara federal de seu estado aplicava penas ainda menores...
Percebia-se uma clara divisão entre senadores que estavam querendo marcar suas posições políticas e outros que estavam sinceramente preocupados em debater os rumos da Suprema Corte. Os primeiros são em geral os que enfrentarão eleições em novembro, na qual um terço das cadeiras é renovado. Sabatinas para a Suprema Corte dão visibilidade midiática tremenda aos senadores. Dentre os segundos, especialmente os republicanos, muitos suscitaram questionamentos interessantíssimos sobre o poder da corte em “criar” direitos a partir da Nona Emenda (direitos não enumerados) e da Décima Quarta Emenda (pela cláusula do devido processo legal).
A partir de crítica à decisão do casamento entre pessoas do mesmo sexo (Obergefell v. Hodges), o senador John Cornyn desenvolveu elaborada avaliação negativa do “substantial due process of law”, alegando (com razão, a meu ver) que o mesmo se tornou uma carta branca na mão dos juízes (só esqueceu de observar que o “substantial”, que não consta no texto da emenda, foi uma criação de juristas conservadores em defesa de grandes corporações, para embaraçar a legislação social no início do século 20).
Como era de se esperar, muitos tentaram jogar Jackson em ciladas, perguntando sobre aborto, plano de empacotamento da corte, porte de armas, endurecimento de leis penais, entre outros, mas KBJ soube se esquivar da forma tradicional, alegando que tais questões podem ser julgadas pela corte e por isso não deve emitir pré-julgamento, ou que seriam matérias afetas a decisões políticas do Congresso, sendo vedados aos juízes comentá-las. Alguns senadores fizeram arguições bastante técnicas, buscando aferir o conhecimento jurídico da candidata, e o senador Lee, do Arizona, fez a arguição parecer uma prova oral para juiz no Brasil. Jackson se mostrou articulada, culta e inteligente, mas bastante modesta e humilde, não tendo medo de admitir que desconhecia certos aspectos específicos da legislação ou jurisprudência (atenção concurseiros do Brasil, mirem-se nela).
Ao final das 12 horas, já cansada, Ketanji caiu em uma armadilha da senadora Marsha Blackburn. A senadora do Tennessee estava questionando a participação de meninas transgênero em esportes, e forçou bastante a barra para que Jackson se posicionasse no tema, o que ela negou porque há vários processos em curso debatendo a questão. Diante da negativa, pediu então que Jackson definisse o que é uma “mulher” e a sabatinada disse não saber a resposta. Certamente, será um dos pontos mais vulneráveis no terceiro dia da sabatina. No geral, todavia, Ketanji B. Jackson saiu-se muito bem e o tratamento bastante moderado e simpático de alguns republicanos indica que ela poderá contar com votos nesta bancada.