Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Ao longo de toda a semana passada transcorreu no comitê judiciário do Senado dos Estados Unidos a sessão de sabatina do segundo indicado pelo presidente Donald Trump para compor a Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz federal da Corte de Apelações do Circuito de Washington DC, Brett Kavanaugh (o sobrenome pronuncia-se kev’nó).
A sessão durou quatro longos dias e o primeiro deles foi um verdadeiro cafarnaum. Senadores do Partidos Democrata estavam irritados porque o governo Trump e seus líderes republicanos no Congresso encaminharam a sabatina à toque de caixa. Além disto, cerca de cem mil documentos relativos ao período em que Kavanaugh trabalhou na assessoria jurídica do ex-presidente George Bush filho foram classificados pelo atual chefe do Executivo como reservados e tornados inacessíveis aos senadores. Para piorar o quadro, cerca de vinte mil documentos judiciários com os registros da atividade pretérita do Juiz Kavanaugh chegaram ao Senado na noite anterior ao início da sabatina.
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Assim que a sabatina começou, houve um acalorado bate-boca entre o presidente do comitê judiciário (o republicano de Iowa Chuck Grassley) e graduados senadores da oposição Democrata, que insistiam no requerimento de adiamento da sessão, para que pudessem analisar com mais vagar os documentos relativos ao indicado. Enquanto os parlamentares trocavam farpas, manifestantes de várias ONGs começaram a levantar cartazes e berrar palavras de ordem no recinto (como é regra no Congresso dos EUA, as sessões são abertas ao público). A polícia legislativa interveio e arrastou uma a uma para fora da sala cerca de setenta pessoas. Enquanto a bagunça imperava, o jovem Juiz Kavanaugh (53 anos) mantinha-se impassível e indiferente, baixando os olhos para consultar suas anotações e um surrado exemplar de bolso da Constituição americana. Tudo estava sendo transmitido ao vivo por TVs e internet.
Senadores veteranos que estão no Congresso desde os anos 80 e já participaram de mais de quinze “hearings”, declararam que nunca tinham visto nada parecido. Mas por que, afinal, este clima de guerra tomou conta da sabatina para a Suprema Corte?
A Constituição americana estabelece apenas que o jurista indicado pelo presidente para ocupar uma cadeira na Suprema Corte será nomeado “com o parecer e aprovação do Senado” (Art. II, Seção II, Cláusula 2). Não há na Constituição dos EUA previsão de um processo de “sabatina”, isto é, de que o candidato ao cargo de juiz constitucional se submeta a um procedimento de escrutínio público, comparecendo pessoalmente à câmara alta para ser arguido pelos senadores. Isto é uma prática parlamentar consuetudinária que se desenvolveu ao longo do século XX, em virtude de circunstâncias políticas bastante concretas, mas que estão em tudo derivadas da concepção americana de checks and balances. Até a década de 1930, as indicações do presidente de candidatos à Suprema Corte eram votadas em sessão secreta e os escolhidos compareciam ao Senado somente após a sua aprovação, como medida protocolar, para receber os cumprimentos dos membros da casa.
Em 1937, no entanto, um incidente começou a mudar esse caráter meramente formal do comparecimento ao Senado dos futuros juízes da Suprema Corte. O presidente Franklin Delano Roosevelt indicou para a Suprema Corte o ex-senador do Alabama Hugo Black, cuja designação foi rápida e tranquilamente aprovada. Alguns dias depois, porém, a imprensa divulgou que o futuro Justice havia sido um integrante da Ku Klux Klan, o que causou enorme controvérsia na opinião pública, que passou a questionar como o Senado pudera aprovar um juiz com esta mancha em sua biografia. Para acalmar o público, Hugo Black precisou prestar declarações em rede nacional de rádio, reconhecendo que de fato havia sido filiado à organização, mas que se desfiliara tempos depois, atribuindo o fato à inexperiência da juventude (em seu favor, diga-se que ele desempenharia papel relevante no caso Brown v. Board of Education, que deu início à dessegregação racial nos EUA).
