Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Nesta terça-feira, dia 14 de setembro, os cidadãos da Califórnia vão às urnas para uma eleição de “recall”, no qual deverão decidir se o governador Gavin Newsom, eleito em 2018 pelo Partido Democrata, deve ser removido do cargo e substituído por outro ocupante, a ser eleito na mesma ocasião.
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Muitos já sugeriram aqui no Brasil, especialmente em decorrência das controvérsias que cercaram os impeachments de Collor e Dilma, a adoção do “recall” como uma solução para o aperfeiçoamento do sistema democrático. A experiência americana como o instituto, a meu juízo, não recomendaria essa outra importação do constitucionalismo dos Estados Unidos.
Desde que as revoluções liberais do século XVIII superaram o dogma absolutista “The King can do no wrong” e passaram a estabelecer o princípio constitucional da responsabilidade política ou accontability, diversas fórmulas de controle de excessos do poder executivo foram desenvolvidas, notadamente o voto de desconfiança no sistema parlamentarista e o impeachment no presidencialismo.
No início do século XX, na esteira do “movimento progressista” que buscava aperfeiçoar e moralizar as instituições políticas americanas, muitos intelectuais passaram a defender uma solução mais radical para controlar políticos eleitos que se desviassem do caminho correto: a possibilidade de revogação de mandatos diretamente pelo eleitorado, que ficou conhecida como “recall”.  A ideia se tornou bastante popular, especialmente na Costa Oeste dos Estados Unidos. Em 1903, a municipalidade de Los Angeles introduziu o instituto e em 1908 o Estado do Oregon foi o primeiro a incorporar o mecanismo em sua constituição.
<blockquote class="jota-article__eye">Atualmente, dos cinquenta estados que compõem a federação americana, dezenove preveem recall de governadores e outras autoridades estaduais e municipais, como secretários de estado, deputados, senadores, prefeitos e juízes estaduais.</blockquote>
O instituto tem pouco apelo nos Estados da Costa Leste, onde apenas New Jersey, Rhode Island e Georgia o adotam. Naqueles que o estabeleceram, no entanto, a experiência histórica tem mostrado que o remédio constitucional é de eficácia bastante duvidosa.
Um dos problemas do recall é que, em boa parte dos Estados americanos, ele pode ser iniciado sem que haja um fato concreto a ensejar o processo de revogação do mandato. Diferentemente do impeachment, no qual se pressupõe o cometimento de um “crime de responsabilidade” e um rito jurídico parlamentar, muitas constituições estaduais permitem que uma petição simples requeira a subscrição do pedido de eleição, com base em alegações vagas como “incompetência” ou “inaptidão.  Obtido certo número mínimo de assinaturas do eleitorado, a eleição é convocada, na qual se decide a revogação do mandato e a escolha do sucessor (aqui, também ao contrário do impeachment, não é o vice que assume).  Assim, muitas vezes o recall se transforma em mera revanche política do partido derrotado nas urnas, uma espécie de terceiro turno que acaba perturbando o curso natural de um mandato.
Embora o recall tenha sido introduzido no constitucionalismo estadual americano há mais de cem anos, apenas dois governadores foram, de fato, retirados do cargo através desse mecanismo: Lynn Frazier, da Dakota do Norte em 1921, e Gray Davis, da California, em 2003.  O atual governador Gavin Newson poderia ser o terceiro da lista, mas as pesquisas mais recentes indicam que ele deve permanecer, e um dos fatores importantes para a definição do resultado parece ser uma “fadiga” do eleitorado californiano com o recall.
Nos últimos vinte anos, depois do bem sucedido recall de Gray Davis (que foi substituído por Arnold Schwarzenegger) quase todos os governadores californianos enfrentaram tentativas de recall, embora a presente seja a primeira vez desde então que o processo chega até a etapa final. Além disso, o presente pedido de recall já nasceu controverso. A petição que deu impulso ao processo alegava apenas o seguinte: “o povo deste Estado está submetido aos maiores impostos cobrados no país, tem a maior taxa de moradores de rua e a menor qualidade de vida como resultado disso”.
O pedido de recall parecia ter poucas chances de prosperar, mas acabou servindo de veículo para insatisfação de parcela do eleitorado com a gestão de Newsom em relação à COVID, pois o governador foi acusado, especialmente pelos republicanos, de impor lockdowns e medidas restritivas muito severas. Além disso, o agravamento de antigos problemas estaduais (como a eterna crise hídrica) e o surgimento de um escândalo de fraude na administração (desvio bilionário no seguro-desemprego estadual) acabaram galvanizando os eleitores, em tempos de intensa polarização entre Democratas e Republicanos.  Para piorar ainda mais a situação política do governador, ele foi flagrado em uma festa de milionários em caríssimo restaurante do vale do Nappa quando havia uma ordem do seu próprio governo restringindo aglomerações.
Porém, os defensores da revogação do mandato de Newsom também não são anjos e estão sendo acusado de tentar tomar o poder na Califórnia por meio de um golpe que contou com a colaboração do judiciário local: os prazos para obtenção das assinaturas necessárias à convocação não haviam sido cumpridos e foram elastecidos por polêmica ordem judicial, sendo a justiça local criticada por seu ativismo e falta de isenção. A campanha pró-recall também é acusada de receber dinheiro de empresários de fora do estado que nada têm a ver com o peixe.  O recall californiano acabou se tornando um tema da política nacional, envolvendo assuntos tão díspares como aborto e segurança pública, e assim engajando centenas de celebridades do showbiz, a maior parte, como era de se imaginar, a favor de Newsom. E, claro, estrelas dos Partidos Democrata e Republicano, se empenharam na campanha, sendo a maior delas Kamala Harris, obviamente a favor do governador.
Independente dos méritos ou deméritos da gestão do atual governador californiano, o recall não aparenta ser um remédio adequado para o controle da incompetência ou desvios do poder executivo.  As constituições estaduais, a exemplo da federal, já estabelecem o instituto do impeachment e, além da redundância de propósitos, o recall contradiz as próprias bases democráticas do processo eleitoral. Isto porque os eleitores devem votar, na mesma cédula, sucessivamente, se querem retirar ou não o governador do cargo e, em seguida, indicar o seu sucessor para o mandato-tampão, como numa eleição típica, na qual concorrem vários candidatos, mas sem um segundo turno.  Ou seja, na prática, o governador pode ser afastado do cargo se tiver “apenas” 49,9% de apoio e ser substituído por um candidato que obteve, por exemplo, 20% ou 30% de votos, se os demais candidatos ficarem aquém desta margem.  Além disso, a convocação de uma custosa eleição já na segunda metade do mandato parece de questionável pertinência. Na Califórnia, o recall vai custar a bagatela de U$ 276 milhões, sendo que a próxima eleição ocorrerá em pouco mais de um ano.
Quando os “founding fathers” se reuniram na Filadélfia em 1787 para debater a adoção de uma Constituição para os Estados Unidos, eles chegaram a cogitar introduzir o recall como instrumento de controle de autoridades eleitas (havia uma cláusula nesse sentido no famoso “Plano da Virginia”). No entanto, ao longo dos debates, a ideia foi abandonada em favor da adoção do impeachment, e isso possivelmente decorreu de um certo conservadorismo demofóbico então prevalecente entre os patriarcas do constitucionalismo americano. Seja lá por que razão tenha sido, a opção parece sábia aos olhos da experiência subsequente.
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JOTA

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