Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Há alguns dias um curioso debate pipocou entre profissionais do Direito no Twitter: quem pode, legitimamente, intitular-se jurista? Começo por dizer que ninguém deve arrogar-se, sponte propria, tal epíteto. A condição de “jurista” é um reconhecimento subjetivo da comunidade jurídica, que não advém de critérios objetivos autoinvocáveis. É, na mais pura acepção da sociologia weberiana, um “status”, ou seja, uma posição na sociedade que depende de fatores como prestígio, poder e pertencimento a um grupo social. Isto é, decorre não apenas de “esforço ou mérito pessoal”, mas sobretudo de legitimação dos integrantes de determinado círculo comunitário (no caso, profissional).
Creio que o sujeito que se qualifica como jurista no currículo, no cartão de visitas, na minibio da rede social, é, pois, um grande embusteiro. Além, é claro, de estar correndo o sério risco de passar vergonha perante todos. O célebre rei da Macedônia Alexandre nunca se autoproclamou “O Grande”. Foram suas conquistas que fizeram com que aqueles que o respeitavam e o temiam lhe apodassem o adjetivo amalgamado ao cognome.  Assim também o é para o jurista. Jamais vi um jurista verdadeiro que se autodeclarasse jurista. Todos que conheci eram extremamente modestos e jamais brandiram esse “título” nas fuças do público ou de seus pares. Mas, afinal, como minimamente definir o “status” de jurista?  Nesse ponto precisamos compreender o direito como expressão cultural e a corporação jurídica como um corpo social.
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E aqui há um detalhe importante: o “jurista” é um fenômeno da Civil Law, do mundo do direito romano-germânico. Pois foi aqui na nossa tradição jurídica que a função de desenvolver o direito foi entregue aos “estudiosos”, dos jurisconsultos em Roma aos professores na vetusta Universidade de Bologna, razão pela qual nosso sistema legal tende à abstração do pensamento. Na Common Law, esse papel de desenvolver o direito foi atribuído aos juízes, que produzem doutrina a partir das próprias decisões judiciais, razão pela qual aquele sistema legal tende ao pragmatismo das ações.
A palavra “jurist” em inglês (tanto no Reino Unido como nos EUA), além do pouco uso corrente, não tem a mesma conotação daquela que empregamos nas terras da Europa continental e da América Latina, lá significando, em geral e meramente, aquele que tem boa formação jurídica ou mesmo o que exerce uma profissão do Direito. A expressão não tem na Commom Law a mesma dimensão cultural, a gravidade, a densidade valorativa justamente porque essa acepção é particular da Civil Law. No inglês, quando se quer atribuir conceito semelhante ao nosso “jurista”, em geral se emprega o termo “legal theorist”, mas um “legal theorist” não tem a projeção do nosso “jurista”.
Note-se, a propósito, que na tradição da Common Law, aqueles a quem chamaríamos “grandes juristas” quase sempre exerceram a magistratura: Edward Coke, William Blackstone, Joseph Story, Oliver Wendell Holmes Jr., Benjamin Cardozo, H.L.A. Hart, Ronald Dworkin, Richard Posner, etc. Claro que há também os que viveram enfurnados apenas nas torres de marfim da academia, como Roscoe Pound ou Lon Fuller, mas esses são a exceção, não a regra, e raramente gozam do mesmo prestígio atribuído aos “juízes juristas”.
E na Civil Law, quem é, afinal o jurista?  Recorro ao saudoso professor John Merryman, da Universidade de Stanford: “O acadêmico doutrinador é o real protagonista da tradição da Civil Law.  A Civil Law é um sistema de direito dos professores. (...) Os legisladores, os membros do executivo, os administradores, os juízes, os advogados, todos se submetem à influência dos juristas. Estes doutrinadores moldam a tradição da Civil Law e as próprias formas jurídicas que vêm a constituir o sistema legal.  Eles ensinam esse modelo aos estudantes de direito e escrevem sobre ele em livros e artigos. Os legisladores aceitam suas ideias sobre o que é o direito, e quando estes elaboram ou aplicam o direito, utilizam conceitos desenvolvidos pelos juristas.” (A Tradição da Civil Law, Sergio Fabris editor, 2009, pg. 96).