Em razão deste incidente, na indicação à Suprema Corte do consagrado jurista Felix Frankfurther, em 1939, os senadores, para evitar um embaraço como aquele ocorrido com Black, acharam por bem convidar o indicado para uma sessão solene no Senado, durante a qual ele seria arguido quanto à sua trajetória de vida, seu pensamento político e sua filosofia judicial. Nascia ali a “sabatina”, cujo processo desde o início passou a ser público, abandonando-se também a votação secreta.
No entanto, as sabatinas dos juízes constitucionais só começariam a despertar maior curiosidade do público e da mídia ao final da “Era Warren”, dada a relevância política de decisões de alta repercussão tomadas a partir de meados da década de 1950, como nos casos em que a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da segregação racial (Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954)), das orações em escolas públicas (Engel v. Vitale, 370 U.S. 421 (1962)) e de arbitrariedades na investigação criminal pelas polícias estaduais, como as buscas sem mandado (Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961)) e as confissões em delegacias sem a assistência de advogado (Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966)). Essas questões altamente sensíveis para a sociedade americana despertaram o público para o imenso poder da Suprema Corte e o processo de seleção dos Justices passou a ser objeto de grande atenção do eleitorado. Até então, as confirmações do Senado ocorriam em média em até duas semanas após a indicação do presidente (e houve casos nos governos Roosevelt e Truman em que o indicado pelo Executivo foi aprovado no mesmo dia pelos senadores!). Depois disto, o tempo médio de apreciação pela câmara a alta das designações presidenciais se dará numa média de um a três meses ou mais.
Essa mudança ocorre, portanto, no fim dos anos 60, exatamente no momento em que há um grande acirramento entre Democratas e Republicanos em torno das indicações à Suprema Corte no fim do governo Lyndon Johnson e início da administração Richard Nixon. Os Republicanos barraram a indicação do Juiz Abe Fortas, feita pelo presidente Johnson para a presidência da Corte, quando descobriram o seu envolvimento em alguns negócios privados nebulosos e se insurgiram contra a assessoria jurídica informal que Fortas prestava ao Chefe do Executivo. No governo Nixon, os Democratas foram à forra e rejeitaram duas indicações sucessivas do novo presidente republicano para a corte constitucional. Esse quadro, evidentemente, começou a transformar o processo de indicações em um jogo partidário. Pode-se dizer que ali foi plantada a semente da discórdia.
É verdade que houve certa calmaria nos governos Gerald Ford e Jimmy Carter, pois durante dez anos, entre 1971 e 1981, abriu-se apenas uma vaga na Suprema Corte, preenchida por Ford (que sucedeu, como vice-presidente, Nixon quando este renunciou diante da ameaça de impeachment, em 1974) com a indicação de John Paul Stevens em 1975, a qual não suscitou maiores controvérsias em razão do seu perfil moderado. O azarado Jimmy Carter, do Partido Democrata, foi um dos raros presidentes americanos em cujo mandato nenhum juiz da Suprema morreu, se aposentou ou renunciou; assim, ele se juntou a Zachary Taylor - que faleceu com menos de um ano de mandato em 1850 - como um dos dois únicos presidentes que não indicaram juízes à Suprema Corte.
Mas no governo Ronald Reagan, o acirramento partidário em torno da Suprema Corte seria retomado. Em sua primeira indicação, o conservador Reagan surpreendeu o mundo político e escolheu a primeira mulher para a Suprema Corte - a juíza estadual do Texas Sandra Day O’Connor - , quebrando eventuais resistências dos Democratas. O ineditismo da designação, se não suscitou grande polêmica, deu ainda maior relevância às sabatinas, pois essa foi a primeira vez que o procedimento foi transmitido ao vivo pelas TVs americanas. Os senadores é claro, logo perceberam as possibilidades midiáticas desta exposição, e passaram a usar o evento para fazer o que os americanos chamam de “grandstanding”, ou seja, falar para os holofotes a fim de divulgar seu nome em escala nacional.
