Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Na última sexta-feira (24), ao julgar o caso Dobbs v. Jackson, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu o precedente Roe v. Wade, de 1973, que assegurava o aborto como um direito constitucional em todo o território nacional. A partir da nova decisão (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-adeus-a-roe-49-anos-depois-a-superacao-do-precedente-do-aborto-25062022">clique aqui para entender o julgamento</a>), o direito ao aborto e sua regulamentação voltam ao poder das assembleias legislativas estaduais, dos governadores e do Congresso. A decisão provoca um impacto em toda a sociedade americana. Analiso aqui as repercussões mais imediatas e de curto prazo na política dos EUA.
<h3>A política como guerra cultural</h3>
Em certo trecho de sua decisão no caso Dobbs, o juiz Samuel Alito, criticando o precedente Roe v. Wade, disse que aquele julgamento, além de errado, “trouxe consequências prejudiciais; longe de pacificar a questão nacionalmente sobre o aborto, inflamou o debate e aprofundou a divisão”. Bem, a fundamentação, nesse ponto, parece contraditória, pois dada a repercussão da decisão da Suprema Corte em Dobbs, Alito e seus colegas da maioria simplesmente tentaram apagar o fogo com mais gasolina. O julgamento recoloca o aborto no centro do debate político dos Estados Unidos, que se inclinará com mais força para a pauta de costumes, induzindo o eleitorado a considerar o tema dos “valores” como central para definição de seu voto. Para uma fatia cada vez mais considerável dos eleitores americanos, à esquerda e à direita, a “guerra cultural” é mais importante do que o preço da gasolina ou a ameaça da Rússia na Europa.
<h3>Fortalecimento de Donald Trump</h3>
O ex-presidente não vinha atravessando um bom momento. A comissão parlamentar que investiga a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 tem divulgado nas últimas duas semanas detalhes constrangedores e vergonhosos da tentativa de Donald Trump de subverter o resultado das eleições presidenciais de 2020. Alguns dos nomes apoiados por ele têm tido dificuldades nas primárias para as eleições a governos de estados e das midterms para o Congresso.
O governador da Flórida, De Sanctis, está se fortalecendo bastante como potencial adversário interno. Logo depois de emitida a decisão no caso Dobbs, Trump expediu uma nota oficial “parabenizando a corte” e, claro, tomando para si o crédito do resultado. De fato, se Trump não tivesse escolhido os juízes de perfil extremamente conservador como o fez (juízes que estão à direita do presidente da corte, John Roberts), Roe v. Wade não teria sido revertido. O ex-presidente ainda ganha uma “folga” no noticiário político negativo, pois a discussão sobre 6 de janeiro caiu para segundo plano.
<h3>Partido Democrata tentará se 'energizar'</h3>
O Partido Democrata ainda está atônito com a decisão e muitos de seus líderes trocam acusações, com a ala mais à esquerda criticando a gestão Barack Obama por não ter priorizado o direito ao aborto em lei federal e regulado sua assistência no Medicare. Outros líderes, no entanto, acreditam que a revolta dos setores liberais com a decisão da Suprema Corte pode “energizar” a base dos eleitores democratas, que andam desanimados com os problemas econômicos que a administração Biden tem enfrentado.
Segundo pesquisas de opinião, cerca de 75% das mulheres são contrárias à decisão da Suprema Corte e o partido tentará fazer com que a presença do voto feminino seja significativa nas eleições de midterm, cujos prognósticos não são favoráveis para os democratas até este momento. Nesse caso, a guerra cultural será bem-vinda pelo partido, se puder desviar o foco da inflação e do preço da gasolina.
<h3>Batalhas políticas nas assembleias legislativas e eleições de midterms</h3>
Em novembro haverá eleições para renovação do Congresso (mas apenas um terço do Senado) e para as assembleias legislativas estaduais. Os democratas mantêm o controle do Senado por um fio (voto de minerva da vice-presidente, Kamala Harris) e tem pequena margem de maioria na Câmara.
A decisão da Suprema Corte certamente trará um impacto na eleição senatorial, especialmente nos estados-pêndulo, como Massachussetts, que tendem a uma visão mais liberal na pauta de costumes. Ainda é incerto como isso afetará os resultados, mas será um fator importante no debate eleitoral.
Outra grande batalha se dará pelo controle das assembleias legislativas, já que a Suprema Corte permitiu aos estados ampla discricionariedade na regulação do aborto. Alguns estados, especialmente aqueles controlados por republicanos de mentalidade mais extremada, podem aprovar leis radicais proibindo o aborto mesmo em caso de estupro, e há os que já defendem criminalizar quem viajar para obter aborto em outro estado ou quem ajudar ou financiar a viagem de uma grávida com esse fim.
Uma visão excessivamente radical contrária ao aborto talvez possa não ser eleitoralmente benéfica em alguns estados, como Ohio. De outra parte, há pelo menos cinco governadores republicanos moderados, que estão no poder em estados onde o aborto é permitido e já declararam que não pretendem mudar a lei (como Larry Hogan, de Maryland). É interessante observar qual será o espaço destes políticos centristas no partido.
