Opinião e Análise

Cássio Casagrande

João Renda Leal Fernandes

As produções de TV e cinema hollywoodianas são um dos principais produtos made in USA, que exportam não apenas entretenimento, mas também traços da cultura americana para todo o planeta.
Hollywood é um distrito da cidade de Los Angeles, no estado da Califórnia, que se tornou mundialmente famoso em virtude da grande concentração de estúdios de cinema, bem como por abrigar uma calçada da fama e sediar importantes premiações musicais e cinematográficas.
Junto com o sucesso dos grandes estúdios, desenvolveu-se em Hollywood uma complexa estrutura de sindicatos que organizam praticamente toda a mão de obra envolvida nas produções. A título exemplificativo, mencionaremos aqui apenas algumas dessas entidades e suas unidades locais respectivas: a <a href="https://www.dga.org/">Associação de Diretores da América (DGA)</a>, a <a href="https://www.afm47.org/">Federação Americana de Músicos (AFM 47)</a>, a <a href="https://iatse.net/">Aliança Internacional de Empregados de Palco Teatral (IATSE)</a>, os <a href="https://www.local44.org/">Artesãos Afiliados (IATSE 44)</a>, a <a href="https://www.local44.org/">Guilda de Animação (IATSE 839)</a>, a <a href="https://adg.org/">Associação de Diretores de Arte (ADG/IATSE 800)</a>, a <a href="https://www.costumedesignersguild.com/">Associação de Figurinistas (CDG/IATSE 892)</a>, a <a href="https://www.icg600.com/">Associação Internacional de Cinematógrafos (ICG/IATSE 600)</a>, a <a href="https://local706.org/">Guilda de Maquiadores e Cabeleireiros (MUAHS/IATSE 706)</a>, a <a href="https://www.editorsguild.com/">Associação de Editores de Filmes (MPEG/IATSE 700)</a>, a <a href="https://www.local695.com/">Associação dos Engenheiros de Produção de Som e Vídeo (PSVEG | IATSE Local 695)</a>, a <a href="https://www.sagaftra.org/">Associação de Atores de Tela – Federação Americana de Artistas de Rádio e Televisão (SAG–AFTRA)</a>, o <a href="https://www.ht399.org/">Sindicato dos Caminhoneiros e Trabalhadores do Transporte – Unidade Local nº 399</a> e a <a href="https://www.wga.org/">Associação dos Escritores da América – Oeste (WGAW)</a>.
Embora a palavra “Hollywood” não raro seja utilizada, ao redor do mundo, como uma metonímia para designar o cinema americano como um todo, muitos estúdios têm escolhido sediar suas produções em outras localidades, que ofertam trabalho menos organizado coletivamente (por consequência, com mão de obra mais barata), além de múltiplos créditos tributários e outras espécies de incentivos fiscais. Tais práticas acabam por gerar uma espécie de “guerra fiscal” para atração da indústria cinematográfica, em um verdadeiro “federalismo por competição”.
Por adotar uma <a href="https://www.georgia.org/sites/default/files/2021-03/georgia_film_tax_incentive_brochure_2021_1.pdf">política institucional bastante generosa em incentivos fiscais</a>, a Geórgia é um dos estados que mais têm recebido produções de TV e cinema nos últimos tempos. No ano fiscal de 2021, estima-se que esse estado do sudeste dos EUA tenha recebido sozinho nada menos do que <a href="https://www.georgia.org/press-release/georgia-film-records-blockbuster-year#:~:text=Atlanta%20%E2%80%93%20July%2021%2C%202021%20%E2%80%93,on%20productions%20in%20the%20state.">US$ 4 bilhões em investimentos diretos</a> para as produções realizadas no seu território. Isso fez também com que alguns sindicatos se estruturassem e abrissem ramificações locais no estado, na tentativa de organizar a mão de obra utilizada em tais produções.
Recentemente, tivemos a oportunidade de visitar a <a href="https://www.teamsterslocal728.org/">Unidade Local nº 728 do Sindicato dos Caminhoneiros (Teamsters Local 728)</a>, na cidade de Atlanta, que representa cerca de 2.000 trabalhadores envolvidos no transporte e na logística de suprimentos para as produções cinematográficas no estado da Geórgia. O Teamster já foi o mais poderoso sindicato dos EUA, particularmente no tempo do lendário e controverso sindicalista Jimmy Hoffa (retratado no filme “O irlandês”). Na sede da entidade, entrevistamos durante duas horas o Dr. Jim Fagan, experiente advogado sindical, que nos explicou sobre os principais embates jurídicos e toda a lógica de funcionamento do sindicato que representa.
