O comediante, músico e apresentador norte-americano Bill Cosby, coberto de glórias no showbiz, estava desfrutando de uma aposentadoria tranquila até que denúncias de assédio sexual e estupro começaram a surgir em 2014, na esteira do movimento “Me Too”. As revelações eram chocantes, pois o ator, que possuía um doutorado em educação, era conhecido pela sua militância em favor de causas humanitárias, elevando sempre sua voz em defesa dos afro-americanos. Em 2004, chegou a receber um prêmio alusivo aos 50 anos do julgamento do caso Brown v. Board of Education na Suprema Corte, entregue a figuras que se destacaram na defesa das liberdades civis dos negros. Na ocasião, proferiu um célebre discurso, pedindo que os pais afro-americanos ensinassem aos seus filhos “valores morais desde cedo”.
No total, mais de cinquenta mulheres alegaram terem sido vítimas de Cosby nas últimas décadas, e todas descreviam um padrão semelhante de conduta, no qual o ator aplicava um “boa noite cinderela”, violando as vítimas enquanto estavam inconscientes. A quase totalidade dos casos estava prescrita, mas a promotoria iniciou investigações de alguns poucos que ainda poderiam ser processados. Paralelamente, algumas vítimas ajuizaram ações civis de indenização e em uma delas, proposta por Andrea Constand, Cosby fez um acordo de 3,38 milhões de dólares para por fim ao processo, em cujas tratativas admitiu a conduta que lhe era imputada.
Cosby acabou sendo processado criminalmente pela promotoria no caso de Constand e foi condenado em 2018 a uma pena de até 10 anos, que estava cumprindo em um presídio da Filadélfia. Para surpresa de muitos observadores do judiciário americano, a Suprema Corte da Pennsylvania anulou a decisão por alegada violação à Quinta Emenda e Cosby agora está livre, mesmo tendo prestado um depoimento em que admitiu ter estuprado algumas mulheres com o auxílio de drogas para dormir que adicionava em suas bebidas.
O que ocorreu? Para entender o caso Cosby, é necessário compreender a estrutura da persecução penal nos EUA, que é bastante distinta daquela praticada pelo Ministério Público no Brasil. Uma vez que são eleitos, os promotores estaduais (district attorney) possuem alto grau de discricionariedade quanto ao ajuizamento ou não da ação penal, podendo, ainda, negociar penas com réus (plea bargain), estabelecer um acordo de não persecução penal (non-prosecution agreement) ou aplicar, também mediante acordo, uma persecução penal diferida (deferred prosecution agreement).
Essas últimas duas modalidades são adotadas com mais frequência em crimes financeiros ou de corrupção que envolvem empresas, mas podem também ser encetadas em relação a crimes comuns praticados por pessoas físicas. No caso de Cosby, o promotor que atuava no caso criminal, Bruce L. Castor Jr., sustenta que tinha dúvidas de que as provas contra o ator no caso Constand passariam no teste “além de uma dúvida razoável”, ou seja, de que elas seriam de fato fortes o suficiente para condená-lo. Assim, estimulou o réu a entrar em acordo com a vítima no processo civil de reparação, dizendo-lhe – informalmente, sem assinar um compromisso – que suas declarações naquela ação não seriam usadas contra ele. Logo a seguir, o promotor Castor anunciou através de uma nota oficial que a promotoria não ajuizaria ação penal no caso Constand. ,
O acordo civil acabou saindo depois de muitas negociações, quando já havia nos autos um depoimento em que Crosby havia admitido os fatos, pois acreditava que essas suas declarações não poderiam ser usadas contra ele para fins criminais (o direito de não produzir prova contra si mesmo aplica-se apenas ao processo penal, como garantia constitucional, e no processo civil a prestação de declaração falsa induz ao perjúrio). No entanto, pouco tempo depois, Castor deixou a promotoria e outro District Attorney assumiu seu lugar. E este novo promotor, acreditando que não havia um acordo formalizado de não persecução penal com Cosby, decidiu reabrir o caso, aproveitando o depoimento que o ator prestara no processo civil. E no processo crime, no qual foram também ouvidas várias testemunhas, o artista multitalento foi condenado e preso.
Os advogados de Cosby recorreram alegando uma nulidade processual insanável: sustentaram que a condenação havia sido fundada em violação à Quinta Emenda, na parte que estabelece que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, pois o acordo inicial da promotoria garantira imunidade penal ao acusado.
A tese sustentava que o non-persecution agreement, ainda que informal, induziu o réu a admitir a conduta penal que lhe era imputada, pois acreditava estar no gozo de imunidade na esfera criminal.
O recurso chegou à Suprema Corte da Pennsylvania que, por maioria de seis votos a um, acolheu a tese da defesa. A maioria concluiu que o acordo de não persecução penal, ainda que informal, foi considerado como válido pelo acusado e sem isso ele não teria prestado o depoimento na forma como o fez na jurisdição civil. O Juiz David Norman Wecht assinalou: “quando um promotor faz uma promessa incondicional de não persecução, e quando o réu confia nesta garantia em detrimento de seu direito constitucional de não prestar depoimento contra si mesmo, o princípio de justiça fundamental subjacente ao devido processo legal de nosso sistema de justiça criminal impõe que esta promessa seja cumprida.”
Dois juízes da maioria se manifestaram no sentido de que Cosby deveria ser julgado novamente, a partir de outras provas que não a do seu depoimento no processo civil. Mas prevaleceu o entendimento de que sequer outro processo é possível, já que a divulgação de sua confissão contaminaria inevitavelmente um futuro julgamento. Ainda cabe recurso para a Suprema Corte, que nunca apreciou um caso com esses contornos.
Na conclusão de sua opinion, o Juiz Wecht observou: “Embora a sociedade tenha um forte interesse em que os crimes sejam punidos, ela tem um interesse ainda maior em que os direitos constitucionais sejam preservados.” Esta é uma reflexão bela e válida para qualquer sistema de justiça em uma democracia liberal.