<blockquote class="jota-article__eye">O jurista é, em essência, um doutrinador, um professor. Mas não é qualquer doutrinador, qualquer professor. Pode ser um “operador” (juiz, advogado, promotor, procurador), ou acadêmico (estudioso, professor, pesquisador) que “desenvolveu doutrina”.</blockquote>
Ou seja, não apenas a descreveu, sistematizou, sumarizou ou a comentou. Ele criou algo de novo, deu novas luzes, enfrentou e tentou resolver problemas jurídicos de sua contemporaneidade em face do “direito velho”, sem necessariamente renegá-lo; trouxe ideias novas e questionou ou ressignificou antigos postulados, criou uma teoria ou enfoque original, renovou concepções sobre institutos jurídicos; inseriu-se em correntes de pensamento e debates jurídicos internacionais e criticou, à altura, outros juristas. Já por isso se percebe que o trabalho dos juristas está distante das meras epítomes, não se podendo confundi-los com nosso exército multitudinário e inesgotável de “manualistas” (no geral, competentes comentadores de leis e jurisprudência).
Juristas são, por essa razão, poucos e raros. Em geral, a cada geração, podemos contá-los nos dedos das mãos, pois são de fato os que efetivamente contribuem para “desenvolver” o direito, desafiando padrões e criando novos paradigmas através de seu pensamento crítico. Da geração imediatamente passada, pensemos, por exemplo, em Hely Lopes Meirelles, Ada Pelleggrini Grinover, José Carlos Barbosa Moreira, Miguel Reale, Afonso Arinos de Melo Franco, Paulo Bonavides, entre outros, que deram contribuições efetivamente originais para o desenvolvimento do direito brasileiro.
Portanto, parece-me um exercício de futilidade estabelecer critérios objetivos para se determinar quem pode ser chamado de jurista. Chega a ser absurdo cogitar, por exemplo, como alguém sugeriu, que o jurista deve ter, minimamente, um doutorado. Fazer doutorado em direito não faz de ninguém jurista e tivemos grandes juristas que nunca pisaram numa pós-graduação, inclusive alguns citados acima. Aliás, os juristas surgiram em nossa tradição muito antes do advento das universidades (pensemos em Gaia ou Ulpiano, como bem lembrado pelo professor da UFPR Thiago Hansen, no debate do Twitter). E, na história mais recente, há grandes juristas que sequer frequentaram o ensino jurídico universitário formal, como o grande John Marshall, tido como o maior juiz da Suprema Corte de todos os tempos. Prestígio, influência e poder de convencimento não se adquirem por diploma.
Creio que o debate em si é oportuno e não uma trivial treta do Twitter (com o perdão do travalínguas). Nas últimas décadas, assistimos a uma vulgarização do emprego do termo “jurista” em nosso meio jurídico. Se todos são juristas, ninguém é jurista. E parece que o Brasil se transformou, do dia para a noite, no país do mundo com maior número de juristas por quilômetro quadrado. O sujeito faz um mestrado, escreve um opúsculo qualquer e já se sente autorizado a pendurar uma plaquinha no escritório: “Fulano de Tal, jurista”.
Isso me lembrou uma história recente. Há pouco tempo, no calor de certos acontecimentos políticos infaustos, um grupo lançou com alarde um “manifesto de juristas”, contra isso ou aquilo. Pois bem, fui dar uma olhada na lista e constatei que havia cerca de 2 mil subscritores no panfleto político! Fiquei chocado em constatar que havia tantos juristas no Brasil e fui conferir o nome dos signatários, pois acreditei estar desatualizado sobre nossas letras jurídicas. Havia a identificação do nome dos manifestantes e sua ocupação. Além de uma dúzia de nomes para mim conhecidos (mas que eu não sabia haverem sido promovidos a juristas), encontrei lá dezenas de “estudantes de direito” e “bacharéis em direito”, além de uma senhora que se identificou como “dona-de-casa”.  Devemos estar à frente de muitos países por tamanho progresso em nossa educação jurídica.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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Quem é 'o jurista', esse desconhecido?

Reflexões sobre a ostentação e vulgarização do epíteto