Nos EUA, de acordo com a principal lei federal que regula o Direito Coletivo do Trabalho, o National Labor Relations Act (NLRA), a sindicalização não é setorial, como vemos no Brasil, onde o enquadramento das categorias profissionais ocorre de acordo com a atividade econômica preponderante dos respectivos empregadores.
Na realidade americana, o padrão legal é, na verdade, a “unidade apropriada de negociação” (appropriate bargaining unit), que costuma corresponder aos empregados em determinados setores dentro de um mesmo estabelecimento empresarial. Essa lógica tão fragmentada e pulverizada é responsável pela existência de uma multiplicidade de ramificações locais dos principais sindicatos, como é o caso da Unidade Local nº 728 do Sindicato dos Caminhoneiros, que tivemos a oportunidade de visitar e conhecer.
Para tornar-se representante exclusiva de uma determinada unidade de negociação coletiva, a ramificação local do sindicato precisa contar com apoio da maioria simples dos empregados ali atuantes, o que costuma se concretizar através da assinatura de cartões individuais de apoio ao sindicato. Caso não haja reconhecimento voluntário pelo empregador, o sindicato precisa reunir cartões de suporte sindical assinados por ao menos 30% dos trabalhadores da unidade, para exigir a convocação de uma eleição de representação sindical, supervisionada pela National Labor Relations Board (NLRB), uma agência administrativa federal independente.
Como nos explicou o Dr. Jim Fagan, no setor de transporte e logística na indústria cinematográfica da Geórgia, o processo de sindicalização e a confecção de um acordo coletivo de trabalho costumam ocorrer para cada novo filme, projeto ou produção a ser realizada no estado.
Bem diferente do que se verifica em vários outros ramos, como geralmente existe muita pressa por parte das produtoras (desejosas de iniciar as filmagens o quanto antes, sem maiores atrasos), isso facilita sobremaneira o reconhecimento voluntário da Unidade Local nº 728 como representante dos caminhoneiros, motoristas e auxiliares, bem como viabiliza a celebração expedita de acordos coletivos, cujos padrões remuneratórios e cujas cláusulas mais usuais já costumam ser de conhecimento das principais produtoras.
Conforme nos explicou o Dr. Fagan, uma grande “arma” existente nas mãos dos trabalhadores é a possibilidade de realização de piquetes por até 60 dias, consoante autorizado pela Lei Estadual AB-7 (Assembly Bill nº 7), mecanismo com potencial de interromper as filmagens e capacidade de gerar prejuízos incalculáveis a toda uma produção, especialmente as de low budget (até US$ 10 milhões), que possuem orçamentos apertados e correm contra o tempo, pois cada dia extra de filmagem representa uma grande despesa.
Justamente pelo receio dos empregadores de sofrer esse tipo de piquete é que costuma haver o reconhecimento de forma voluntária do sindicato como representante da unidade, além de viabilizar-se uma maior rapidez na assinatura dos acordos coletivos, processos que se revelam extremamente lentos e conflituosos em vários outros ramos, como se verifica atualmente, por exemplo, nos movimentos de sindicalização em lojas da cadeia de cafeterias Starbucks e em alguns centros de distribuição e logística da gigante do e-commerce Amazon.
O Dr. Fagan teve a oportunidade de nos exibir um acordo coletivo padrão celebrado com a produtora de um filme, em que o valor dos salários variava de US$ 46,22 (motorista comandante) a US$ 39,04 (ajudantes e auxiliares) por hora de trabalho, com garantia de recebimento mínimo de 10 horas para cada dia em que haja convocação para o trabalho (valores muito superiores ao salário mínimo vigente no estado da Geórgia, de US$ 7,25 por hora). Ainda de acordo com Fagan, cada trabalhador representado pelo sindicato costuma receber, em média, salários que totalizam cerca de US$ 150 mil no ano (R$ 750 mil, em valores convertidos).
