Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Eu achava que o ano corrente não poderia nos chocar com nenhuma outra notícia mais extravagante do que a COVID-19. Bem, é verdade que alguns outros acontecimentos tentaram emparelhar: houve a praga de gafanhotos nos pampas, o tufão em Santa Catarina, um terremoto na Bahia, o comportamento bizarro e errático de Bolsonaro, o albergamento acidental de Queiroz na casa de Wassef, os cristãos defensores de gestação em criança estuprada por um pedófilo, a congressista acusada de matar o marido para preservar o bom nome de Deus, enfim, um ano farto de eventos apocalípticos e surreais, isso para não falar da enfiada de 8 x 2 do Bayern sobre o Barcelona de Messi e Suarez.
Eis que surge, para mim, o mais absurdo dos absurdos neste annus horribilis de 2020: a “Professora de Direito” que não estudou direito. Autoproclamada “jurista”, com supostos (e ao que tudo indica inexistentes) mestrado, doutorado e pós-doutorado, ela foi contratada por várias instituições de ensino privado em Salvador, sendo que em uma delas foi inclusive coordenadora do curso de Direito. E, segundo consta, orientou TCCs, participou de bancas de mestrado e foi até mesmo homenageada pelos alunos em algumas cerimônias de formatura! Não bastasse isso, tinha 120 mil seguidores em suas redes sociais, para os quais oferecia cursos de “otimização” da carreira jurídica.
O Ministério Público da Bahia investiga o caso depois que duas alunas denunciaram que a “professora” havia plagiado seus TCCs, publicando-os ipsis literis e in totum como se dela fossem, em revistas jurídicas nacionais. Segundo informações da imprensa baiana, as instituições de ensino onde a acusada diz ter obtido os graus de bacharel, mestre e doutora (UFMA, UFSC, UFBA) informaram não ter encontrado registro do nome dela como aluna. O seu “pós-doutorado” na UFPE também não foi localizado até o momento.
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Ao comparecer na semana retrasada para prestar depoimento na Polícia Civil em Salvador, a autoproclamada docente disse que não conseguiu encontrar os seus diplomas “devido a pandemia”. O Delegado que conduz o inquérito lhe concedeu cinco dias para apresentar os documentos, prazo que correu in albis. A indiciada também não soube precisar em qual seccional da OAB estaria registrada - ela já responderia a duas ações por exercício ilegal da profissão. Suas redes sociais foram subitamente deletadas.
A se confirmarem esses aberrantes fatos, estaremos diante de um espetáculo incrível de charlatanismo e pilantragem, divertido e chocante ao mesmo tempo. A notícia diverte pelo atrevimento e descarada ousadia da personagem, que nos lembra aquele impostor adorável de “Prenda-me se for capaz”, na interpretação de Leonardo Di Caprio. Ou aquele sensacional “homem que falava javanês” do nosso grande e imortal Lima Barreto. Confesso que sinto até uma ponta de admiração pela professora de Direito que não estudou direito (sem querer com isso incentivar a prática, é claro).
O que todavia choca no episódio é como ela pôde enganar tantas pessoas por tanto tempo; como ela pôde ser admitida como professora em faculdades de Direito e, inclusive, ser alçada ao cargo de coordenadora de curso. Isso nos deve servir de alerta para o fato de que há algo muito errado no ensino jurídico em nosso país - especialmente o privado.
Uma instituição de ensino que vai contratar um professor de Direito deve minimamente examinar os seus diplomas e consultar o seu currículo lattes. Vamos, porém, supor que algum estelionatário falsifique os seus diplomas e consiga assim burlar os examinadores (não parece ter sido esse o caso divulgado). OK, vamos perdoá-los até aqui. Mas como não perceber fraudes evidentes no currículo?
<blockquote class="jota-article__eye">Não resisti à curiosidade e consultei o lattes da suposta professora; as incongruências são tão explícitas, os feitos tão absurdos e delirantes que simplesmente caí na gargalhada com a criatividade e destemor da personagem - e, mais ainda, com a preguiça mental daqueles que a aprovaram como docente.</blockquote>