<h3>John Roberts perde poder como presidente da Suprema Corte</h3>
É importante notar que o presidente da corte, John Roberts (indicado pelo presidente George W. Bush), embora tenha votado pela constitucionalidade da Lei do Mississippi que restringiu o aborto até a 15ª semana, votou com o bloco liberal pela manutenção do precedente Roe v. Wade, que asseguraria o aborto como um direito constitucional passível de limitação razoável.
Informações dos bastidores da Suprema Corte dão conta de que Roberts tentou de todas as formas e muito intensamente persuadir a trinca de juízes da era Trump a seguir o seu voto, em vão. Não foi a primeira vez desde 2017 (quando começou a mudança radical na composição da corte) que Roberts ficou vencido com os liberais em temas politicamente sensíveis e em casos que representaram uma guinada ideológica à direita da corte.
Roberts passou a ser bastante criticado pelas alas mais duras do Partido Republicano desde que votou em 2012 em favor da constitucionalidade do Affordable Care Act (Obamacare), com algumas ressalvas que não desnaturaram o programa (National Federation of Independent Business v. Sebelius). Quando um presidente da Suprema Corte passa a integrar a minoria em temas jurídica e politicamente relevantes, ele tende a ver sua liderança diluída, como ocorreu com o ex-presidente Warren Burger nos anos 1970.
Hoje, ninguém mais dúvida de que Gorsuch, Kavanaugh e Barrett estão sob a liderança intelectual de Clarence Thomas e Samuel Alito, reconhecidamente os juízes mais à direita no espectro ideológico da corte. A posse de Ketanji Brown Jackson no próximo termo judiciário, em outubro, substituindo Stephen Breyer, não deve alterar esse panorama, já que se manterá a divisão 6 x 3 entre conservadores e liberais.
<h3>Suprema Corte pode sofrer abalo inédito em seu prestígio</h3>
Está cada vez mais evidente que a corte constitucional americana pós-Trump vem se transformando em caixa de ressonância da ideologia mais conservadora do Partido Republicano. Além da decisão sobre o aborto, a Suprema Corte proferiu nas últimas semanas julgamentos sobre porte de armas e dinheiro público para educação religiosa que estão perfeitamente em sintonia com a cartilha do Grand Old Party.
A decisão em Dobbs, sobretudo, não está sendo vista pela comunidade acadêmica americana e pelo público em geral como um natural desenvolvimento da teoria constitucional, precedida por mudanças lentas e sutis na jurisprudência dos tribunais federais ou da própria corte. Ao contrário, o overruling parece mais um exercício bruto de política judiciária, tornado possível pela mudança radical na composição da corte e pela ausência de membros moderados que pudessem trazer o tribunal para o centro, como já ocorreu em décadas passadas, quando a corte, ainda que de maioria conservadora, contava com juízes como Sandra Day O'Connor e Anthony Kennedy.
A integridade do sistema de precedentes da corte passa a ser questionado; a fundamentação do voto de Samuel Alito para justificar a reversão de um precedente tão solidificado pareceu muito pouco convincente. Como comentou o professor e constitucionalista Eric Segall, da Universidade da Geórgia, “uma instituição que recebe pedidos para reverter um caso dezenas de vezes e diz não, e então diz não outra vez de forma explícita e explica o porquê e então diz sim, vamos mudar nossa decisão porque as pessoas na instituição mudaram, não pode ser considerada como uma corte de justiça".
Além disso, as declarações públicas em sabatina de Gorsuch, Kavanaugh e Barrett, de que Roe era “law of the land”, pouco contribuem para a imagem de isenção e credibilidade dos novos juízes que compõe hoje a maioria da corte. Os senadores Susan Collins e Joe Manchin garantem, inclusive, que em audiência privada o hoje juiz Kavanaugh assegurou que votaria por manter Roe. Os dois senadores declararam que se sentem enganados, pois Kavanaugh só foi confirmado graças à mudança do voto de ambos (o placar foi de 52 a 48), que inicialmente demonstraram resistência ao indicado.
Além desses fatores, a retórica utilizada nos votos da maioria e da minoria está bastante candente, à beira da virulência, permeada por sarcasmo e ironia, o que é incomum no tribunal. Tudo isso ocorre em um momento em que o prestígio da Suprema Corte se encontra no nível mais baixo em 20 anos. A última pesquisa Gallup, feita no final do ano passado, aponta que 53% dos americanos desaprovam o trabalho do tribunal e somente 40% o aprovam.
O vazamento do voto do juiz Alito antes do julgamento do caso Dobbs foi bastante grave e até agora não está esclarecido. A Suprema Corte é o único órgão público federal que não está permitindo acesso após a pandemia e o prédio está cercado por altas grades de ferro e forte aparato policial, fato inédito em sua história.

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JOTA

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