E foi então que o processo de polarização que perdura até hoje se aguçou ainda mais. Depois das bem-sucedidas indicações de William Rehnquist (para a presidência da Corte) e de Antonin Scalia, Reagan, em final de mandato, já sem maioria no Congresso, errou a mão ao indicar o jurista Robert Bork, que apesar de suas indisputadas credenciais acadêmicas, resolveu, de forma ingênua, defender abertamente suas posições ultraconservadoras durante a sabatina. Acabou rejeitado pela maioria, composta de Democratas. Uma segunda indicação de Reagan precisou ser retirada às pressas quando a imprensa descobriu que o candidato apontado fumara maconha na juventude... A solução foi encaminhar o nome do moderado Anthony Kennedy, que se aposentou recentemente, para cujo lugar Trump indicou o Juiz Kavanaugh.
Assim, em razão do precedente Bork, as deliberações do Senado nas últimas três décadas têm sido bastante acirradas do ponto de vista partidário. Prova disto é que as votações para confirmação do Juiz da Suprema Corte vêm sendo cada vez mais apertadas, quando no passado mais pretérito eram frequentes votações unânimes ou maiorias folgadas acima de dois terços. Outro fator que indubitavelmente contribuiu para a partidarização do processo de escolha foi a intervenção da Suprema Corte no resultado das eleições presidenciais no ano de 2000, na qual a bagunçada e bizarra contagem de votos na Flórida acabou sendo decidida pelos juízes constitucionais, em controversa votação 5 x 4, tendo os conservadores votado em favor do Partido Republicano e os liberais em apoio à tese do Partido Democrata (Bush v. Gore 531 U.S. 98 (2000)).
<a name="_GoBack"></a> E, para azedar ainda mais as coisas, houve o traumático caso do último indicado por Barack Obama, o conceituado Juiz Merrick Garland, cujo processo de confirmação foi bloqueado pela maioria Republicana no Senado, quando esta anteviu, onze meses antes do término do mandato presidencial, a possibilidade de seu candidato voltar à Casa Branca. Manobra considerada bastante duvidosa e questionável do ponto de vista das tradições legislativas, ao ponto de vários liberais americanos (como Paul Krugman e o próprio New York Times) afirmarem abertamente até hoje que os Republicanos “roubaram” uma vaga dos Democratas na Suprema Corte.
Essa partidarização no processo de confirmação ficou evidente, também, durante as perguntas formuladas na sabatina do Juiz Kavanaugh, na semana passada. Embora tenha sido indagado sobre as tradicionais controvérsias constitucionais que sempre preocupam os americanos (aborto, porte de armas, liberdade religiosa, minorias, etc), o maior questionamento esteve claramente voltado ao tema da extensão das “imunidades presidenciais”. Apesar de alguns precedentes da Suprema Corte jogarem um pouco de luz sobre a questão (como nos casos United States v. Nixon 418 U.S. 683 (1974) e Clinton v. Jones 520 U.S. 681 (1997)), ainda há muito dúvida no direito constitucional americano se o Presidente da República pode ser processado civil e criminalmente enquanto ocupa o cargo, bem como sobre os poderes de promotores independentes designados para investigar o Chefe do Executivo (Morrison v. Olson, 487 U.S. 654 (1988)). Em suma, os senadores estavam essencialmente preocupados a respeito da possibilidade de a Suprema Corte decidir o destino político do presidente Donald Trump, tendo em conta as inúmeras confusões judiciais em que ele está metido.
Muitos constitucionalistas nos EUA temem que o acirramento partidário no processo de sabatina possa estar contaminando negativamente a Suprema Corte, na medida em que têm aumentado as decisões “em linhas partidárias”, isto é, a votação dos juízes vem se orientando cada vez mais de acordo com os programas dos partidos políticos dos líderes responsáveis pela sua nomeação. Isso é ainda mais grave quando a corte está estreitamente dividida (5 x 4) entre conservadores e liberais e o público percebe que os resultados em temas controversos seguem esta divisão. Ou seja, a dimensão política das decisões constitucionais parece pesar frequentemente sobre a sua dimensão jurídica, o que indubitavelmente contribui para o enfraquecimento da credibilidade da instituição. Tal como no Brasil, nos Estados Unidos a judicialização da política está levando à politização do judiciário. Ninguém pode achar isso bom, nem aqui, nem lá.

trumpkava

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JOTA

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