Qualquer profissional com um mínimo do mínimo de experiência acadêmica perceberia que o lattes da “professora doutora” estava cheio de claríssimos devaneios, alguns simplesmente estapafúrdios, com “achievements” que beiram o burlesco e poderiam ser desmascarados com alguns cliques de pesquisa na internet.
A começar pelo fato de que ela, no alto de seus trinta e cinco anos de idade, se autoproclamava “jurista”, sendo a sua obra mais relevante “Lei 11.419/2006 - Direito Eletrônico”, da coleção “Leis Especiais para Concurso - Dicas para realização de provas com questões de concurso e jurisprudência do STF e STJ”. Ou seja, uma simples compilação da lei do processo eletrônico anotada para concurseiros incautos.
Aliás, vamos e venhamos, qualquer um no Brasil que se autoproclame jurista é um grande bufão (e não são poucos), pois os juristas só são juristas quando os seus pares o reconhecem como tal (atualmente podemos contar os juristas brasileiros nos dedos de uma mão - e assim deve ser; não confundir juristas com “manualistas”). E não vou nem adentrar ao território pantanoso daqueles que se autodenominam “pós-doutor”, título só existente no mundo extravagante do bacharelismo brasileiro.
Mas, enfim, isso é o de menos, pois há muitos ingênuos que caem no “conto do jurista” ou no “conto do pós-doutor”. Ultrapassemos esse ponto também. Bastaria proceder, para se enxergar a fraude, à mera leitura da mini biografia que encima o lattes da indigitada professora, na qual seus méritos profissionais e acadêmicos pareciam bastante exagerados, sem nenhuma comprovação aparente, pois ela se declarava como ex-consultora da ONU, da UNESCO, do PNUD, da OEI (?), da Câmara de Comércio Brasil-China e do Banco Mundial! Também alega ter apresentado trabalho perante a London School of Economics e publicado artigo na Harvard Business Review.
Além disto, se declara “consultora sênior responsável pela implantação do processo eletrônico em 9 Tribunais de Justiça e 4 Ministérios Públicos do país”, embora não indique quais. Que espanto, não? Como ninguém suspeitou desta prolífica carreira atribuída a uma virtual desconhecida no mundo jurídico?
Mas é no relatório de suas publicações que a peça de ficção fica mais evidente. A “professora” arrola uma série de artigos em revistas jurídicas sobre temas de direito tributário, e entre elas aparece o trabalho “The IVA and respect for tax principles”, que teria sido publicado na Harvard Law Review! É claro que uma mera consulta a essa publicação demonstra que não há nenhum artigo com esse estranho título lá e muito menos o nome de sua autora. Isso para não falar que a “professora” parece ter se confundido pois havia mencionado antes publicação na Harvard Business Review, que é outra publicação da veneranda universidade de Massachusetts. Mas não é só, há ainda a alegação de que um de seus artigos foi aceito para publicação em uma revista científica da Cracóvia, Polônia (!), a “Cracow Review of Economics and Management”. Evidentemente, nada consta com o nome da autora nessa publicação...
Mesmo as alegadas publicações em revistas nacionais revelam-se falsas quando estas são consultadas online. E, além disso, quase toda a sua volumosa “produção intelectual” ocorreu nos últimos cinco anos, mostrando que a autora teve uma repentina explosão de criatividade e produtividade que não se verificava em anos anteriores. Somente um amador não perceberia esses despautérios e ao que parece algumas faculdades privadas que a contrataram agiram de forma bastante amadora nesse episódio.
Muito se argumenta que o setor privado é mais eficiente que o setor público. Isso pode até ser verdade em setores “duros” da economia, como indústrias de ponta que dependem de alto investimento em tecnologia. Mas na educação superior brasileira a assertiva é altamente duvidosa, como demonstram os rankings das melhores universidades do país. O episódio aqui narrado só ilustra esse fato, pois a professora de direito que não estudou direito seria desmascarada facilmente na fase preliminar de qualquer concurso de ingresso em uma universidade pública.

giammarco boscaro

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JOTA

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