O acordo coletivo ainda previa o fornecimento dos seguintes benefícios, entre outros: seguro-saúde custeado pelo empregador; plano de previdência complementar conhecido como 401(k), com contribuições obrigatórias por parte do empregador; diárias, valores e benefícios adicionais devidos em caso de viagens a localidades distantes; fornecimento de indenização pela alimentação ou oferecimento de refeição idêntica à dos demais empregados nos sets de filmagens (em tom bem humorado, o advogado Jim Fagan afirmou que, como poderíamos ali observar, havia muitos motoristas acima do peso no sindicato, em razão desse benefício); previsão de pagamento em dobro por trabalho em feriados; pagamento adicional de 50% pelo labor que ultrapasse 8 horas diárias e em dobro para o trabalho que supere a 12ª hora diária; se houver trabalho pelo 6º dia consecutivo, pagamento adicional de 50% para as primeiras 12 horas e em dobro para as demais; em caso de labor pelo 7º dia consecutivo, salário em dobro para todas as horas trabalhadas.
A Geórgia é um dos 27 estados da federação conhecidos como sendo um right-to-work state, que não permite a cobrança compulsória de contribuições assistenciais (agency fees) em ambientes sindicalizados do setor privado, ainda que existam cláusulas específicas previstas nos respectivos acordos coletivos.
Contudo, a Unidade Local nº 728 do Sindicato dos Caminhoneiros controla uma “lista de referência” de motoristas, ajudantes e auxiliares que se ativam nessas produções cinematográficas realizadas no estado. A lista divide os trabalhadores em diferentes grupos, conferindo preferência a alguns critérios como a antiguidade, porém com regras a permitir o rodízio e o oferecimento de trabalho e remuneração a um amplo número de pessoas. Para serem incluídos nessas listas, no entanto, os trabalhadores devem concordar com o pagamento de uma taxa de referência (referral fee) equivalente a 3% sobre o valor de seus salários, cujos valores são revertidos ao sindicato. O sistema lembra bastante a forma de operação dos sindicatos de trabalhadores portuários avulsos no Brasil antes do surgimento do OGMO.
Se, por um lado, a análise de custo-benefício do pagamento dessas taxas pode se mostrar vantajosa aos trabalhadores (uma vez que os empregados, em ambientes sindicalizados costumam receber salários, em média, quase 20% mais altos, segundo <a href="https://www.bls.gov/news.release/pdf/union2.pdf">dados divulgados pelo Departamento do Trabalho dos EUA</a>), por outro lado a prática se revela um artifício jurídico para viabilizar, por via transversa, o pagamento de uma contribuição sindical de forma compulsória, em ambientes onde apenas os motoristas e auxiliares constantes dessas listas do sindicato acabam conseguindo exercer suas atividades.
Na entrevista com o Dr. Fagan e no acordo coletivo cujo acesso nos foi franqueado, chamou atenção também a menção aos procedimentos internos de queixas (grievance steps), consistentes em reclamações trabalhistas a serem resolvidas pelas empresas através de um sistema interno de mediação previsto na norma coletiva para a resolução de controvérsias, em que o trabalhador conta com auxílio do sindicato. Apenas se não resolvido o conflito através desse mecanismo, a questão é submetida a um painel de sete árbitros do <a href="https://www.fmcs.gov/">Serviço Federal de Conciliação e Mediação</a>, cujos honorários são divididos entre a empresa e o sindicato.
A crescente indústria do cinema no estado da Geórgia e a alta taxa de sindicalização nesse segmento estão contribuindo para o aumento do padrão de vida dos trabalhadores e, claro, para o fortalecimento do próprio sindicato que, como vimos no local, está construindo um novo edifício em sua sede, orçado em US$ 4 milhões.
Enfim, a realidade do sistema sindical e trabalhista americano é bastante específica e muito mais complexa do que os variados mitos frequentemente propagados pelo senso comum no Brasil, existindo determinados setores de atividade econômica nos quais a presença dos sindicatos é uma realidade incontornável para os empregadores – como efetivamente deve ser em um sistema capitalista que busque uma distribuição de riqueza mais justa.
*
Registramos nosso especial agradecimento ao Dr. Jim Fagan, por nos receber tão gentilmente na manhã de 04/05/2022 na sede da Unidade Local nº 728 do Sindicato dos Caminhoneiros (Teamsters Local 728), bem como pelo agradável e valioso intercâmbio de ideias e informações. Também somos muito gratos ao Professor Gus Cochran, do Agnes Scott College, que nos recebeu em Atlanta e nos colocou em contato com o Dr. Fagan.

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JOTA

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